Ministério da Saúde, Fiocruz e pesquisadores apontam erros em estudo sobre mortes em vacinados

Pesquisa gerou críticas na comunidade científica por falhas na metodologia; revista que publicou trabalho investiga caso; autoras do estudo dizem que não há evidência de relação causal entre vacinação e aumento de mortalidade

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Foto do author Bernardo Costa

O que estão compartilhando: postagens afirmam que um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostrou que vacinados contra a covid-19 tiveram mais chances de morrer do que não vacinados após o período de um ano.

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O Estadão Verifica apurou e concluiu que: falta contexto. De fato, um estudo realizado por uma pesquisadora da Fiocruz chegou a essa conclusão. No entanto, houve uma série de manifestações de instituições e cientistas que apontaram erros na metodologia e na conclusão da pesquisa, como a inadequação do banco de dados utilizado e vieses na amostra. As críticas partiram do Ministério da Saúde, da Fiocruz e de diversos pesquisadores brasileiros, e foram enviadas à revista Frontiers in Medicine, que publicou o artigo originalmente.

Nesta quinta-feira, 15, a revista adicionou uma nota ao estudo, na qual afirma que está investigando as falhas apontadas em caráter de prioridade. As autoras do estudo afirmam que ele deixa claro que não há evidência para estabelecer relação causal entre vacinação e aumento de mortalidade. Elas afirmam terem considerado os apontamentos de erros metodológicos, solicitando uma atualização do estudo à Frontiers (leia as manifestações completas mais abaixo).

Estudo não traça relação causal entre vacinação e mortalidade Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Saiba mais: O estudo em questão é intitulado Evaluation of post-COVID mortality risk in cases classified as severe acute respiratory syndrome in Brazil: a longitudinal study for medium and long term (Avaliação do risco de mortalidade pós-covid em casos classificados como síndrome respiratória aguda grave no Brasil: um estudo longitudinal de médio e longo prazo, em português). Ele foi publicado na revista Frontiers in Medicine em 17 dezembro do ano passado. O estudo é assinado por uma pesquisadora vinculada à Fiocruz, Nádia Cristina Pinheiro Rodrigues. A outra autora é Mônica Kramer de Noronha Andrade, ligada ao Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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O artigo utilizou dados de notificações de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por covid-19 no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (SIVEP), do Ministério da Saúde, no período entre 2020 e 2023. O objetivo foi analisar a mortalidade associada ao status de vacinação após três meses da notificação de SRAG e em dois períodos: médio prazo (de 3 meses a um ano) e longo prazo (após um ano).

O estudo analisou 15.147 casos, dos quais 5.157 tiveram o desfecho morte. As pesquisadores concluem que, no médio prazo, os vacinados tiveram menor risco de morte. Porém, a longo prazo, eles tiveram entre 69% e 94% mais chances de morte do que os não vacinados. O artigo não determina razões para isso ter acontecido, mas diz que não podem ser descartadas duas hipóteses, que chama de explicações possíveis: efeitos adversos das vacinas ou um suposto efeito indireto dos imunizantes no sistema imunológico.

Banco de dados inadequado

O estudo gerou repercussão negativa no meio científico, com uma série de sinalizações de erros metodológicos que teriam levado a conclusões equivocadas. Houve posicionamento da Fiocruz, que informou que o Comitê de Acompanhamento Técnico-Científico das Iniciativas Associadas a Vacinas para a Covid-19 apontou falhas no trabalho. O comitê é formado por um grupo independente de pesquisadores da própria fundação e de outras entidades. A Fiocruz comunicou que o posicionamento seria enviado ao editor da Frontiers, solicitando a retratação do artigo. O Ministério da Saúde também contestou o estudo.

Um ponto comum nas manifestações da Fiocruz e do ministério é sobre a inadequação na utilização do SIVEP para analisar status de vacinação atrelado a óbitos. De acordo com o Ministério da Saúde, o propósito do banco de dados é a notificação de casos agudos de SRAG até o seu desfecho direto (alta hospitalar ou óbito). Não há obrigatoriedade de notificação sobre vacinação.

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Segundo a imunologista Ester Sabino, membro da Academia Brasileira de Ciências, as informações de imunização são mais comumente registradas no SIVEP quando há morte. “Da mesma forma, pessoas que sobreviveram a um caso grave de covid podem ter sido vacinadas, mas o dado de imunização não entrou no sistema. Assim, fica parecendo que todo mundo que morreu tomou a vacina. Isso é um erro de viés grave da amostra e que, obviamente, leva a conclusões equivocadas”, disse Ester.

Ministério da Saúde, Fiocruz e pesquisadores apontam falhas na seleção de pacientes analisados na amostra  Foto: Nilton Fukuda/Estadão

O virologista Flávio Fonseca, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fez a mesma observação. “O banco de dados do SIVEP não é apropriado para a análise que foi feita”, explicou. “Há um viés de preenchimento, pois os casos que vão a óbito tendem a ser mais investigados e os dados são registrados de forma mais completa. Quando a pessoa sobrevive, não. Então pode ser que a maioria dos que sobreviveram tenham sido vacinados, mas o dado não foi inserido no sistema”.

Registros podem conter erro

No estudo, foram analisados casos após três meses da notificação por SRAG, uma complicação da covid-19. Segundo as autoras, o recorte foi feito para capturar apenas mortes que não são diretamente atribuíveis à covid, já que elas costumam ocorrer em períodos mais próximos aos primeiros sintomas.

