É falso que o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), tenha anunciado que irá acabar com o fornecimento de água encanada na zona rural do estado e substituir o sistema por cisternas, que já existem na região. Em uma série de vídeos feitos para o Kwai, um homem mostra o quintal de uma casa na comunidade de Purão, município de Trairi, afirma que a água encanada foi levada ao local por Jair Bolsonaro (PL) e que, agora, um governador do PT deu um prazo de 60 dias para desligar o sistema e retirar as tubulações. É mentira. Não há qualquer declaração pública de Elmano de Freitas sobre o assunto, nem publicações no Diário Oficial do Estado desde que ele assumiu o governo. Pelo menos três secretarias de governo e órgãos públicos negaram qualquer possiblidade de desligar o sistema de abastecimento por água encanada no local.
Um dos vídeos alcançou mais de 568 mil visualizações no Kwai e foi republicado em uma página de direita no Instagram, onde soma mais 130 mil visualizações, além de 50 mil curtidas e comentários. O autor das imagens afirma morar na capital, Fortaleza, que fica a 126 quilômetro de Trairi. O homem afirma que Bolsonaro levou água ao Nordeste – afirmação que já foi checada pelo Estadão Verifica – e que mesmo assim a população elegeu Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Sem apresentar fontes ou provas do que diz, ele afirma que agora o governador anunciou que a água encanada será desativada. “Se lascaram. Agora vão mandar eles fazer o L (sic)”, ironiza.
Na verdade, o sistema de abastecimento de água encanada de Trairi não foi feito pelo governo federal, e sim pelo governo do Estado, através do Projeto São José III, gerido pela Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA). Em dezembro de 2019, quatro sistemas de abastecimento de água encanada foram entregues para comunidades rurais de Trairi, incluindo o povoado de Purão, beneficiando 963 famílias. O investimento foi de R$ 3,51 milhões, vindos de um empréstimo do governo do Ceará junto ao Banco Mundial.
De acordo com a SDA, não será realizado nenhum desligamento nas tubulações de água no interior do Ceará, nem existe qualquer prazo para que a famílias voltem a usar cisternas. “A posição do Governo é de uma continuação da política de ampliação do saneamento rural por meio da implantação de sistemas de água como Projeto São José e outros, e não o inverso. Além dos sistemas, obras hídricas e de gerenciamento e alocação de água são executadas para garantir a segurança hídrica do Estado, levando dignidade para todos os cearenses”, disseram, em nota, as secretarias estadual de Desenvolvimento Agrário e das Cidades.
A Secretaria de Cidades tratou o vídeo como “fake news”. A SDA informou que, de 2014 a 2022, foram implantados 211 sistemas de abastecimento de água no estado pelo projeto São José III e outros 20 pelo São José IV, ambos do governo estadual. Foram feitas, no período, 26.198 ligações residenciais de água encanada. Pelo programa Água para Todos, do governo federal, foram 541 sistemas de abastecimento, atendendo a 34.643 pessoas em todo o Ceará. Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, apontam que todo o sistema de abastecimento de água no município de Trairi era feito, na época, pelo governo estadual ou por rede privada – nenhuma rede era federal ou municipal.
Companhia de Água esteve no local
O autor do vídeo não diz onde fez as imagens. Quem identificou o local da gravação foi a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), que faz a distribuição de água encanada no local através do Sistema de Integrado de Saneamento Rural (Sisar). Em nota, a Cagece disse que o abastecimento da comunidade de Purão encontra-se funcionando normalmente.
“A companhia acrescenta que equipes técnicas estiveram no endereço na tarde desta quinta-feira, 5, e constataram a normalidade do abastecimento de água. É inverídica a informação de que a distribuição de água encanada será interrompida”, diz a nota.
O Estadão Verifica buscou por elementos no vídeo verificado e em outros conteúdos feitos pelo mesmo autor e no mesmo local e encontrou pelo menos um que confirma que o vídeo foi mesmo feito na zona rural de Trairi: um modem de internet que aparece em uma das gravações. O homem que produz as imagens também afirma, em outro momento, que o governo do Ceará irá acabar com um programa de internet implantado pelo governo Bolsonaro, e mostra os aparelhos que, segundo ele, existem graças ao último governo.
O modem, no entanto, não possui qualquer identificação do governo federal, e sim um adesivo da ADNET Telecomunicações. É a mesma logomarca que aparece na foto de perfil da ADNET no Instagram, onde há imagens de manutenção em torres na Lagoa do Feijão, também em Trairi, onde fica a sede da microempresa.
Além disso, embora não seja possível identificar o ponto exato no distrito de Purão onde o vídeo foi gravado, as imagens se assemelham a fotografias do local disponíveis no Google Maps. A vegetação presente é característica do bioma Caatinga, que cobre o território de Trairi.
Cisternas foram colocadas por Lula e Dilma?
O autor do vídeo mostra uma cisterna no quintal da casa onde é feita a gravação e afirma que os equipamentos são do tempo dos governos de Lula e Dilma Rousseff (PT). É uma meia verdade. O Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais, conhecido popularmente como Programa Cisternas, foi implantado em 2003, no primeiro governo de Lula, com o objetivo de promover convivência com a escassez de água em comunidades do semiárido brasileiro. O programa instalou cisternas familiares – com capacidade de armazenar até 16 mil litros de água potável –, escolares, para até 52 mil litros, e cisternas de água para produção, com capacidade de 52 mil litros para uso individual ou coletivo.
Um levantamento feito no ano passado pelo UOL mostrou que, durante o governo Bolsonaro, os investimentos no Programa Cisternas foram reduzidos e, nos últimos meses de mandato, o ex-presidente apenas executou contratos antigos. De 2003 a 2018, o governo federal entregou 929 mil cisternas de água para o consumo humano, enquanto em todo o governo Bolsonaro, foram 37,6 mil. O recorde negativo de entregas foi em junho de 2022: apenas 18 cisternas. No final do mandato, Bolsonaro gastou R$ 814 milhões para compra de cisternas de polietileno, que custam o dobro do preço das tradicionais.
Em outro vídeo feito no mesmo local pelo homem, aparece uma placa e um número na cisterna filmada: 4.551. O Estadão Verifica buscou informações sobre o equipamento junto ao governo federal, mas não obteve resposta. Apesar de o homem dizer que a cisterna da casa é dos governos Lula e Dilma, é possível ver a marca do governo Bolsonaro no canto inferior direito da imagem.
O autor do vídeo foi procurado através de mensagem em seu perfil no Kwai, mas não respondeu até a publicação deste texto. A Prefeitura Municipal de Trairi também não se manifestou.
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