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Não é verdade que DPU tenha promovido projeto que ‘legaliza profissão de ladrão’

Texto do PSOL que tramita na Câmara dos Deputados quer impedir ação penal contra acusados de furtos por necessidade e insignificantes; Defensoria emitiu nota técnica favorável à aprovação

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Foto do author Luciana Marschall
Foto do author Samuel Lima
Atualização:

É enganoso que a Defensoria Pública da União (DPU) esteja promovendo um projeto de lei apresentado pelo PSOL que “legaliza a profissão de ladrão”. Na verdade, o órgão emitiu uma nota técnica favorável à aprovação de um texto que visa a impedir o encarceramento de pessoas em casos de furtos por necessidade ou considerados insignificantes.

 Foto: Reprodução

Em um vídeo que circula no Instagram, Facebook, WhatsApp e TikTok, uma mulher sustenta que a DPU estaria promovendo o texto que supostamente permitiria que pessoas possam entrar em estabelecimentos e roubar, o que é falso. Ela acrescenta, ainda, que isso já ocorre na Califórnia, nos Estados Unidos, onde ladrões podem furtar até 950 dólares sem serem detidos por seguranças. Esta afirmação também é deturpada.

O que diz o projeto

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O boato se refere ao projeto de lei n°. 4.540/2021, apresentado pela deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) e por outros parlamentares do partido, em dezembro de 2020, e que altera o artigo 155 do Código Penal para prever o furto por necessidade e o furto insignificante.

O objetivo do projeto, segundo o texto inicial, é determinar que dois tipos de furto deixem de ser considerados crimes no Brasil. O primeiro é o furto por necessidade, quando cometido “por agente em situação de pobreza ou extrema pobreza, para saciar a fome ou necessidade básica imediata sua ou de sua família”. A segunda definição é a do furto insignificante, “se insignificante a lesão ao patrimônio do ofendido”.

O material aponta que não há crime mesmo no caso de reincidência, desde que o ato tenha sido praticado em alguma dessas circunstâncias. Em seguida, estabelece que os juízes devem substituir a prisão em regime fechado por restrição de direitos ou aplicar somente multa, quando não couber a absolvição no caso, e que a ação penal só procede mediante queixa em todas as modalidades de furto. Ou seja, os furtos praticados nessas duas circunstâncias continuariam a ser penalizados, mas não com o encarceramento.

Conforme explicou a Agência Câmara de Notícias em setembro passado, o Código Penal já permite livrar de punição os crimes cometidos em estado de necessidade, caso que abrange o chamado “crime famélico”, motivado pela necessidade de se alimentar. Os autores do projeto, contudo, justificam que o Judiciário tem interpretação restrita do princípio e mantém encarceradas pessoas que furtaram alimentos ou valores muito pequenos. Por isso, para ele caberia ao Legislativo aperfeiçoar a lei neste sentido.

O advogado criminalista Antônio Lázaro Neto também destaca que tanto o furto por necessidade quanto o furto insignificante já são reconhecidos em decisões judiciais aplicadas no Brasil. “Dito isso, verifica-se que o projeto vai ao encontro da jurisprudência dos Tribunais Superiores, conferindo apenas menor rigor para a aplicação desses entendimentos”, disse.

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Tribunais superiores já seguem jurisprudência encerrando ações penais em alguns casos de furtos (FOTO: Carlos Moura/STF) 

Segundo ele, configura estado de necessidade quando os bens subtraídos são gêneros alimentícios e que não representem acréscimo ao patrimônio do indivíduo. No caso do princípio da insignificância, devem estar presentes, cumulativamente, quatro condições objetivas que foram explicadas recentemente pelo Estadão Verifica. Em resumo, a ação não pode ser grave, violenta, nem muito reprovável. Também é preciso que o crime não seja consumado - por exemplo, quando o segurança de uma loja impede a ação.

