Keffiyeh, lenço árabe usado por Lula, não é símbolo de terrorismo; peça foi presente de empresário

Vídeo de junho deste ano voltou a circular após escalada de tensão no Oriente Médio; adorno foi colocado no presidente por dono de doceria

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Foto do author Clarissa Pacheco

O que e estão compartilhando: que, ao colocar uma Keffiyeh, adorno usado na cabeça por homens árabes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faz “escárnio com Israel” e se associou a uma ideologia que idolatra o terrorismo.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. A Keffiyeh não é um símbolo de terrorismo, mas sim uma peça usada comumente por povos árabes. O lenço foi dado de presente a Lula em junho pelo empresário paulistano de origem libanesa Issam Sidom, dono de uma doceria em São Paulo. Sidom contou ao Verifica que costuma colocar o adorno nos clientes de seu restaurante, como forma de promover a cultura do Líbano.

Segundo especialistas consultados pelo Verifica, a Keffiyeh começou a ser usada por homens que vivem no deserto como proteção contra o sol. Com as revoltas árabes do começo do século XX, o lenço adquiriu um significado político de resistência contra o domínio britânico. Atualmente, o acessório é usado por manifestantes pró-Palestina. Integrantes do Hamas e do Estado Islâmico usam a Keffiyeh para cobrir o rosto e esconder suas identidades.

 Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: Os vídeos que viralizaram foram publicados em mais de uma conta no Instagram, republicados de perfis de políticos brasileiros. Juntas, as postagens acumulam mais de 260 mil visualizações na rede social. Nenhum dos vídeos diz que as imagens foram feitas em junho – elas se limitam a tentar associar o uso do adereço ao terrorismo e a uma forma de escárnio do presidente brasileiro contra Israel, o que é falso.

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O que é a Keffiyeh e para que ela serve?

A historiadora Samira Adel Osman, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que a Keffiyeh, que também recebe outros nomes, é uma peça tradicional usada por homens do Oriente Médio. O lenço é usado cotidianamente por homens nômades e beduínos (que vivem no deserto), além dos fellaheen, moradores de vilarejos. A função é proteger a cabeça contra o sol, de modo que as pessoas que vivem nas cidades, diferentemente daquelas da área rural e do deserto, não teriam motivos práticos para usá-lo. Assim, disse Osman, “criou-se a ideia de que era uma marca de distinção entre o rural e o urbano”.

Ela acrescenta que as mulheres não usam a Keffiyeh “porque elas já teriam as próprias formas de cobrir a cabeça, embora possam usar sobre os ombros como um ato político”. É comum que a peça tenha a cor branca para refletir o calor. Osman disse que é possível que o tecido usado nas Keffiyeh palestinas tenha um significado histórico.

“Linhas nas bordas representam rotas comerciais das quais a Palestina fez parte; redes de pesca representam ligação com o Mediterrâneo; as linhas curvas, as oliveiras, símbolo do Oriente Médio e da Palestina”, enumerou Osman. Os tecidos quadriculados também são comuns: entre os palestinos, o branco e preto é mais utilizado; na Jordânia, branco e vermelho. Mas, não é uma regra, já que também há padrões em verde, vermelho e dourado.

Como a Keffiyeh se tornou um símbolo político?

O professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rodrigo Amaral explica que o lenço começou a se popularizar no início do século XX, após a Revolta Árabe que ajudou a derrubar o Império Otomano. “Ele passou a representar um símbolo de nacionalismo, da luta interna no Oriente Médio contra as usurpações imperialistas. Depois, ele se popularizou ainda mais nas lutas nacionalistas árabes, a partir da luta palestina”, afirmou.

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Segundo Osman, o lenço se tornou um símbolo pois a Revolta de 1936 na Palestina contra os britânicos começou pelos vilarejos, onde o Keffiyeh já era parte da indumentária cotidiana dos homens. “A Keffiyeh já era parte do vestuário, mas acabou sendo útil para que os combatentes não fossem reconhecidos, e quem não estava no combate começou a usar como apoio e solidariedade”, disse.

Ela aponta ainda que “a associação à luta e à causa palestina ocorreu pela figura de Yasser Arafat, como fundador da Fatah e da [Organização para a Libertação da Palestina] OLP. A cor preta e branca e a forma como ele usava a Keffiyeh passaram a ser usados pelos palestinos, pela resistência, pelos combatentes e por quem se identifica com a causa”.

Aqui, vale ressaltar que o Fatah e o Hamas são grupos rivais. O Fatah é uma organização laica que atualmente controla a Autoridade Nacional Palestina (ANP).

Em 1995, Yasser Arafat se encontrou em Brasília com o então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, usando a Keffiyeh. Foto: Arquivo Estadão Foto: ACERVO ESTADAO

Associação ao terrorismo é equivocada e xenofóbica, dizem estudiosos

Em manifestações no Oriente Médio, cobrir o rosto com a Keffiyeh é uma forma de nacionalismo e protesto, mas também serve para manter o anonimato e até se proteger contra gás lacrimogêneo e outras formas de dispersão, afirma Osman. O porta-voz do Hamas, Abu Obeida, e combatentes do Daesh (Estado Islâmico) também passaram a usar a peça cobrindo o rosto para não serem reconhecidos ou terem suas identidades expostas.

