O que estão compartilhando: vídeo em que médico questiona por que haveria um aumento de mortes por todas as causas nos países mais vacinados contra a covid-19. Ele diz que isso estaria associado ao “câncer turbo”. O autor do vídeo acrescenta que existiria uma explosão de casos de câncer em jovens de 14 a 44 anos. E afirma, ainda, que não haveria dados reais sobre as complicações e benefícios das vacinas de RNA mensageiro.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso porque a publicação sugere, sem comprovação, uma relação causal entre as vacinas de RNA mensageiro contra a covid-19 e casos de câncer e mortes. Segundo a imunologista Fernanda Grassi, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), não existem estudos científicos que comprovem essa relação.
A Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) afirma que de fato houve aumento de casos de câncer em pessoas mais jovens, mas que eles podem estar associados a mudanças de comportamento nas últimas décadas, como obesidade e sedentarismo. A entidade destaca que faltam estudos mais amplos e conclusivos sobre o assunto.
Tanto a SBOC quanto o Instituto Nacional de Câncer (Inca) informam não existir “câncer turbo”. O mesmo é dito pelo Ministério da Saúde.
Os inúmeros benefícios dos imunizantes são amplamente conhecidos. Em janeiro deste ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que, apenas na Europa, as vacinas reduziram as mortes da pandemia em pelo menos 57%, salvando mais de 1,4 milhão de vidas. O avanço da imunização permitiu, em 2023, que a OMS decretasse o fim da emergência de saúde da pandemia. Os efeitos adversos identificados até o momento constam em bula e, em sua maioria, são leves. Os eventos pós-vacinação são monitorados por órgãos de saúde e fabricantes.
O médico Roberto Zeballos, autor das alegações aqui checadas, foi procurado, mas não se manifestou até a publicação.
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Saiba mais: ao comentar a vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos, Zeballos afirmou acreditar que o próximo governo passará a fazer questionamentos sobre as vacinas de RNA mensageiro. Dentre as questões que seriam colocadas pelo governo de Trump, estariam “por que há aumento do número de mortes por todas as causas nos países mais vacinados”, “por que há explosão de casos de câncer em jovens de 14 a 44 anos”, “o que está associado ao ‘turbocâncer’”, e “por que não temos os dados reais das complicações e ou benefícios das vacinas de RNA”. Veja abaixo a checagem dessas alegações.
Existe aumento de mortes em países mais vacinados?
O autor do post não detalha a quais países se refere ou a fonte dessa alegação, mas o Estadão Verifica já desmentiu boatos semelhantes. Em junho, por exemplo, a reportagem demonstrou que um artigo publicado na revista internacional de saúde pública BMJ Public Health vinha sendo distorcido nas redes sociais para alimentar a teoria de que as vacinas teriam causada um aumento de mortalidade. A pesquisa analisou tendências de excesso de mortalidade durante a pandemia de covid-19, mas os autores não se debruçaram sobre as causas desse excesso. A editora que publica a revista afirmou que o estudo não indica que as vacinas foram responsáveis pelas mortes.
O artigo apenas avaliou dados de “mortalidade por todas as causas” levantados pela plataforma Our World in Data entre 2020 e 2022 para identificar países do Ocidente que tiveram um excesso de mortes significativo. O termo “excesso de mortes”, segundo o próprio estudo, é a diferença entre o número relatado de mortes em um país durante certo tempo e o número esperado de mortes em condições normais, considerando o mesmo local e período.
A eficácia das vacinas é reconhecida pelo estudo. Mas os autores afirmam que “o excesso de mortalidade permaneceu alto no mundo ocidental por três anos consecutivos, apesar da implementação de medidas de contenção e das vacinas contra a covid-19″. Eles propõem que essas tendências sejam investigadas.
No ano passado, o Estadão Verifica desmentiu postagens que alegavam que as vacinas de RNA mensageiro teriam matado 17 milhões de pessoas em todo o mundo. Na ocasião, foi divulgada uma entrevista com três autores de um estudo publicado em setembro de 2023, em uma revista científica canadense, que fez uma correlação enviesada entre a “mortalidade por todas as causas” e os imunizantes. Os autores alegaram que houve excesso de mortalidade quando houve aplicação das doses de reforço. Na ocasião, o Verifica explicou que os dados utilizados no artigo não apontavam se as pessoas que morreram no período estavam ou não vacinadas. Além disso, os autores desconsideram as próprias mortes pela própria covid-19.
A imunologista Fernanda Grassi destaca que a vacina de RNA mensageiro foi amplamente utilizada, com aplicação de bilhões de doses, e desde o início da imunização não houve nenhuma associação causal entre o imunizante e um suposto aumento de mortes. “Essas afirmações são absolutamente falsas. Ao contrário, os países que mais vacinaram foram aqueles que diminuíram a mortalidade por covid-19″, destacou.
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Vacinas não foram associadas a câncer
“Câncer turbo” não existe, como foi apurado pelo Verifica anteriormente. Trata-se de uma teoria da conspiração criada pelo movimento antivacina para espalhar a mentira de que pessoas vacinadas estariam desenvolvendo câncer de rápido crescimento. Conforme o Programa Nacional de Vacinação (PNI) do Ministério da Saúde, a alegação é infundada.
O coordenador de Pesquisa e Inovação do Inca, João Viola, afirmou que “não existe nenhuma evidência científica sólida” sobre as afirmações feitas na postagem relacionadas ao câncer.
A SBOC diz o mesmo e acrescenta que a segunda edição do Guia de Imunização do Paciente Oncológico, produzido por especialistas da entidade em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a vacinação contra a covid-19 é indicada, inclusive, para pacientes oncológicos. “Atualmente, todas as vacinas contra covid-19 disponíveis são inativadas, logo, não há contraindicação para vacinação de imunocomprometidos”, informa o material.
