O que estão compartilhando: vídeo postado no Instagram em que um médico afirma que a ingestão de leite por crianças provoca infecções de via aérea, como garganta, rinite e sinusite. Ele ainda afirma: “a gente não tem noção do tanto que o leite tem um potencial inflamatório nas pessoas”. E conclui: “então, leite jamais”.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Não há comprovação científica que trace uma relação entre ingestão de leite e ocorrência em crianças de infecções de via aérea, como de garganta, ou problemas respiratórios, como rinite e sinusite. No vídeo postado pelo médico, essas afirmações são feitas de forma generalizada. As enfermidades podem acontecer, mas são casos muito raros dentro de um universo de até 5% da população que é alérgica a proteínas do leite. Nessa parcela, a grande maioria das reações são gastrointestinais, como diarréia e sangue nas fezes, e cutâneas, como urticárias. Já estudos científicos que buscaram avaliar reação inflamatória relacionada ao leite vão em direção oposta ao que é dito no vídeo: as evidências são de que o leite tenha ação anti-inflamatória no organismo.
Saiba mais: O vídeo tem cerca de 30 segundos e é acompanhado pela legenda: “você conhece esse potencial do leite? Compartilha com 3 pessoas!”. O médico inicia o relato a partir de história pessoal, ao dizer que, até os 12 anos, tomava antibióticos com frequência para tratar infecção na garganta, rinite e sinusite. Segundo ele, ao retirar o leite da dieta, as enfermidades foram resolvidas.
Já ao citar a própria experiência em consultório, ele afirma: “todo mundo que chega lá, toda criança que tem infecções de via aérea, de repetição, e eu retiro o leite, quase 70% das pessoas, das crianças, vão passar um longo período aí sem ter”. E conclui: “então, leite jamais”.
Consultados pelo Estadão Verifica, profissionais da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban) rechaçam as afirmações. Eles explicam que as únicas restrições à ingestão de leite são para pessoas alérgicas a proteínas do leite - até 5% da população, afirmam -, e pessoas com intolerância à lactose. Dentro dessa pequena parcela dos que são alérgicos, as reações citadas no vídeo podem ocorrer, mas em casos muito raros.
Segundo o pediatra infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento de Imunizações da SBP, no caso de pessoas alérgicas a proteínas do leite, a grande maioria das reações são gastrointestinais e lesões de pele. Somente em casos muito raros podem haver problemas respiratórios ou infecções de via aérea.
“A criança que é alérgica a proteínas do leite de vaca tem manifestações cutâneas, gastrointestinais e às vezes até respiratórias. Em casos muito raros, podem acontecer rinites, sinusites e otites por conta da alergia. Então, quem é alérgico à proteína do leite de vaca, menos de 5% da população segundo alguns dados, deve excluir o leite de vaca. Mas são casos muito pontuais”, explica.
Ainda segundo Kfouri, o vídeo traz alegações sem evidências científicas. “O leite é parte fundamental da nutrição, do crescimento da criança, especialmente em relação à ingestão de cálcio e de proteínas presentes nele.”
Os esclarecimentos da doutora Lara Natacci, nutricionista da Sban, vão no mesmo sentido. Como afirma, as infecções de vias aéreas, como de garganta, rinite e sinusite podem ocorrer como uma reação imunológica contra algumas proteínas presentes no leite de vaca, nessa parcela pequena da população que é alérgica a essas proteínas, como a alfa-lactoalbumina, a beta-lactoglobulina e a caseína.
“Esses sintomas podem acontecer, mas não é o leite que causa isso, é uma alergia do nosso organismo a proteínas do leite. E são poucas as pessoas que apresentam isso, um percentual pequeno da população”, explica.
Já a intolerância à lactose é um outro problema, que causa complicações gastrointestinais em pessoas que não conseguem digerir o carboidrato. Neste caso, a recomendação é consumir leite e seus derivados que não contenham lactose.
Estudos não confirmam potencial inflamatório do leite
A afirmação feita no vídeo de que o leite tem alto potencial inflamatório não procede. Estudos publicados em plataformas científicas internacionais apontam o contrário: os indícios são de propriedades anti-inflamatórias presentes na bebida.
Publicada em 2020, a pesquisa “Effects of dairy products consumption on inflammatory biomarkers among adults” realizou uma meta-análise de 11 estudos publicados entre 2008 e 2017. E indicou que a ingestão de leite e seus derivados pode melhorar vários biomarcadores inflamatórios em adultos.
Já a meta-análise “Milk and Dairy Product Consumption and Inflammatory Biomarkers”, publicada em 2019 por pesquisadores da American Society for Nutrition, analisou 16 estudos publicados entre 2012 e 2018 e concluiu que o consumo de leite ou de seus derivados não demonstrou um efeito pró-inflamatório em indivíduos saudáveis ou com anomalias metabólicas. “A maioria dos estudos documentou um efeito anti-inflamatório significativo tanto em indivíduos saudáveis como em indivíduos com anomalias metabólicas, embora nem todos os artigos fossem de elevada qualidade”, diz o estudo.
Outro estudo - “Dairy products consumption is associated with decreased levels of inflammatory markers related to cardiovascular disease in apparently healthy adults” - foi publicado em 2010 e buscou investigar a associação entre o consumo de leite e seus derivados e os níveis de vários marcadores inflamatórios entre adultos sem evidência de doença cardiovascular ou outra doença crónica. O resultado identificou “uma associação inversa entre o consumo de produtos lácteos e os níveis de vários marcadores inflamatórios em adultos saudáveis”.
Já a pesquisa Dairy products and inflammation: A review of the clinical evidence, de 2017, analisou 52 estudos sobre o tema e concluiu que, de uma forma geral, o conjunto de dados indicou uma ação anti-inflamatória em humanos. Em relação a grupos com características específicas de saúde, houve um forte indicativo de ação anti-inflamatória em pessoas com distúrbios metabólicos e uma ação inflamatória em pessoas alérgicas a leite bovino.
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