É enganoso afirmar que o consumo diário de álcool em quantidades moderadas seja capaz de prevenir doenças como Alzheimer, Parkinson, trombose, infarto, diabetes tipo II e câncer. Estudos que fazem essas associações são observacionais, ou seja, sugerem que possa haver relação entre os fatores, porém não a comprovam. Além disso, médicos afirmam que o consumo de pequenas doses de álcool pode ser permitido na dieta dos pacientes, mas não é recomendado como prevenção de doenças.
No Instagram, um empório de bebidas divulgou um vídeo contendo imagens de cientistas realizando pesquisas e de bebidas alcoólicas sendo servidas e consumidas. A narração e a legenda do vídeo citam como motivos pelos quais as pessoas deveriam consumir cerveja diariamente pesquisas recentes que apontam que o álcool ajuda a prevenir doenças como Alzheimer, Parkinson, trombose, infarto, diabetes tipo II e principais tipos de câncer. O conteúdo acrescenta que o consumo diário de 355 ml de cerveja, de 150 ml de vinho ou de 50 ml de bebida destilada pode prolongar a vida, além de fazer bem para o estado emocional.
Na postagem não é fornecida a fonte da afirmação. Usuários questionam isso nos comentários e como resposta o estabelecimento divulga link para uma notícia do jornal O Globo. O texto cita pesquisas sobre supostos benefícios do álcool, mas alerta que o uso abusivo está associado a diversos problemas de saúde e que não há quantidade segura de consumo. A reportagem informa ainda que a baixa ingestão de álcool é suficiente para aumentar a probabilidade de problemas de saúde, como alguns tipos de câncer. Essa recomendação não é feita na postagem na rede social.
O Estadão divulgou nesta semana uma análise de mais de 40 anos de pesquisas que concluiu serem falhos muitos dos estudos que sugeriram que consumir moderadamente bebidas alcóolicas era melhor do que não beber nada, para a saúde da maioria das pessoas. Conforme o levantamento, o oposto é verdadeiro.
A pesquisa foi publicada recentemente na conceituada revista Journal of the American Medical Association (Jama) e foi citada ao Verifica pela endocrinologista Lúcia Cordeiro, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), como exemplo de que os estudos associando o consumo de álcool à longevidade e à prevenção de doenças não são conclusivos. “As principais sociedades internacionais e a Organização Mundial de Saúde (OMS) não permitem o uso do álcool com o objetivo de longevidade ou para evitar diabetes, por exemplo, porque existem estudos favoráveis e estudos contra”, disse.
Ela destacou que as pesquisas que fazem associação entre álcool e boa saúde são observacionais. Ou seja, nesses estudos os autores perguntam a uma população sobre seus hábitos, mas não avaliam outros fatores, como, por exemplo, se essas pessoas praticam atividade física e o histórico de longevidade na família. Isso torna a pesquisa inapropriada para servir de base para recomendações médicas.
“Esse estudo publicado recentemente na Jama pegou vários estudos anteriores e refez a análise, juntando mais de 5 milhões de pacientes e constatando que muitos estudos favoráveis têm erros de metodologia e que não podem garantir que o consumo de álcool, mesmo moderado, faça bem para a saúde”, explicou Lúcia.
Essa análise aponta, por exemplo, que os riscos de morrer prematuramente aumentam significativamente para as mulheres quando elas bebem 25 gramas de álcool por dia. Isso equivale a menos de dois coquetéis padrão contendo cerca de 45 ml de destilados, duas cervejas de cerca de 355 ml ou duas taças de cerca de 150 ml de vinho. Os riscos para os homens aumentam significativamente com 45 gramas de álcool por dia, ou pouco mais de três drinques.
“O álcool é aceito socialmente, mas não podemos inferir que seja uma substância saudável, que traga longevidade, benefícios anti-inflamatórios”, disse Lúcia. “Mesmo em relação ao vinho tinto, que tem o resveratrol (um polifenol antioxidante), não é recomendado utilizar o álcool como benefício para a saúde”.
Além disso, a médica destaca que em quantidades maiores o álcool é sabidamente prejudicial. “Diabetes, por exemplo, é uma doença muito relacionada às questões hepáticas, como a cirrose, e o consumo do álcool potencializa os riscos. Na verdade, não se recomenda (consumo de álcool) como forma de prevenir e melhorar a inflamação, de jeito nenhum”, concluiu.
O cardiologista Protasio Lemos da Luz, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), há anos pesquisa a associação entre o vinho tinto e a saúde e também destaca que os estudos envolvendo os benefícios são apenas observacionais. “Nestes casos se pega uma determinada população e vai se ver se um fator x influencia na evolução”, explicou. “Mas não há controle e os chamados fatores de confusão alteram muito os resultados: se alguém fuma, se trata hipertensão, obesidade, por exemplo”.
Ele acrescenta que, nos casos estudados por ele, os efeitos positivos do vinho tinto são advindos do polifenóis, não do álcool especificamente. Os estudos sugerem que pessoas que consumiram a bebida em dose baixa a moderada tiveram evolução melhor em relação às que não consumiram ou que consumiram doses maiores de álcool.
O vinho tem efeito vasodilatador, por causa dos polifenóis, e isso foi testado em pessoas jovens que tinham colesterol alto. Porém, as pessoas pesquisadas consumiram tanto vinho como suco de uva, e em ambos os casos houve o aumento de vasodilatação, o que também foi observado em outros estudos.
Os polifenóis também evitam que placas de gordura se grudem nas paredes dos vasos sanguíneos. Isso, junto ao efeito antioxidante, justificaria as observações de que o vinho tinto, em dose baixa, possa ser benéfico. “Mas insisto que vinho não é equivalente a álcool nesse caso e tem a questão da dose. Além disso, há contraindicações, há pessoas que não podem tomar bebida alcoólica sob qualquer forma. Por exemplo, quem tem arritmia cardíaca, insuficiência cardíaca, doença hepática ou histórico de alcoolismo”, declarou o médico.
Protasio da Luz garante que na prática clínica não é recomendado o consumo de álcool. “Como cardiologista eu não prescrevo nem o vinho. Eu digo que, se a pessoa tem doença aterosclerótica e não tem contraindicações ao consumo, eu não proíbo, mas eu não vou recomendar”, disse.
Sobre outros casos, como de Alzheimer, menor ocorrência de diabetes e proteção contra o câncer, ele cita também haver estudos associando benefícios, mas, outra vez, reforça que são de observação, não conclusivos. “São estudos que sugerem, mas não são indicações”, disse. “Nós, médicos, em geral, sugerimos às pessoas uma dieta cheia de restrições, como não comer gordura, por exemplo, mas no caso do vinho tinto, para uma pessoa sem contraindicações, eu acho que a restrição não precisa ocorrer. Mas isso é muito diferente de dizer ‘tome’ para todo mundo. É querer dar uma solução simples para um problema complexo, e isso é errado”, finalizou.
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