O que estão compartilhando: que um estudo publicado na revista Jama Network teria revelado que pessoas vacinadas contra a covid-19 tiveram quase o dobro de chance de contrair a doença em comparação com não vacinados. Em vídeo, um homem afirma que o estudo teria comprovado a eficácia negativa das vacinas.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O estudo intitulado “Eficácia da vacina contra a covid-19 no outono e inverno de 2022 a 2023 entre europeus mais velhos” (traduzido para o português) não mostrou que vacinados estão mais suscetíveis a contrair a doença em comparação com não vacinados. Na realidade, o trabalho científico avalia a duração da proteção oferecida pela vacina entre pessoas com 60 anos ou mais na Europa, além do melhor momento para a dose de reforço. Infectologistas consultados pelo Verifica afirmaram que, ao contrário do que sugere o vídeo verificado, o estudo confirma a boa eficácia das vacinas.
A reportagem entrou em contato com o autor do vídeo enganoso, mas não obteve retorno até o fechamento da verificação.
Saiba mais: o vídeo foi publicado no Instagram no dia 22 de agosto. Na gravação, o autor utiliza como referência um texto publicado no site da associação Médicos Pela Vida, que contém as mesmas interpretações enganosas sobre o estudo. A entidade criada na pandemia defende o “tratamento precoce” e o uso de hidroxicloroquina contra a covid-19. Ao falar em eficácia negativa das vacinas, o homem sugere que o estudo teria demonstrado que os imunizantes não protegem os pacientes, o que é desmentido por especialistas.
No estudo, foram acompanhados 9.308 pacientes de 11 lugares da Europa, todos acima de 60 anos. A pesquisa aponta que, três meses depois da vacinação, a eficácia estimada da vacina contra covid ficou entre 29% e 39%. Para variantes XBB, os índices foram de 44% a 52%. A eficácia estimada caiu à medida que o tempo passava, e chegou a zero seis meses depois da imunização. O intervalo de confiança dos dados da pesquisa é de 95%. Em termos simplificados, há 95% de confiança de que os dados estejam corretos dentro da margem de erro.
A conclusão da pesquisa é que a proteção da vacinação contra casos sintomáticos de covid durou ao menos 3 meses nos pacientes. Os autores recomendam que campanhas de vacinação sejam promovidas antes de picos de incidência da doença e que a eficácia dos imunizantes seja constantemente monitorada.
A pesquisa apresenta vários dados pormenorizados. Por exemplo, entre 14 e 89 dias após a vacinação, a eficácia da injeção contra a variante XBB foi de 44% em pessoas que não haviam se vacinado nos últimos 6 meses. Segundo os pesquisadores, esses resultados variaram de -10% a 75%, com intervalo de confiança de 95%.
Os resultados negativos aparecem em comparações específicas entre os grupos analisados pelo estudo para estimar a duração da proteção das vacinas. A divisão realizada pelos pesquisadores consistiu em comparar pessoas vacinadas na campanha de outono e inverno de 2022 a 2023 com diferentes subgrupos, chamados de grupos de referência. Nos grupos de referência, estão pessoas que não se vacinaram durante ou nos 6 meses anteriores à campanha, pessoas que nunca foram vacinadas e vacinados com pelo menos a primeira dose 6 meses ou mais antes do período da campanha. A efetividade negativa é resultado da metodologia do estudo e não muda a conclusão do trabalho científico.
De acordo com o cientista de dados Bráulio Couto, diretor da Associação Mineira de Epidemiologia e Controle de Infecções (Ameci), de fato há alguns resultados de eficácia negativa no artigo publicado na revista Jama Network. No entanto, a interpretação desses dados não é óbvia, já que é necessário levar em conta o intervalo de confiança (IC), que considera a margem de erro da pesquisa a cada etapa de comparação. “Os intervalos de confiança permitem generalizar os resultados observados na amostra de indivíduos pesquisados para toda a população de idosos representados pela amostra da pesquisa”, explicou.