A proposta do PSOL está apensada ao PL 1244/11, que tem o mesmo objetivo e foi apresentado em 2011 por João Campos (PSDB/GO). O texto poderá ser votado no Plenário em breve caso seja aprovado um requerimento de urgência. Além de prever o fim da criminalização do furto em questões bem específicas, o Estadão Verifica já havia demonstrado no ano passado que o projeto não “profissionaliza” o roubo ou furto, pois não há menção no texto à criação de uma nova categoria profissional nem de direitos trabalhistas.

Defensoria Pública

A alegação enganosa de que a DPU promove projeto para legalizar o roubo ou o furto circula desde meados de 2022, mas voltou a ser bastante compartilhada em redes sociais nos últimos dias. Na verdade, o órgão elaborou a Nota Técnica Nº 17, divulgada pela revista Consultoria Jurídica (Conjur) em julho do ano passado, afirmando ser favorável à aprovação do projeto que trata de furtos específicos.

O estudo sustenta que defender a descriminalização ou a não privação de liberdade de quem comete pequenos furtos não significa defender a impunidade, mas destacar que o direito brasileiro possui outros mecanismos eficazes e menos custosos para a reprovação, prevenção e, sobretudo, reparação do dano causado pelo ilícito.

Defensoria Pública da União é favorável a aprovação do projeto que trata de furtos específicos Foto: Ailton de Freitas/DP

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O órgão justifica o posicionamento afirmando serem incomensuráveis os custos sociais do processamento penal de pequenos furtos, como a superlotação carcerária e o fortalecimento das facções criminosas, além de citar os altos custos orçamentários das ações desta natureza e a ineficiência da política repressiva para a diminuição dos índices de criminalidade. A DPU observa, ainda, que a significância do bem subtraído deve ser analisada a partir do patrimônio da vítima do furto.

A diferença entre roubo e furto

A autora do vídeo desinforma, ainda, ao dizer que passaria a ser permitido “entrar num estabelecimento, numa farmácia, numa loja, em qualquer lugar comercial e roubar”. Conforme definido no Código Penal, o furto é diferente do roubo, caracterizado pelo emprego de grave ameaça ou de violência contra a vítima.

“Furto e roubo são crimes contra o patrimônio que possuem em comum o núcleo ‘subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel’. No roubo, contudo, o crime é praticado mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de reduzir, por qualquer meio, a capacidade de resistência da vítima, aplicando ‘boa noite, Cinderela’, por exemplo”, explica o advogado Antônio Lázaro Neto.

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Além disso, mesmo diante da aprovação do projeto, o crime de furto continuará existindo e sendo prática ilegal e que pode ser evitada pelas forças de segurança pública ou de estabelecimentos privados. O que está em debate é a ação penal e a possibilidade de prisão do indivíduo em casos específicos.

Pode furtar na Califórnia?

Sobre o caso da Califórnia, a alegação de que o estado norte-americano permite que pessoas se apropriem de até 950 dólares sem o risco de serem processados circulou na internet em um vídeo em que dois homens deixam uma loja com mochilas e braços cheios de roupas. O conteúdo era usado para espalhar a tese de que a legislação permitia a conduta livremente, o que não é verdade..

Segundo especialistas consultados pela Associated Press, houve uma distorção de uma lei estadual aprovada em 2014, que passou a classificar uma série de delitos menores como contravenções penais, e não crimes. A proposição também aumentou a quantia pela qual o furto pode ser caracterizado como crime, passando de 400 para 950 dólares.

A reportagem enviou uma mensagem ao Instagram da responsável por gravar o vídeo, mas ela ainda não respondeu.

Atualização: A DPU se manifestou na noite desta quarta-feira, 25, reforçando ser falsa toda associação da instituição a quaisquer medidas que supostamente legalizem a “profissão de ladrão” e ratificando as justificativas técnicas apresentadas por meio da Nota Técnica 17, de julho de 2022, e explicitadas no texto.

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