O que estão compartilhando: postagem associa o programa Bolsa Família à “estratégia Cloward-Piven”, que seria um plano criado por sociólogos na década de 1960 para “incentivar o aumento massivo de beneficiários de programas sociais até que o sistema de bem-estar social colapse por aumento de demanda”. Este seria um “caminho radical para a transição ao socialismo”.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. A postagem distorce um artigo assinado pelos professores da Universidade de Columbia Richard Cloward e Frances Fox Piven em 1966. No texto, eles propunham aumentar o número de beneficiários de programas sociais para gerar uma crise de sobrecarga no sistema de bem-estar social. Isso seria atingido por meio de campanhas de educação sobre benefícios sociais, ameaças legais e manifestações massivas. O objetivo deles era alcançar a criação de um programa de distribuição de renda para a população nos Estados Unidos.
Saiba mais: O conteúdo verificado aqui foi postado na primeira semana de outubro pela deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC). Ela foi procurada pelo Verifica, mas não respondeu. A postagem soma mais de 23 mil curtidas no Instagram.
O texto do post sugere que a “estratégia Cloward-Piven” estaria por trás de benefícios sociais como o Bolsa Família no Brasil. Segundo a postagem, a estratégia seria um “caminho radical para se chegar ao socialismo”, por meio do “incentivo ao aumento massivo de beneficiários em programas sociais”. Mas a postagem distorce a teoria dos dois sociólogos.
O que diz a teoria de Cloward e Piven?
O professor do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP) Guilherme Grandi, especialista em História Econômica e Economia Brasileira, explica que a associação feita na postagem entre o Bolsa Família e a estratégia Cloward-Piven não se sustenta. De acordo com ele, o objetivo proposto na década de 1960 era a criação de um sistema de renda mínima para população nos Estados Unidos, por meio de programas nacionais de distribuição de renda.
“A deputada confunde equidade e justiça social, logo, esses tipos de programas de combate à pobreza e desigualdade de renda com sistemas e regimes socialistas, como se tais propostas fossem estranhas em países capitalistas desenvolvidos baseados, portanto, em economias de mercado e nos ideários social e liberal”, disse o professor.
A “estratégia” Cloward-Piven foi descrita no artigo The Weight of the Poor: A Strategy to End Poverty (O peso dos pobres: uma estratégia para acabar com a pobreza), elaborado pelos professores Cloward e Piven, em 1966. No texto, os sociólogos afirmam que, naquela época, quase 8 milhões de pessoas sobreviviam com a ajuda de programas de assistência social, mas o número de pessoas que precisavam desses programas poderia chegar ao dobro. “A força para esse desafio, e a estratégia que propomos, é uma campanha massiva para recrutar os pobres para os programas de assistência social”, escrevem os dois.
O resultado desse “recrutamento”, de acordo com o texto, seria uma sobrecarga do sistema de bem-estar social. Isso levaria a mudanças na política de assistência aos mais pobres. “Uma série de campanhas de conscientização sobre programas de bem-estar social em grandes cidades poderia, acreditamos, impulsionar a criação de um novo programa federal para distribuir renda, eliminando o atual sistema de bem-estar social público e aliviando a pobreza extrema que ele perpetua”, diz o artigo.
O texto foi publicado novamente em 2015, na revista americana The Nation, com uma nova introdução escrita por Piven. O contexto da publicação original, de acordo com a socióloga, era a grande migração de pessoas do sul rural dos Estados Unidos para as grandes cidades do país. Isso motivou o surgimento de movimentos contra as privações econômicas que mantinham novos migrantes na pobreza.
O artigo visava entender esse contexto específico e propor mudanças. Ao jornal The Nation, Piven esclarece que o objetivo do artigo não era derrubar o capitalismo americano, ao contrário do que disseram críticos na época. “Não éramos tão ambiciosos”, ela escreve. “Mas pensamos que as minorias pobres e os seus aliados poderiam criar perturbação suficiente para forçar reformas nos programas americanos de apoio ao rendimento”, explica a socióloga.
Existe relação entre a teoria de Cloward e Piven e o Bolsa Família?