O especialista acrescentou que, se o IC da eficácia da vacina for todo positivo – com o intervalo todo acima de zero –, então há evidência de que, quando este resultado é generalizado para a população, a vacina realmente protegerá os idosos. Se o IC passar pelo valor zero – se seu menor valor for negativo e seu maior valor for positivo –, então há um “empate” técnico, sem evidências para se afirmar que a vacina realmente protege aquela população. Já se o IC for totalmente negativo – se o maior e menor valor forem negativos –, então há evidências de que a vacina não protege os idosos. “Em 4 dos 30 intervalos apresentados no artigo os intervalos estão todos abaixo de zero, são negativos”, analisou.
Couto ressaltou, contudo, que mesmo quando o intervalo de confiança é todo negativo, tem que se avaliar outros fatores e vícios que podem levar a estes resultados. Segundo ele, em 16 dos 30 intervalos de confiança calculados, o resultado mostra eficácia significativamente positiva da vacina, com efeito protetor especificamente em até seis meses após a vacinação. “Usar um resultado de eficácia negativa para afirmar que vacinados tiveram quase o dobro de chance de pegar covid-19 em comparação com não vacinados é, no mínimo, leviano, nada científico”, pontuou.
Para o infectologista Carlos Starling, consultor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), o conteúdo utiliza do desconhecimento estatístico das pessoas para falar em variação negativa. “O ponto fundamental é que, na realidade, o trabalho não tem como objetivo avaliar a eficácia global da vacina, mas sim da revacinação em uma população extremamente heterogênea”.
De acordo com o pediatra e infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o que ocorre com as vacinas contra a covid-19 é exatamente o que acontece com os imunizantes contra a gripe: com o passar do tempo há uma perda de proteção. “A eficácia tende a zero depois de seis meses dependendo da faixa etária, da idade, do momento da vacina e da dose”, comentou.
Segundo Kfouri, há uma distorção da leitura de um gráfico presente no estudo que mostra exatamente que há uma perda de proteção após seis meses. O infectologista afirma que isso não significa que aumenta o risco de contaminação para vacinados em comparação com não vacinados. “Essa é a realidade das vacinas contra a covid hoje. Por isso, a gente não só busca vacinas mais atuais, como nos grupos de maior risco faz-se [o reforço] a cada seis meses. Pessoas imunocomprometidas, gestantes e idosos, têm que tomar o reforço a cada seis meses. Depois desse período a eficácia tende a zero”, explicou.
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O que o estudo conclui?
O estudo “Eficácia da vacina contra a Covid-19 no outono e inverno de 2022 a 2023 entre europeus mais velhos” foi publicado na revista Jama Network no dia 1º de julho deste ano. O trabalho científico consiste em um estudo de caso-controle, que são pesquisas epidemiológicas que coletam dados de um conjunto de pacientes com uma determinada doença ou evento (os casos), e compara com outro conjunto de indivíduos sem a doença (os controles). Nesses estudos, os dois grupos são comparados em relação à presença e ausência de fatores que podem afetar a ocorrência da doença investigada.
Conforme analisou o cientista de dados Bráulio Couto, o trabalho científico demonstrou que, durante o período de alta circulação da variante ômicron, as vacinas ofereceram uma proteção significativa contra infecções sintomáticas em idosos, mas perderam a eficácia após seis meses. Para a linhagem XBB, as vacinas ainda ofereceram proteção, apesar de perderem eficácia após 6 meses.
De acordo com Bráulio, o estudo conclui que uma abordagem sazonal de vacinação, semelhante ao que é feito na vacinação contra a gripe, funciona muito mais. A estratégia pode ser mais prática e eficaz do que tentar manter a imunidade alta o tempo todo. “Além disso, [o estudo] destaca a importância do monitoramento contínuo da eficácia das vacinas, especialmente com o surgimento de novas variantes do vírus, para garantir que as vacinas sejam atualizadas e permaneçam eficazes”, pontuou.
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