Um vídeo falso em circulação nas redes sociais afirma, de maneira equivocada, que o novo coronavírus mata apenas pessoas com doenças prévias e que os pacientes podem ser curados em casa, com antibióticos, sem a necessidade de respiradores. A declaração contraria evidências científicas e é refutada por dois especialistas consultados pelo Estado. Até a tarde desta quinta-feira, o conteúdo tinha mais de 1,1 milhão de visualizações no Facebook.
O relato falso começa com a história de que foram feitas 50 autópsias no Hospital Papa João XXIII, de Bérgamo, na Itália. A junta médica, que seria liderada por um médico italiano chamado Giampaolo Palma, supostamente teria descoberto que nove a cada dez vítimas do novo coronavírus, na verdade, tinham morrido de tromboembolia venosa, doença que consiste na formação de coágulos que obstruem as veias. O autor, então, faz uma série de afirmações infundadas e cita dados errados sobre o cenário da doença no país europeu, sem citar nenhuma fonte, para concluir que a covid-19 é "a maior mentira da história do século 21".
A pneumologista do Hospital Sírio-Libanês e livre docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Elnara Marcia Negri afirma que a formação dos coágulos dentro da circulação dos pulmões ocorre em alguns casos justamente em resposta à infecção. "O vírus entra pelo trato respiratório e destrói as células que revestem os pulmões, aí ocorre uma tempestade inflamatória e a hipercoagulação. O ar que a pessoa respira chega nos alvéolos (local nos pulmões onde ocorrem as trocas gasosas entre o ar e o sangue) e não consegue passar", explica.
Dessa forma, não faz sentido afirmar que a causa da morte não é a covid-19. "O vírus é que está causando essa resposta exacerbada. Ele é o culpado, sem dúvida", aponta a médica. Também não é verdade que apenas pessoas com doenças preexistentes acabam morrendo. "É mentira. Vemos jovens, sem nenhuma doença, com casos graves. Existe um fator genético que ainda não entendemos, pode estar relacionado à carga viral, mas de jeito nenhum essa afirmação é certa."
De acordo com o infectologista e diretor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia no Distrito Federal, José David Urbaéz, o que médicos italianos verificaram nas análises pós-óbito foi a presença dos chamados microtrombos, pequenos coágulos acumulados na circulação alveolar. "Isso é bem importante para instituir terapia anticoagulante em protocolos de tratamento. Sem esses trombos, a oxigenação do sangue no pulmão melhoraria e seria menor a necessidade de ventilação mecânica", afirma.
Em relação a esse ponto, há outra afirmação enganosa no vídeo, a de que a terapia com anticoagulantes dispensa os respiradores. "É preciso entender que a necessidade do respirador decorre da incapacidade do pulmão de oxigenar adequadamente o sangue. Esses trombos fechando os vasos contribuem para que ocorra essa falha da função pulmonar, mas não são a única causa", destaca Urbaéz.
Outra situação em que o uso do respirador se faz necessário é quando ocorre a destruição de células que revestem os alvéolos pulmonares. Nesses casos, o equipamento fornece mais concentração de oxigênio.
O autor do vídeo também desinforma ao dizer que, diante do problema, mesmo os casos graves deveriam ser tratados em casa, com antibióticos. A pneumologista Elnara Marcia Negri esclarece que o tratamento da obstrução das veias é feito com anticoagulantes, e não antibióticos, e que esse é um tratamento de suporte, entre outros. A especialista faz ainda um alerta à população sobre a automedicação: "As pessoas não devem tomar (anticoagulantes) por conta própria. Se fizerem isso sem estarem com hipercoagulação, elas podem apresentar sangramentos graves no estômago, no intestino, no cérebro."
O infectologista José David Urbaéz acrescenta que não há fundamento para tratar casos graves da doença em casa e que antibióticos são usados apenas para o tratamento de infecções bacterianas que podem aparecer nos pacientes. Afirma ainda que a presença de microtrombos nos pulmões é apenas uma das complicações da covid-19, entre uma série de problemas, como arritmias cardíacas, insuficiência renal e a própria pneumonia.
Pesquisa liderada por 'Giampaolo Palma' não existe
O autor do vídeo afirma que se baseou em declarações de um médico chamado Giampaolo Palma, que teria liderado uma pesquisa na Itália. O Estadão Verifica não encontrou nenhum artigo científico assinado com esse nome. Além disso, outra postagem do perfil coloca como "prova" uma notícia atribuída ao veículo italiano LaPresse. Por meio de busca avançada no Google, o Estadão Verifica observou que nenhum artigo contendo o termo "Giampaolo Palma" foi publicado no site.
Com base na descrição sobre o suposto estudo realizada por meio de autópsias em Bérgamo, a reportagem encontrou um relatório preliminar (ainda sem revisão por outros acadêmicos) divulgado na plataforma medRxiv, em 22 de abril. Foram analisadas 38 vítimas de covid-19 nos hospitais Papa João XXIII, em Bérgamo, e Luigi Sacco, em Milão. Quinze profissionais assinam o artigo, mas nenhum é Giampaolo Palma.