A SBOC destaca que, em relação ao aumento de casos de câncer nas pessoas mais jovens, mudanças de comportamento nas últimas décadas, como obesidade, sedentarismo, tabagismo, consumo excessivo de álcool e alimentos ultraprocessados, assim como a melhoria nos meios de conhecimento e diagnóstico da doença, podem estar associados, mas faltam estudos mais amplos e conclusivos sobre o assunto.
Um estudo publicado na revista científica BMJ Oncology no ano passado aponta que os casos de câncer entre pessoas com menos de 50 anos aumentou em 79% em todo o mundo ao longo das últimas três décadas, não desde as vacinas.
Grassi explica ser muito difícil fazer um estudo de associação causal entre vacinas e câncer. Seria necessário fazer um trabalho longitudinal, ou seja, de um longo período de avaliação, e o imunizante foi desenvolvido recentemente. “Como a gente vai associar o câncer, que é uma doença multifatorial e muitas vezes demora anos se desenvolvendo, a uma vacina feita há tão pouco tempo? Não existe um trabalho que mostre uma associação causal”, afirmou.
Ela acrescenta que, para comprovar ou descartar uma relação causal dessa natureza, seria necessária uma pesquisa de coorte -- um estudo que observaria pessoas pessoas vacinadas e não vacinadas. “Você seguiria acompanhando essas pessoas por um período de 20, 30 anos e veria qual grupo desenvolveu mais câncer. É um tipo de estudo muito difícil, então não tem como a gente afirmar que a vacina está associada ao desenvolvimento de câncer porque não foi realizado um estudo desse tipo”, acrescentou.
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Benefícios das vacinas são conhecidos e complicações são monitoradas
As vacinas de RNA mensageiro, frequentemente alvo de desinformação nas redes sociais, são seguras. Esses imunizantes dão instruções para o sistema imunológico sobre como combater um vírus específico. No caso da covid-19, por exemplo, eles simulam o mesmo processo de exposição ao coronavírus, mas sem causar a doença, ao ensinar as células do corpo humano a sintetizar a proteína spike, que é própria do vírus. Assim, o sistema imune se prepara para combater o vírus caso ele entre em contato com o corpo.
Diante do excesso de desinformação, a OMS desenvolveu a série “Vacina Explicada” para tirar dúvidas sobre os imunizantes. Conforme a entidade, todas as vacinas contra o coronavírus aprovadas foram cuidadosamente testadas e continuam a ser monitoradas.
Os testes incluem grandes ensaios clínicos que envolveram dezenas de milhares de pessoas e foram especificamente projetados para identificar quaisquer preocupações de segurança. Um painel externo de especialistas convocado pela OMS analisou os resultados destes ensaios e recomendou se e como as vacinas devem ser utilizadas. Após isso, as autoridades de cada país decidiram se aprovavam as vacinas para uso nacional e desenvolveram políticas de como usá-las com base em recomendações da OMS. Por fim, após a vacina ser introduzida, as preocupações de segurança são monitoradas continuamente pelos fabricantes e autoridades de saúde de cada país.
No Brasil, antes de qualquer vacina ser ofertada à população, ela é submetida à análise e à aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que faz testes científicos e estudos rigorosos que comprovam os benefícios e a segurança da imunização.
Conforme o Ministério da Saúde, a vacina de combate à covid-19 que usa a tecnologia do RNA mensageiro no Brasil, produzida pela Pfizer, passou pela validação da Anvisa e seguiu todas as etapas rigorosas de avaliação de eficácia e segurança até serem aprovadas pela agência reguladora.
Como na aplicação de qualquer vacina, a pessoa imunizada pode experimentar alguns efeitos colaterais, que são sinais de que o corpo está construindo proteção. São considerados normais os efeitos leves a moderados, como febre baixa ou dores musculares, que desaparecem dentro de alguns dias.
Os efeitos adversos graves são considerados raros. No caso da vacina de RNA mensageiro, incluem um risco baixo de ocorrência de miocardite (inflamação do miocárdio, tecido muscular do coração) e pericardite (inflamação do pericárdio, membrana que envolve o coração). A bula da vacina que lista os possíveis efeitos adversos pode ser consultada no site da Vigilância Sanitária.
Em fevereiro deste ano, em um artigo publicado na revista Vaccine, 35 pesquisadores analisaram de maneira colaborativa dados de 99 milhões de indivíduos vacinados em oito países. Na análise, foram observados três tipos de eventos adversos de interesse especial (EAIE) relacionados a questões neurológicas, hematológicas e cardíacas e confirmados sinais de segurança pré-estabelecidos para miocardite, pericardite, síndrome de Guillain-Barré e trombose do seio venoso cerebral. O Verifica mostrou que o estudo confirmou aquilo que já se sabia e estava nas bulas das vacinas estudadas.
“As vacinas contra a covid-19 que estão sendo amplamente utilizadas atualmente são muito seguras e os riscos associados a elas são extremamente raros e muito menores do que os associados à própria doença. Em todo o mundo, os especialistas em saúde pública e de saúde recomendam fortemente a vacinação contra a covid-19″, disse Helen Petousis-Harris, autora do levantamento.
O Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos participou do estudo e reforçou em nota que o resultado confirma o que já se sabe: “A vacinação continua a ser a estratégia mais segura e fiável para desenvolver imunidade e proteção contra a covid-19, com milhares de milhões de doses entregues com segurança em todo o mundo e milhões de vidas salvas”.
Desde o início da pandemia de coronavírus, Zeballos foi desmentido pelo Estadão Verifica em nove oportunidades, uma delas neste mês, quando ele afirmou, de forma enganosa, que um estudo concluiu que vacinas de RNA mensageiro destroem o microbioma intestinal.
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