No entanto, há erro nessa avaliação, já que o SIVEP registra exclusivamente mortes por SRAG, segundo texto publicado por Viviane Boaventura, pesquisadora da Fiocruz e professora de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Manoel Barral-Netto, presidente da Academia de Ciências da Bahia (ACB), e Thiago Cerqueira-Silva, pesquisador da Fiocruz e da London School of Hygiene & Tropical Medicine.

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De acordo com o texto, a característica do SIVEP de registrar somente casos agudos leva a crer que os registros com tempo superior a três meses refletem erros de digitação na inserção dos dados no sistema. Os pesquisadores analisaram o mesmo banco de dados e constataram que, do total de mais de 2 milhões de registros, cerca de 99% estão no intervalo de 0 a 84 dias entre os primeiros sintomas e o desfecho de alta hospitalar ou morte.

Eles apontam que, com o passar do tempo, os registros diminuem progressivamente, até chegar numa incidência de 0,07% no período próximo a um ano ou dois anos da notificação. Sendo assim, os casos de morte de vacinados a longo prazo - que mais que dobraram em relação aos não vacinados, segundo o estudo questionado - são provavelmente produto de erros de digitação.

“Um banco de dados com mais de 2 milhões de casos, em que apenas 0,07% deles apresentam esse intervalo de tempo tão longo reforça a ideia de que esses registros são erros”, escrevem os pesquisadores.

Problemas na amostra

Outro ponto alvo de críticas é a exclusão dos registros de SRAG aguda nos primeiros três meses dos sintomas, período em que acontecem a maior parte dos casos de morte. Na avaliação do pesquisador da Fiocruz Minas Gabriel da Rocha Fernandes (íntegra abaixo), ao excluir todos os não vacinados que faleceram nos primeiros três meses, o estudo cria uma amostra enviesada para analisar risco de morte de acordo com status de cobertura vacinal.

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Outro ponto que vem sendo questionado é o fato de o estudo ter desconsiderado outras características dos pacientes, como idade ou existência de comorbidades. “É um estudo retrospectivo-observacional. Quando isso é feito, os grupos analisados não são iguais”, disse o infectologista Alexandre Cunha, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).

“Quem toma vacina, é quem tem maior risco de ter a doença grave e morrer, como indivíduos com doenças pré-existentes ou idosos. Então, não dá para comparar esse grupo com jovens saudáveis não vacinados e dizer que a vacina tem relação com a morte dos imunizados. É um erro grosseiro”, explicou.

O infectologista fez uma analogia: “imaginemos um guerra. Um grupo vai para a frente de combate e por isso usa colete à prova de balas. Outro fica no quartel e não usa. Os que usam colete tem muito mais chances de morrer, mas não quer dizer que foram mortos porque usaram colete”.

Há críticas também sobre a não expressividade numérica da mostra, como a feita pelo infectologista da Fiocruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Júlio Croda. Segundo ele explica, a análise de cerca de 5 mil óbitos após três meses dos sintomas, num universo de mais de 700 mil mortes por covid-19 no Brasil, faz com que o grupo analisado seja inexpressivo.

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“O número é reduzido porque analisaram óbitos apenas em três meses após os sintomas, e a gente sabe que mais de 90% dos casos de covid grave que evoluem para morte ocorrem nos primeiros 14 dias”, explicou Croda. “Então, muito provavelmente esses casos selecionados são erros de digitação, porque não é o habitual de quem morre por covid. O estudo usou um banco de dados totalmente inadequado para avaliar eficácia e segurança de vacina. As conclusões a que chega são especulativas”.

Resposta das autoras do estudo

Em resposta ao Estadão Verifica, as autoras do estudo, Nádia Cristina Pinheiro Rodrigues e Mônica Kramer de Noronha Andrade, afirmam que o artigo não é contrário à vacinação contra a covid-19. Elas afirmam que destacaram o efeito protetor da vacinação a médio prazo, porém, a longo prazo, encontraram resultados que divergiam. “Mas, ao invés de concluir precipitadamente sobre as causas dessas discrepâncias, apresentamos uma longa discussão sobre as possíveis explicações, sem nunca afirmar que a vacina foi a causa do aumento da mortalidade”, dizem as autoras (íntegra no documento abaixo).

Elas prosseguem em outro trecho: “nossa conclusão é clara: não há evidência para estabelecer uma relação causal entre vacinação e aumento da mortalidade, e essa questão precisa ser melhor investigada”.

As autoras rechaçam a associação delas com grupos antivacina e afirmam que são “defensoras incondicionais do Programa Nacional de Vacinação”. Sobre os erros metodológicos apontados, elas afirmam que muitas das contribuições foram consideradas e que solicitaram à revista uma atualização do artigo para contemplar algumas dessas questões.

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Resposta da revista Frontiers

Em resposta ao Verifica, a Frontiers in Medicine afirmou que, após ter sido procurada pelo Ministério da Saúde, a Fiocruz e cientistas no dia 10 de janeiro, abriu uma investigação sobre o artigo e adicionou uma nota (Expressão de Preocupação) à publicação do artigo, o que foi feito nesta quarta-feira, 15.

“A Frontiers declara estar ciente das preocupações relacionadas ao conteúdo do artigo”, disse a revista na nota. “Nossa equipe de Integridade em Pesquisa conduzirá uma investigação em total conformidade com nossos procedimentos. A situação será atualizada assim que a investigação estiver completa”.

Ainda de acordo com a resposta ao Verifica, a revista diz que a investigação do artigo está sendo realizada em regime de prioridade. “A Frontiers adere às diretrizes do Comitê de Ética em Publicações sobre investigações pós-publicação e conduzirá uma investigação em conformidade com nossas políticas. Estamos avançando com esta investigação como uma questão de prioridade”, disse a revista.

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