Lutadora argelina é alvo de campanha de desinformação nas redes; entenda o caso

Imane Khelif já foi desclassificada pela Associação Internacional de Boxe por descumprir ‘critérios de elegibilidade’ que não foram detalhados; Comitê Olímpico defende atleta e afirma que ela preencheu requisitos necessários para classificação

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Foto do author Gabriel Belic
Atualização:

O que estão compartilhando: que a atleta italiana Angela Carini competiu com um homem biológico nas Olimpíadas e desistiu em 46 segundos. “Boxeadora trans da Argélia Imane Khelif, que foi proibida de disputar o mundial, é liberada para jogar Olímpiadas e massacra lutadora”, afirma uma das postagens.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Imane Khelif nunca declarou publicamente se identificar como uma mulher transgênero; ela cresceu e foi socializada como uma mulher cisgênero. Os boatos se baseiam em uma decisão da Associação Internacional de Boxe (IBA), que desclassificou Imane do Campeonato Mundial Feminino em 2023 por não atender critérios de elegibilidade. A associação não detalhou quais regras foram descumpridas.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) classifica a decisão da IBA como “repentina e arbitrária”. De acordo com a organização, Imane, como todos os outros atletas participantes das Olimpíadas, segue os regulamentos de elegibilidade e inscrição da competição, assim como os critérios médicos aplicáveis.

Em coletiva de imprensa, Mark Adams, porta-voz oficial do COI, afirmou que a boxeadora argelina “nasceu mulher, foi registrada como mulher, viveu sua vida como mulher e lutou boxe como mulher”. Ele destacou que este “não é um caso transgênero”.

A argelina já declarou ter passado dificuldade na adolescência para praticar o boxe, porque seu pai acreditava que o esporte não era para meninas. O país africano representado por Imane tem discriminação institucionalizada contra pessoas abertamente LGBT+, o que inclui pessoas trans.

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Angela Carini abandonou a luta contra a argelina Imane Khelif Foto: John Locher/AP

Saiba mais: após a italiana Angela Carini desistir de uma luta com Khelif em menos de um minuto nas Olimpíadas, postagens virais nas redes sociais têm alegado, sem provas, que a lutadora africana é um “homem biológico”. As publicações desencadearam uma campanha de desinformação, além de uma onda de ataques preconceituosos à lutadora.

Em março de 2023, a IBA desclassificou Imane horas antes de sua luta pela medalha de ouro no Campeonato Mundial Feminino em Nova Délhi, na Índia, pois ela não teria atendido a critérios de elegibilidade. A taiwanesa Lin Yu-ting também foi desclassificada sob a mesma justificativa. A organização não divulgou a causa da violação por conta de regulamentos internos e questões de privacidade.

Após a derrota, Carini afirmou que a desistência não teve relação com a decisão da IBA, e sim pelo impacto dos golpes recebidos no nariz. “Não sou ninguém para julgar e não tenho nada contra minha adversária. Eu tinha uma tarefa e tentei executá-la. Tudo o que aconteceu antes do jogo não teve absolutamente nenhuma influência”, afirmou.

Desclassificação da IBA

Em 24 de março de 2023, as atletas Lin Yu-ting e Imane Khelif foram desclassificadas do Campeonato Mundial Feminino de Boxe da IBA em Nova Délhi, capital indiana. A decisão partiu da própria IBA, sob justificativa de “falha em atender aos critérios de elegibilidade para participar da competição feminina”. À época, a imprensa argelina afirmou que Imane foi desclassificada por um alto nível de testosterona no corpo. Já o Comitê Olímpico Argelino disse que a desclassificação ocorreu por “razões médicas”.

Os detalhes da violação de critérios de elegibilidade não foram divulgados pela IBA para preservação de privacidade e regulamentos internos. Em nota publicada nesta quarta-feira, 31, a IBA ressaltou que as atletas não foram submetidas a exame de testosterona, e sim um “teste separado e reconhecido, pelo qual os detalhes permanecem confidenciais”.

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“Este teste indicou conclusivamente que ambas as atletas não atendiam aos critérios de elegibilidade necessários e foram consideradas como tendo vantagens competitivas sobre outras competidoras femininas”, informou a IBA, em nota.

Em entrevista à agência estatal de notícias russa TASS, o presidente da IBA, Umar Kremlev, afirmou que a associação identificou atletas que “tentaram enganar os colegas e fingiram ser mulheres”. Ele afirmou que, com base em exames, a presença de cromossomos XY foi comprovada. Ele não mencionou nomes, e os resultados nunca foram divulgados publicamente.

