Circula nas redes sociais um texto que afirma que “nunca antes na história deste País um presidente resolveu interferir na escolha interna do Exército para os seus comandantes”. Trata-se de uma alegação falsa. São vários os exemplos que desmentem essa afirmação, incluindo presidentes da ditadura militar – Médici e Geisel – e do atual período democrático – Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma.
Na semana passada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) exonerou o comandante do Exército, Júlio César de Arruda. Um dos motivos para a demissão, conforme esclarece reportagem do Estadão, é o da contrariedade de Lula em relação à perspectiva de efetivação do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid como chefe do 1.º Batalhão de Ações de Comando do Exército em Goiânia.
O “coronel Cid”, como é conhecido, foi nomeado para esse comando em 2022, quando já adquirira notoriedade para além dos quartéis como ajudante de ordens e “fiel escudeiro” do então presidente Jair Bolsonaro (PL). De acordo com reportagem do site Metrópoles, o coronel Cid consta no Supremo Tribunal Federal (STF) como investigado em razão de transações financeiras que supostamente realizava para Bolsonaro e a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Em seus primeiros dias no cargo, o novo comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, atendeu à demanda presidencial e divulgou que, em conversa com o próprio coronel Cid, conseguiu demovê-lo da intenção de assumir o comando do batalhão. No texto que circula nas redes, é dito que Lula teria “pedido a cabeça” de Cid, algo inédito na história brasileira, e que o comandante Arruda teria se recusado a cumprir uma “decisão estapafúrdia”.
O que dizem a Constituição e a história
A Constituição Federal atribui ao presidente da República a chefia suprema das Forças Armadas. Isso inclui prerrogativa de decisões discricionárias, que, desde que não firam impedimento legal, não precisam ser justificadas. Isso inclui a nomeação dos comandantes das três Forças e do ministro da Defesa.
Não há impedimento legal para que o exercício da chefia das Forças Armadas pelo presidente da República possa incluir influência sobre a designação e manutenção de comandos de unidades, órgãos ou tropas. Segundo o colunista do Estadão Marcelo Godoy, escritor e pesquisador da história do Brasil e das Forças Armadas, também não existe uma regra tácita quanto a isso.
Godoy enumera uma série de exemplos históricos anteriores em que presidentes interferiram na escolha de comandos, começando por presidentes da ditadura militar – Emilio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel – e passando por vários do atual período democrático – José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. “Na história da república, antes e depois de 1964, tivemos milhares de militares que perderam seus postos em razão da política”, lembra Godoy. “Como consequência do golpe de 64, o regime militar cassou mais de 5 mil militares e dezenas de generais e coronéis perderam seus comandos e foram cassados”.
Entre os vários exemplos específicos de destituição de comandos por decisão presidencial politicamente motivada, o jornalista cita que o presidente Ernesto Geisel retirou o general Ednardo Mello do comando do 2º Exército em 1976, após um episódio iniciado em 1975. Geisel e seu grupo disputavam o poder com setores mais “linha dura” da oficialidade, que se opunham à rota de abertura política traçada sob a liderança do então general-presidente. A disputa chegou ao ápice em 1977, quando Geisel demitiu o então ministro do Exército, general Sílvio Frota. Nas palavras de Godoy, com Frota “caíram quase todo os ajudantes e auxiliares do ministro, bem como os oficiais do Centro de Informações do Exército – cerca de 80″.
João Figueiredo, Dilma e Mourão
Exemplo do mesmo gênero, ainda que de menor envergadura, envolveu o general João Baptista Figueiredo. Em 1978, Figueiredo e Euler Bentes Monteiro disputavam a sucessão de Geisel na Presidência. Eles foram igualmente recepcionados, com as mesmas honras, pelo general Rosalvo Eduardo Jansen, comandante militar da Amazônia, que era contrário à política nos quartéis. Esse ato de isenção desagradou a Geisel, que trabalhava para emplacar Figueiredo como seu sucessor. Jansen perdeu uma promoção e, em 1979, Figueiredo assumiu a Presidência.
Entre os vários episódios semelhantes – de destituição de comando militar por discordância com a Presidência – acontecidos no atual período democrático lembrados por Godoy, destaca-se o que envolveu o general Hamilton Mourão e a presidente Dilma Rousseff. Em outubro de 2015, Mourão, que depois se tornaria vice-presidente da República e hoje é senador eleito, foi exonerado do Comando Militar do Sul por ter criticado o governo federal e permitido, num quartel sob sua chefia, uma homenagem póstuma a um chefe da repressão da ditadura.
O texto que circula nas redes é atribuído ao comentarista político Paulo Figueiredo. Até recentemente, ele atuava como comentarista político da Jovem Pan, mas foi desligado da emissora juntamente com outros comentaristas logo após a abertura, pelo Ministério Público Federal, de investigação acerca de possível envolvimento do canal com apoio aos atos golpistas do dia 8 de janeiro, em Brasília. O Estadão Verifica tentou contato com Figueiredo por e-mail, mas não obteve resposta.
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