O Bolsa Família foi criado em 2003, a partir de outros programas sociais. O programa transfere renda a famílias em situação de pobreza e extrema-pobreza, que devem seguir determinados critérios para receber o benefício. Por exemplo, as gestantes devem fazer acompanhamento pré-natal e as crianças devem seguir a carteira de vacinação e ter frequência escolar mínima de 75% a 85%, dependendo da faixa etária. O benefício não impede que a pessoa trabalhe — ela só deixa de receber o Bolsa Família se a renda per capita da família ultrapassar o limite do programa, que é de R$ 218 mensais.
Tanto a estratégia Cloward-Piven como o Bolsa Família têm o mesmo objetivo, de erradicar a pobreza. Mas no programa brasileiro não existe a pretensão de criar uma sobrecarga no sistema de bem-estar social. Em 2021, um reportagem do Estadão mostrou que, entre as primeiras famílias contempladas pelo Bolsa Família, 69% conseguiram deixar o programa. Ex-beneficiários conseguiram inclusive gerar novos empregos. Dados de 2023 revelam que três milhões de famílias beneficiárias conseguiram sair da pobreza naquele ano e que o benefício conseguiu reduzir a pobreza na primeira infância.
Estudos experimentais conduzidos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontaram que programas como o Bolsa Família reduzem a pobreza em aproximadamente 20%. Esse dado foi levantado em estudo coordenado por Pedro Cavalcanti Ferreira. Segundo ele, é justamente no aspecto educacional que está um dos maiores benefícios do programa.
“Ao impor que os filhos estejam matriculados na escola como condição para ser beneficiário, este tipo de programa aumenta os índices de escolaridade básica e mesmo secundária. Através da maior escolaridade, esses indivíduos podem ter um melhor acesso a oportunidade de emprego, e consequentemente, um maior acesso a renda, auxiliando a própria família a quebrar o ciclo de pobreza”, afirmou o pesquisador à FGV.
Entretanto, o programa não está isento de críticas. Em entrevista ao Estadão em 2022, o responsável pelo programa Fome Zero no primeiro governo Lula, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, disse que o Bolsa Família não garante a solução permanente para o problema da fome. Segundo ele, os resultados do benefício são suscetíveis às mudanças econômicas e políticas, uma vez que o programa não exige que os beneficiários se tornem produtivos e nem lhes dá consciência crítica da cidadania. “Se não se introduzir a dimensão educativa nas políticas sociais, nós vamos ter um governo balcão de benefícios”, disse na entrevista.
Em setembro de 2024, o Tribunal de Contas da União (TCU) fez sugestões para melhorar a eficiência na distribuição dos recursos do Bolsa Família, como o fim do benefício complementar. O TCU concluiu que o complemento de R$ 600 mínimos por família prejudica a “equidade per capita” do programa. Isso ocorreria porque diferentes unidades familiares recebem o mesmo valor, independentemente do número de integrantes.
Outra conclusão da Corte de Contas é a desconexão do programa com o mercado de trabalho, algo apontado com recorrência por especialistas. Para o TCU, o atual desenho do Bolsa Família gera um impacto negativo no ingresso e na permanência no mercado de trabalho formal. Na prática, haveria um “desincentivo” à formalização.
Qual a relação entre Bolsa Família e carteiras de trabalho?
Uma das críticas que a postagem faz ao programa é a de que “o número de beneficiários do Bolsa Família ainda é maior que o de trabalhadores com carteira assinada em 12 das 27 unidades da Federação”. Essa informação foi divulgada mês passado pelo Poder360. Entretanto, é omitido que o texto original completa que indicadores recentes mostram um aumento no número de carteiras de trabalho em relação ao de beneficiários do Bolsa Família.
A matéria diz que, em comparação com o ano passado, foi observada uma expansão significativa do mercado de trabalho, enquanto o número de beneficiários do Bolsa Família teve uma queda. Isso seria motivado pela revisão de cadastros pelo governo federal, desde que o programa voltou à ativa.
Ao final, a reportagem do Poder360 afirma que não há consenso entre economistas sobre se um aumento no valor e no número de benefícios do Bolsa Família pode ter um efeito negativo no mercado de trabalho. Há pesquisas indicando que os aumentos ajudaram a dinamizar a economia, com criação de empregos formais. Ao mesmo tempo, outros estudos mostram sinais de um desincentivo a buscar emprego após as sucessivas ampliações do benefício nos últimos anos.
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