Artigo citado em peça de desinformação não serve para indicar toxicidade de imunizantes

Revista sem credibilidade publicou texto alegando que elementos perigosos não listados foram encontrados em imunizantes; especialistas dizem que contaminação é improvável, e autores não responderam

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Foto do author Clarissa Pacheco

O que estão compartilhando: que autoridades de saúde da Argentina pediram a suspensão imediata do uso de vacinas contra a covid-19 que utilizam a tecnologia de RNA mensageiro. Postagem alega que um estudo científico teria encontrado 55 elementos químicos “mortais”, dentre eles o arsênico, nos imunizantes de seis empresas farmacêuticas.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O Estadão Verifica conversou com três químicos e uma médica pediatra sobre o perfil de segurança dos imunizantes. Eles disseram não haver razão para acreditar que as vacinas sejam tóxicas ou que elementos químicos “mortais” estejam escondidos nos imunizantes. Eles não fazem parte da formulação das vacinas, e a chance de contaminação é pequena devido à fiscalização das agências regulatórias.

Todas as seis vacinas citadas na publicação foram aprovadas e têm autorização para uso na Argentina pela Administración Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica (ANMAT). Atualmente, duas delas estão disponíveis: a Spikevax, fabricada pela farmacêutica Moderna, e a ComiRNAty, da Pfizer.

Os autores do estudo citado foram procurados, mas não responderam até a publicação desta checagem. O Verifica também procurou os fabricantes das seis vacinas citadas na publicação: AstraZeneca/Oxford, CanSino Biologics, Pfizer/BioNTech, Sinopharm, Moderna e Sputnik. A Pfizer disse que a alegação não procede e que, até o momento, já foram aplicadas 4,8 bilhões de doses da vacina CormiRNAty em 183 países, sem registro de alertas de segurança. A AstraZeneca informou que não se posiciona sobre temas que não têm base científica. As demais não responderam.

 Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: o post checado citou alegações presentes em um artigo publicado em uma revista criada em 2020. A publicação é conhecida entre cientistas como um veículo sem credibilidade e com um corpo editorial formado por membros de grupos antivacina.

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O periódico adota um tom abertamente negacionista quanto aos imunizantes de um modo geral e à própria pandemia de covid-19. Defende que ela foi “criada e alardeada” por Anthony Fauci, infectologista norte-americano (leia mais aqui, aqui, aqui e aqui). Já o artigo citado chama os imunizantes de “experimentais”, termo enganoso que é utilizado para desinformar sobre a vacinação.

Imunizantes continuam autorizados e disponíveis na Argentina

O Ministério da Saúde da Argentina tem uma página em seu portal online dedicada a perguntas frequentes sobre as vacinas contra a covid-19. Todas as seis marcas citadas na postagem checada constam como autorizadas para uso no país. As duas vacinas disponíveis atualmente são a da Moderna e a da Pfizer. Elas utilizam a tecnologia do RNA mensageiro (mRNA) para fazer as células humanas produzirem apenas uma parte específica do vírus. Essa parte não tem capacidade de contaminar o corpo e serve para que as células de defesa reconheçam o vírus e possam combatê-lo em infecções futuras.

O Estadão Verifica consultou os alertas e recalls publicados pela ANMAT, a agência reguladora similar à Anvisa, no Brasil. Não há nenhum registro de recomendação para suspender o uso de vacinas desde a publicação do artigo, em 11 de outubro deste ano.

O Ministério da Saúde da Argentina e a ANMAT foram procurados, mas não responderam até a publicação.

Especialistas contestam a presença de elementos tóxicos nas vacinas

Para Adriano Andricopulo, professor titular de Química Médica da USP e presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP), é muito improvável que os metais pesados citados no artigo estejam, realmente, presentes nas vacinas. Elas precisam passar por um processo de purificação rigoroso para serem aprovadas pelas agências regulatórias. “Quando se fala em elementos como arsênio, níquel, cobre… Eles não são usados como ingredientes, não fazem parte da composição”, diz.

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A química Marcia Mesko, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Química da UFPel, membro da Diretoria da Sociedade Brasileira de Química e componente do Grupo de Trabalho de Impurezas Elementares da Farmacopeia Brasileira/ANVISA, explica que as pessoas estão expostas a contaminantes no dia a dia, desde maquiagens a alimentos. A legislação vigente determina os limites máximos tanto para contaminantes orgânicos – como resíduos de dissolventes usados nos processos – como para os inorgânicos, que podem estar presentes nos elementos químicos.

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“A gente pode dizer que, nesse artigo, em nenhum momento eles falam que alguns dos elementos estão presentes e em concentrações acima da legislação permitida”, explica Marcia. “Então eles deveriam ter verificado a legislação para dizer se esses elementos são controlados e se há e se algum deles está acima do permitido.”

A médica pediatra Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações, diz que não há sentido em supor que as vacinas estivessem escondendo esses elementos. “Tudo que foi colocado na vacina tem que ter na bula. Mesmo algo que não seja um ingrediente, mas que está no processo, como um conservante, precisa estar descrito para a agência reguladora que vai aprovar.”

Para a especialista, caso os imunizantes estivessem trazendo riscos às pessoas por causa de supostas contaminações, as agências reguladoras como a norte-americana (FDA), a europeia (EMA) e até a Organização Mundial da Saúde teriam notado. No entanto, a realidade mostra o contrário. Bilhões de doses foram aplicadas em todo o mundo. Os dados mostram que os imunizantes são seguros e foram necessários para controlar as taxas de mortalidade da covid-19.

Alumínio é usado em concentrações seguras, mas não nos imunizantes citados

Alguns dos elementos citados podem ser usados em vacinas. O alumínio, por exemplo, é um adjuvante e serve para acelerar a resposta imunológica, explica Andricopulo. No entanto, ele não está presente nas vacinas da Pfizer e da Moderna.