A pesquisa descobriu que 33 vítimas (86%) apresentavam trombos de fibrina (coágulos) em pequenos vasos arteriais nos pulmões. "Nossos dados apoiam fortemente a hipótese proposta por estudos clínicos recentes de que a covid-19 é complicada ou está, de alguma forma, estritamente relacionada com coagulopatia (distúrbios na coagulação) e trombose". Os pesquisadores, porém, não afirmam em nenhum momento que o uso de respiradores é dispensável, que os pacientes poderiam ser tratados em casa com antibióticos ou que essa foi a principal causa da morte em pacientes infectados pelo coronavírus, como consta no vídeo falso.
O Estadão Verifica entrou em contato com o Hospital Papa João XXIII, de Bérgamo, na Itália, por e-mail, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.
Autor inventa dados para apontar 'fraude' da covid-19
O autor do vídeo utiliza números falsos, sem citar fonte alguma, para dizer que a covid-19 é uma "fraude". O Estadão Verifica procurou fontes confiáveis e informações oficiais para rebater cada uma delas.
Ao contrário do que afirma o vídeo, as mortes na Itália neste ano apresentaram aumento significativo em relação aos anteriores. De acordo com relatório elaborado pelo Instituto Nacional de Estatísticas (Istat) e pelo Instituto Superior da Saúde (ISS), o país europeu teve 49,9% mais mortes em março de 2020 do que a média do mês nos cinco anos anteriores (2015-2019). Na região de Bérgamo, a alta foi de 568%. A mortalidade direta por covid-19 era estimada em 13,7 mil pessoas na ocasião em que o relatório foi divulgado, com provável subnotificação de casos.
Também não é verdade que os hospitais da Itália "nunca estiveram cheios" e hoje "estão vazios", como afirma o conteúdo falso. Diversas fontes relataram que o sistema de saúde chegou ao limite em março. A primeira redução no número de internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) só ocorreu em 4 de abril. Nesse meio tempo, foi necessário aumentar em 64% o número de leitos de cuidado intensivo. Além disso, nesta quinta-feira, 7, haviam 1.311 pacientes internados em estado grave e 15.139 pessoas hospitalizadas com sintomas, conforme dados da Defesa Civil da Itália.
Estatísticas oficiais da Universidade Johns Hopkins mostram que a Itália, até esta quinta-feira, 7, tinha 29.684 mortes por covid-19 e 214.457 casos confirmados. O país era o terceiro com mais óbitos e casos, atrás apenas de Estados Unidos e Espanha. A taxa de mortalidade era de 13,8% com 49 mortes a cada 100 mil habitantes.
Outra afirmação falsa do vídeo é que a taxa de letalidade entre os pacientes internados está situada "entre 80% e 90%". Estudo publicado no Journal of the American Medical Association com 1.591 pacientes em estado crítico na região da Lombardia, na Itália, entre 20 de fevereiro e 18 de março, afirma que a taxa de letalidade era de 26%.
Os números, porém, variam conforme estudos e países. Outro artigo publicado no mesmo periódico aponta taxa de 49% na China entre 72.315 casos até 11 de fevereiro, por exemplo, enquanto relatório preliminar com 16.749 pacientes no Reino Unido, com base em 166 hospitais, indicou percentual de casos fatais de 33%.
Especialistas estão pesquisando, de fato, a influência do tratamento com anticoagulantes em pacientes internados. Estudo conduzido em Nova York, Estados Unidos, indicou taxas de letalidade de 29,1% entre os pacientes com respiradores e tratados com anticoagulantes, contra 62,7% apenas com o uso do equipamento -- eram 395 pacientes no total. No início de abril, o Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, começou a testar o medicamento heparina para casos graves de infecção. A experiência foi abordada em artigo recente da revista Science.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o surto da doença causada pelo novo coronavírus constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional -- o mais alto nível de alerta, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional. Desde 11 de março, a covid-19 é caracterizada como pandemia. Até esta quinta-feira, 7, a OMS informava 3,68 milhões de casos confirmados e 254,1 mil mortes no mundo.
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O vídeo original é de Daniel D'Andrea e foi publicado em seu canal do YouTube no dia 25 de abril, com 250 mil visualizações até a tarde desta quinta-feira, 7. Republicado por outros perfis no Facebook, alcançou mais de 1,1 milhão de visualizações e 49,8 mil compartilhamentos na plataforma.
As declarações do vídeo se assemelham a correntes de WhatsApp e textos compartilhados nas redes sociais desde abril, que também continham supostas revelações de autópsias em Bérgamo, na Itália. O G1, a Folha de S. Paulo e o Boatos.org desmentiram esses conteúdos, assim como o núcleo de fact-checking da The Associated Press, em espanhol.
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