O vídeo de uma entrevista do pastor evangélico Heleno Bezerra, do Ministério Apostólico da Restauração, cuja versão editada tem mais de 451 mil visualizações no Facebook, traz informações falsas sobre o filósofo italiano Antonio Gramsci e sobre o líder revolucionário russo Vladimir Lenin. Em participação no programa "Vejam Só", que foi ao ar em março deste ano pelo canal evangélico RIT TV, o pastor leu algumas frases e as atribuiu a Gramsci e a Lenin. Trechos do vídeo também viralizaram no TikTok. Segundo especialistas consultados pelo Estadão Verifica, as frases listadas não são dos marxistas citados e não condizem com seus posicionamentos.
Entre as declarações citadas pelo pastor está a de que "as crianças devem ser ensinadas a odiar seus pais se eles não forem comunistas", atribuída a Lenin. Outra, relacionada a Gramsci, afirma que "o mundo civilizado tem sido saturado com cristianismo por 2000 anos, e um regime fundado em crenças e valores judaico-cristãos não pode ser derrubado até que as raízes sejam cortadas". O pastor menciona ainda o termo "idiota útil", como se tivesse sido criado pelo político russo -- mas o jornal americano The New York Times desmentiu a autoria da expressão há 34 anos.
As frases foram lidas pelo pastor no contexto do debate que girava em torno de uma pergunta: "É verdade que o cristão não pode ser socialista?".
Não é a primeira vez que declarações são atribuídas erroneamente a Gramsci e a Lenin. Ao buscar pelas frases citadas no Google, elas aparecem ligadas a um e ao outro em sites ou blogs de política anticomunistas, em páginas de cunho religioso e sites que compilam frases de personalidades. Nenhuma delas, contudo, apresenta referências ou cita quando, em que contexto e onde as frases teriam sido ditas ou escritas.
Frases atribuídas a Gramsci
A edição completa do programa "Vejam Só" que conta com participação do pastor Heleno Bezerra tem pouco mais de uma hora de duração. As primeiras referências a Gramsci aparecem no minuto 17. Ele diz que tem um pouco de dificuldade de falar o nome do filósofo, mas segue com a leitura de trechos que teriam sido escritos pelo autor marxista.
O primeiro é: "Nós vamos destruir o Ocidente destruindo sua cultura. Vamos nos infiltrar e transformar a sua música, a sua arte e sua literatura contra eles próprios". O pesquisador Gianni Fresu, professor de Filosofia Política da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e atual presidente da International Gramsci Society Brasil, disse que a frase não é do italiano e que o conteúdo está em contradição com o pensamento dele. "O marxismo de Gramsci queria tornar o socialismo o herdeiro da sociedade burguesa, não seu coveiro. Gramsci, antes Lenin, e ainda antes Marx, pensaram na transição para diferentes relações sociais de produção como suprassunção dialética da velha sociedade, não como a sua simples supressão", explica o professor, que é autor do livro Antonio Gramsci, o homem filósofo: uma biografia intelectual, publicado em 2020. Suprassunção -- ou o termo original em alemão, Aufhebung -- é um dos conceitos chave do pensamento do filósofo alemão Friedrich Hegel, que significa, ao mesmo tempo, superação, aniquilação e conservação.
A segunda declaração citada pelo pastor é sobre cristianismo: "O mundo civilizado tem sido saturado com cristianismo por 2.000 anos, e um regime fundado em crenças e valores judaico-cristãos não pode ser derrubado até que as raízes sejam cortadas". Ela também não é de Gramsci, segundo os especialistas consultados. "Simplesmente não reconheço Gramsci na citação, quer no conteúdo das palavras ou no estilo", afirma o sociólogo Ruy Braga, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), especialista em sociologia do trabalho e coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic). "Por exemplo, atribuir a expressão 'mundo civilizado' a ele é simplesmente bizarro", acrescentou. Braga é coautor, junto com o cientista político Alvaro Bianchi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), de um artigo intitulado Antonio Gramsci em tempos de fake news, publicado em 2019. Ele acrescenta que nem sequer encontra citações parecidas com aquela em escritos do filósofo, que, por sinal, morreu em 1937, bem antes de o cristianismo completar 2 mil anos. "Parece, na verdade, uma dessas citações de anti-gramscianos que pululam na internet", comentou o sociólogo. "Gente que interpreta palavras e distorce o sentido do que foi dito. Mas, neste caso, é muito bizarro, pois usa conceitos que Gramsci sempre criticou radicalmente, como 'mundo civilizado' e 'valores judaico-cristãos'. Não me lembro de ele usar nada parecido em seus escritos. No melhor de meu julgamento, posso dizer que essa citação não é de Gramsci", concluiu, acrescentando que consultou colegas que apontaram na mesma direção.
Frases atribuídas a Lênin
A primeiras das frases lidas pelo pastor e atribuídas a Lenin é: "Usaremos o idiota útil na linha de frente". O termo "idiota útil" já foi mencionado antes como se tivesse sido cunhado por Lenin, mas não há registros destas palavras especificamente em seus escritos. Em 2019, quando esta expressão foi relacionada ao político russo, o site Boatos.Org classificou a atribuição como falsa.