Posicionamento do COI

Em nota publicada nesta quinta-feira, 1º, o COI afirmou que “todos os atletas participantes do torneio de boxe dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 cumprem os regulamentos de elegibilidade e inscrição da competição, bem como todos os regulamentos médicos aplicáveis definidos pela Unidade de Boxe de Paris 2024 (PBU)”.

Em junho de 2023, a COI baniu a IBA dos Jogos Olímpicos por falhas recorrentes em integridade e transparência na governança, acusada de manipulação de resultados e corrupção. A organização internacional de boxe já estava suspensa desde 2019 e não pôde organizar os torneios dos jogos das Olimpíadas de Tóquio, realizadas em 2021.

Conforme explicado pela COI, a PBU usou as regras de boxe de Tóquio como base para desenvolver seus regulamentos para as Olimpíadas de Paris. “Essas regras de Tóquio 2020 foram baseadas nas regras pós-Rio 2016, que estavam em vigor antes da suspensão da Federação Internacional de Boxe pelo COI em 2019 e a subsequente retirada de seu reconhecimento em 2023″, informou.

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O comitê internacional considerou a desclassificação das atletas no Campeonato Mundial da IBA em 2023 como uma “decisão repentina e arbitrária” da organização de boxe. O COI ressaltou que as duas lutadoras competem em torneios internacionais de boxe há anos na categoria feminina, incluindo os Jogos Olímpicos de Tóquio, o Campeonato Mundial da IBA, além de torneios sancionados pela Associação Internacional de Boxe.

“A atual agressão contra essas duas atletas se baseia inteiramente nessa decisão arbitrária, que foi tomada sem nenhum procedimento adequado”, afirmou o COI. “As regras de elegibilidade não devem ser alteradas durante a competição em andamento, e qualquer alteração nas regras deve seguir processos apropriados e deve ser baseada em evidências científicas”, completou.

Durante coletiva de imprensa, Mark Adams, porta-voz oficial do COI, ressaltou que o caso de Imane não se trata de uma questão de transexualidade. “A boxeadora argelina nasceu mulher, foi registrada como mulher, viveu sua vida como mulher e lutou boxe como mulher. Ela até tem um passaporte feminino”, afirmou.

Conforme explicado pela Reuters, a exclusão de atletas com Diferenças de Desenvolvimento Sexual (DDS) da competição feminina deve ocorrer apenas em “problemas claros de justiça ou segurança”. DDS são condições raras que envolvem genes, hormônios e órgãos reprodutivos. Uma mulher cisgênero -- aquela que se identifica com o gênero designado no nascimento -- com DDS, por exemplo, pode ter cromossomos sexuais XY e níveis de testosterona no sangue na faixa masculina.

Vale pontuar que uma suposta presença de cromossomos XY ou níveis elevados de testosterona em uma mulher não comprovariam uma “biologia masculina”, ao contrário do que afirmam postagens desinformativas. A síndrome de Swyer, por exemplo, é uma DDS rara que faz com que mulheres cisgênero nasçam com uma composição cromossômica XY, em vez de uma composição cromossômica XX.

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Imane nunca declarou publicamente ser mulher trans

Desde a luta com a italiana Angela Carini, Imane tem sido alvo de comentários preconceituosos e ataques transfóbicos nas redes sociais. A argelina, no entanto, nunca declarou publicamente se identificar enquanto uma mulher transgênero.

Imane, que é embaixadora da Unicef, já falou anteriormente sobre sua dificuldade de praticar boxe na adolescência, já que seu pai não aprovava o esporte para meninas. Ela também já enfatizou a importância do esporte na Argélia, onde as oportunidades esportivas para meninas podem ser limitadas.

O COI explicou que, assim como nas competições olímpicas anteriores de boxe, o gênero de um participante é classificado de acordo com seu passaporte. Cabe ressaltar que, de acordo com a OutRight Internacional, comissão internacional de direitos humanos para pessoas LGBT+, o reconhecimento da identidade de gênero para pessoas transexuais não é legalizado na Argélia, e “atos de homossexualidade” são puníveis por lei com prisão.

Em nota, o Comitê Olímpico da Argélia repudiou os “ataques maliciosos e antiéticos” direcionados a Imane. “Estas tentativas de difamação, baseadas em mentiras, são completamente injustas, especialmente num momento crucial em que ela se prepara para os Jogos Olímpicos, o auge da sua carreira”, afirmou.

Como lidar com postagens do tipo: informações não confirmadas que podem motivar uma campanha de discurso de ódio necessitam de cautela e atenção antes de serem disseminadas. No caso aqui verificado, faça uma busca em fontes confiáveis antes de compartilhar um conteúdo duvidoso. Desde que o boato foi impulsionado nas redes sociais, a atleta é alvo de desinformação e discriminação.

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A equipe do Aos Fatos também desmentiu este conteúdo.

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