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Rodrigo Amaral, da PUC-SP, afirma que essa associação entre o uso da Keffiyeh e o terrorismo é um sintoma de xenofobia e até islamofobia. “Sem dúvida nenhuma existe um processo crescente xenofóbico e, por que não, islamofóbico, quando associado à religião islâmica, de que determinados trajes, adornos, seriam símbolo estético da figura do terrorista. Isso é uma manifestação do racismo ocidental às comunidades árabes de forma geral”, disse.

Lula recebeu lenço de presente de empresário brasileiro

No vídeo investigado, Lula aparece, primeiro, ao lado do empresário Issam Sidom, que coloca a Keffiyeh na cabeça do presidente. Issam é paulistano, tem origem libanesa e é dono da doceria Alyah, especializada em vender doces libaneses em São Paulo. Ele postou o vídeo original nos stories do Instagram em 29 de junho de 2024 e marcou, além de Lula, um rapaz que aparece usando uma camisa com o nome do restaurante Alyah. No vídeo, também está presente o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Ao Verifica, Issam Sidom explicou que o vídeo não foi feito no restaurante, nem em uma agenda oficial de Lula com a comunidade árabe, mas num encontro “normal”, durante uma entrega. Ele disse que Haddad, que também tem origem libanesa, é cliente de seu restaurante.

A Secretaria de Comunicação da Presidência da República confirmou que a cena não aconteceu em uma visita do presidente ao Alyah, nem em um encontro com a comunidade árabe, e sim em uma agenda privada, “um jantar realizado na casa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no dia 28 de junho”.

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Encontro aconteceu durante jantar particular. Imagens foram postadas pelo empresário Issam Sidom, que presentou o presidente Lula com a Keffiyeh. Fotos: Reprodução/Instagram Foto: Reprodução/Instagram

Issam disse que costuma colocar a peça em pessoas que vão à doceria. “A Keffyieh para nós é normal. Todo mundo que vem ao restaurante, eu coloco na cabeça, a gente procura fazer um trabalho cultural sobre o Líbano. Seja de direita ou de esquerda, o Lula é o presidente do Brasil. Se fosse o Bolsonaro, eu colocaria também”, disse Issam, que compartilhou outro vídeo em sua rede social em que Lula aparece segurando a bandeira do Líbano, desta vez sem a Keffiyeh.

O empresário lamentou o uso do conteúdo para espalhar desinformação e lembrou que o adereço é comumente usado, inclusive, por brasileiros que viajam para países árabes. “Todo brasileiro que vai para Dubai usa o Keffiyeh no deserto. Todo mundo que vai usa o mesmo, daquela mesma cor, tira foto. Então, todo brasileiro que vai passear é terrorista? É um vídeo muito falso, eu nunca vi uma coisa tão fake”, afirmou.

Conflito ocorre entre Israel e o Hezbollah; governo do Líbano não declarou guerra

O conflito entre Israel e a milícia xiita libanesa Hezbollah é antigo. Desde 7 de outubro do ano passado, após o ataque do Hamas a Israel, o país também passou a trocar ataques com o Hezbollah. O conflito se intensificou nos últimos dias, após Israel fazer ataques dentro do território libanês. Nesta quinta-feira, 3, o exército do Líbano revidou um ataque israelense pela primeira vez. As forças oficiais do país não fazem parte do conflito e declaram que não querem guerra.

Não é correto tratar o grupo Hezbollah e o Líbano como iguais. Embora o grupo xiita exerça influência sobre a política libanesa, especialmente no sul do país, recentemente perdeu as eleições legislativas e atualmente ocupa os ministérios de Obras Públicas e do Trabalho. Por lei, o governo do Líbano é dividido de forma sectária: o presidente e o chefe das Forças Armadas devem ser cristãos maronitas; o premiê deve ser sunita e o presidente do Parlamento, xiita.

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A escalada do conflito entre Israel e o Hezbollah começou com um ataque no Líbano em 17 de setembro, com a explosão de pagers e walkie-talkies que matou pelo menos nove pessoas e feriu mais de 2 mil. Israel foi acusado de implantar explosivos em um lote de pagers importado pelo Hezbollah.

Nos últimos dias, Israel disse ter iniciado uma incursão terrestre contra o Hezbollah no sul do Líbano. O Hezbollah disse, no dia 2, ter enfrentado soldados israelenses que tentaram se infiltrar no Líbano. Segundo Israel, os ataques contra o Hezbollah acontecem porque o grupo estaria impedindo que cidadãos israelenses que moram no norte do Líbano voltem para suas casas. Já o Hezbollah diz que continuará com os ataques até que acabe a guerra em Gaza.

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