Lenin morreu em 1924, e o registro mais antigo do termo encontrado pelo Dicionário Oxford é de 1940, no The New York Times. A expressão originalmente se referia a cidadãos de países não-comunistas vistos como suscetíveis a propaganda comunista e manipulação. O jornal americano publicou um artigo em 1987 que desmente a afirmação de que Lenin tenha criado o termo. Segundo o jornalista William Safire, que foi colunista político e também escrevia sobre linguagem no The New York Times, a expressão "idiota útil" não foi localizada nos escritos do marxista. Safire cita o trecho de um perfil encomendado em 1921 pelo Partido Comunista ao pintor e escritor russo Yuri Annenkov. Ele afirmou ter copiado de notas com a letra de Lenin as seguintes palavras, que se assemelham à definição de "idiota útil": "Falar a verdade é um hábito pequeno-burguês. Mentir, ao contrário, muitas vezes é justificado pelo objetivo da mentira. Os capitalistas de todo o mundo e seus governos, enquanto almejam ganhar o mercado soviético, fecharão os olhos para a realidade mencionada e se transformarão em homens surdos, mudos e cegos. Eles nos darão créditos... eles vão trabalhar duro para preparar seu próprio suicídio". Para o colunista americano, a citação até pode dar uma pista sobre a atribuição de "idiotas úteis" a Lenin, mas não é possível afirmar que ele realmente escreveu as frases acima.
As frases seguintes foram também atribuídas a Lenin pelo pastor, mas estudiosos consultados pelo Verifica descartam que tenham sido ditas ou escritas por ele: "Incitaremos o ódio entre as classes, dividir para governar"; "Destruiremos sua base moral, a família e a espiritualidade"; "Comerão as migalhas que caírem nas nossas mesas"; "O Estado será Deus"; "Precisamos odiar, o ódio será a base do comunismo. As crianças devem ser ensinadas a odiar seus pais se eles não forem comunistas".
O historiador Osvaldo Coggiola, professor titular de História Contemporânea da USP, afirma que as publicações na internet que atribuem estas frases a Lenin não citam referências porque não são verdadeiras. "Essas frases de Lenin simplesmente não existem. Não se cita a fonte porque são pura e absurda calúnia", diz. O historiador Vinicius Donizete de Rezende, professor de História Contemporânea da Universidade Federal da Bahia (UFBA), concordou que as frases parecem manipuladas para adquirir teor sensacionalista.
O também historiador Carlos Zacarias, professor de História da UFBA e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH), disse que as frases "parecem ser evidentes deturpações ou falsificações obtusas e grosseiras do que Lenin escreveu". Ele afirma que algumas aparentam ter sido retiradas do chamado "decálogo de Lenin", uma lista atribuída ao líder soviético que já foi checada pelo Estadão Verifica em 2020. "Essas falsificações circulavam nos Estados Unidos desde o início do século XXI e chegaram ao Brasil depois da virada da primeira década", diz Zacarias.
Enquanto leitor de Lenin, Zacarias afirma que nunca encontrou nada parecido com as frases atribuídas ao político russo em seus escritos, o que o leva a concluir são falsas. "Se ele dissesse frases dessa natureza e tipo, isso apareceria em algum dos seus textos que conheço", disse. "A linguagem de Lenin era dura, porque os debates, desde os tempos de Marx, eram feitos desse modo, mas trata-se de uma fraude evidente imaginar que o principal dirigente da corrente bolchevique do POSDR [Partido Operário Social-Democrata Russo] pudesse dizer tais coisas, até porque contradiz os fundamentos do pensamento lenineano".
Últimas frases não são do Manifesto Comunista
Apesar de o vídeo original do programa "Vejam Só" ter mais de uma hora de duração, uma edição com cortes em trechos da fala do pastor Heleno Bezerra foi postada no Facebook junto com imagens do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e outras fotos. A edição com cortes tem quase 3 minutos e não deixa claro se as frases finais são atribuídas a Lenin ou se são opinião do pastor.
No vídeo completo, contudo, é possível observar o pastor afirmar no minuto 20 que leu alguns dos trechos a seguir no Manifesto Comunista: "Infiltrar-se nas igrejas e substituir a religião de revelação por uma religião social, desacreditando a Bíblia e enfatizando a necessidade de maturidade intelectual que não necessita de uma muleta religiosa"; "Apresentar homossexualidade, degeneração e promiscuidade como normais, naturais, saudáveis". Isso também não é verdade. Nenhuma destas frases aparece no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, publicado pela primeira vez em 1848. Na verdade, fazem parte do livro O Comunista exposto: desvendando o comunismo e restaurando a liberdade, do americano W. Cleon Skousen, publicado em 1958 em edição privada.
De acordo com o prefácio da nova edição, que saiu em 2017, Skousen, que era notadamente conservador e anticomunista, adicionou ao livro em 1961 o que ele chamou de 45 metas do comunismo, "que mapeavam os passos cujo objetivo era arruinar a cultura dos EUA" e buscavam "abolir a Constituição e transformar o país num 'redil' do governo mundial teorizado por Marx".
A primeira frase que o pastor diz ter lido no Manifesto Comunista é, na verdade, o que Skousen listou como sendo a meta 27. A segunda frase é o que ele classificou como a meta 26.
O pastor Heleno Bezerra foi procurado pelo Estadão Verifica, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Quem foram Gramsci e Lenin
O filósofo, teórico e ativista marxista Antonio Gramsci nasceu na Sardenha, na Itália, em 1891. Ele foi membro do Partido Socialista Italiano e um dos fundadores do Partido Comunista da Itália, além de ter liderado conselhos de fábrica em Turim e ter fundado um jornal, o L'Ordine Nuovo (A Nova Ordem). Antifascista, passou os últimos dez anos de sua vida preso pelo regime fascista italiano de Benito Mussolini. Na prisão, escreveu o que se tornaria uma de suas obras mais conhecidas, os Cadernos do Cárcere.
Vladimir Lenin nasceu no interior da Rússia em 1870. Ele tornou-se marxista na juventude após a morte do irmão e ficou conhecido pela liderança na Revolução Russa de 1917. Foi o primeiro líder da antiga União Soviética e morreu em 1924.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.