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Também químico, o professor Luiz Carlos Dias, da Unicamp, explica que, dos metais citados no artigo, apenas o alumínio poderia estar presente numa quantidade um pouco maior nas vacinas, mas mesmo assim, os níveis não são tóxicos. “Não tem nada alarmante (no que diz o artigo). O único elemento presente numa quantidade um pouco maior, que possa trazer algum risco, seria o alumínio, mas desde que a pessoa tomasse centenas de doses de vacinas”, afirma Dias.

O mercúrio também é utilizado pela indústria na base de alguns conservantes, diz Isabella. Ela explica que é um tipo da substância que não é tóxico. “Quando se fala de mercúrio, as pessoas só conhecem o que faz mal. Mas são dois tipos de mercúrio: um tóxico, que destrói os rios, que matou os yanomamis, mas que não é usado nas vacinas; e outro, que não tem nenhuma contraindicação e não faz nenhum mal, que é um conservante.”

O mercúrio tóxico se chama metilmercúrio. Já o utilizado em vacinas é o etilmercúrio, um derivado do mercúrio usado como um dos componentes do timerosal, conservante utilizado em vacinas em que há mais de uma dose por frasco. O etilmercúrio também é usado como antisséptico em cosméticos, medicações tópicas, lentes de contato, colírios e até soluções para os ouvidos.

Técnica utilizada em artigo não serve para apontar toxicidade das vacinas

De acordo com o químico Luiz Carlos Dias, o artigo não permite alegar que os autores tenham encontrado os elementos citados. As quantidades mencionadas são ínfimas, e não tóxicas ou mortais, como sugere a postagem checada.

Segundo ele, o nível de sensibilidade da técnica supostamente usada no artigo -- espectrometria de massa com plasma indutivamente acoplado (ICP-MS) -- é capaz de identificar traços de elementos químicos em partes por bilhão ou por trilhão. “Você vai detectar quase toda a tabela periódica até na água potável (com essa técnica)”, fala Dias.

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Para ele, o artigo omite que o alumínio é um dos elementos mais abundantes na natureza. “Tem alumínio em tudo: na água, no solo, no ar, em praticamente tudo que nós ingerimos, em todas as comidas, em todas as bebidas, e o mesmo vale para todos esses elementos que eles citam aí no artigo”, pontua.

A portaria 888/2021, do Ministério da Saúde dispõe sobre os níveis de substâncias químicas orgânicas e inorgânicas na água potável. Ela mostra a presença de diversos dos elementos presentes na água consumida diariamente em concentração similar à supostamente encontrada nas vacinas, incluindo o arsênio e o alumínio.

“É uma técnica muito sensível, então ela vai detectar tudo mesmo. Detectar é diferente de ter a quantidade no nível que seja tóxico”, afirma Dias. “Não é o que acontece aqui, as quantidades são extremamente pequenas. Se tem (esses elementos) na água potável, como não vai ter nas nas vacinas, que usam a água para preparar, para diluir? Então, é um trabalho muito desonesto, com claro viés negacionista, antivacinas, sem método de validação adequado reconhecido.”

Esses elementos podem fazer mal à saúde?

Em grandes concentrações, alguns deles podem ser tóxicos. No entanto, todos os imunizantes, assim como medicamentos e outros produtos que precisam de autorização de órgãos regulatórios, passaram por etapas rigorosas para remover impurezas e qualquer contaminante.

“O principal recado para as pessoas é que as empresas fiscalizam isso e as agências regulatórias também, o que nos deixa muito tranquilos em relação à qualidade das vacinas. Hoje, bilhões de doses já foram aplicadas no mundo inteiro e é feito esse acompanhamento. Nós tomamos as vacinas e essa é a farmacovigilância em tempo real. Imagina se elas estivessem contaminadas, imagina que efeitos adversos não teríamos?”, questiona Adriano Andricopulo.

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Como lidar com conteúdos como esse?

Autor do livro ‘Não há mundo seguro sem ciência: a luta de um cientista contra as pseudociências’ (Editora Paraquedas), o químico Luiz Carlos Dias aponta que, após a pandemia, surgiram diversas revistas científicas “predatórias”, de baixo nível e sem revisão por pares, com o propósito de dar espaço para publicações de tom negacionista.

Ele reconhece que é difícil, para o público em geral, identificar um periódico assim. Mas, alguns deixam o viés muito claro, como é o caso do artigo investigado, que usa as primeiras linhas para questionar as vacinas e a própria pandemia de covid-19. “Não se pode levar a sério algo que já começa com essa tendência”, diz.

Segundo ele, é a partir de publicações assim que, futuramente, aparecem pessoas oferecendo tratamentos para desintoxicar o corpo desses elementos supostamente tóxicos, como os tratamentos de “detox vacinal” e “reversão vacinal”.

Isabella Ballalai, da SBIm, diz que as pessoas precisam se atentar a questões práticas, como a ausência ou baixíssimo número de óbitos relacionados de fato à vacina. Ela lembra que, apesar de conteúdos negacionistas viralizarem nas redes, os brasileiros, em sua maioria, acreditam e confiam nas vacinas. “É uma minoria que acredita nisso e segue, são os que são impactados e se informam apenas pelas mídias sociais. Mas, 90% dos brasileiros ainda têm a televisão como a principal fonte de informação. Então, quando elas se vêem em risco, ou um parente em risco, elas tomam a vacina”, diz.

De acordo com o Ministério da Saúde, 522.186.952 de doses de vacina contra a covid-19 já foram aplicadas no Brasil até 29 de outubro de 2024.

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