É enganoso o conteúdo de um vídeo com mais de 75 mil interações no Facebook que tenta imputar ao ex-presidente e candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) uma confissão de tentativa de abuso sexual. O crime, segundo o vídeo, teria acontecido em 1980, quando o então líder sindical teria tentado subjugar sexualmente um companheiro de cela no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo. A vítima seria conhecida como "menino do MEP", em referência a um rapaz que militava no Movimento pela Emancipação do Proletariado e que esteve preso na mesma cela que Lula em 1980.
A acusação, contudo, publicada em um artigo da Folha de S. Paulo em 2009, não foi comprovada. O conteúdo do artigo foi rechaçado pela suposta vítima e negado por outras pessoas que dividiam a mesma cela com Lula e o rapaz. Na época, Lula classificou o artigo como "loucura" e, agora, a campanha o petista voltou a negar a veracidade da acusação. Nenhuma dessas informações é mencionada no vídeo em questão, que chega a dizer que Lula nunca negou as acusações.
Além de usar um conteúdo antigo para tentar acusar um candidato de abuso sexual às vésperas do segundo turno, o vídeo ainda mente ao sugerir que existe um áudio com uma confissão de Lula sobre o caso, o que não é verdade. O que o vídeo mostra é uma simulação de um diálogo descrito pelo articulista César Benjamin, da Folha, e publicado em 27 de novembro de 2009. A voz que aparece no vídeo não é de Lula.
Como surgiu a acusação?
A história envolvendo Lula e o "menino do MEP" surgiu em novembro de 2009 em um artigo escrito pelo cientista político César Benjamin para a Folha de S. Paulo em 27 de novembro de 2009. O artigo foi publicado pouco antes de ser lançado o filme Lula, o Filho do Brasil, do diretor Fábio Barreto. Na ocasião, César Benjamin narrou sua própria experiência como preso político em 1971, quando tinha 17 anos, e afirmou que, apesar de ter sido colocado numa cela com três presos comuns, incentivados a usarem-no "como bem entendessem", nenhum dos três presos o atacou e todos foram "gentis e solidários".
Benjamin, então, afirma que esteve em 1994 em uma casa usada para a gravação de programas eleitorais de Lula como candidato à Presidência da República nas eleições daquele ano. O articulista conta que durante um almoço com um publicitário americano que queria conhecer Lula antes de propor uma estratégia para campanha, o petista perguntou diretamente a ele, César Benjamin, se ele tinha ficado preso e por quanto tempo.
Quando Benjamin respondeu que havia ficado preso por alguns anos, Lula teria respondido que não aguentaria porque não seria capaz de ficar muito tempo sem sexo com mulheres. Segundo o relato, então, Lula teria completado dizendo que, durante os 30 dias que ficou preso, tentou subjugar outro preso, que o reprimiu com cotoveladas e socos. O rapaz teria sido chamado por Lula de "menino do MEP" e o próprio Benjamin disse no artigo não saber de quem se tratava.
O articulista voltou a escrever para a Folha no dia 2 de dezembro de 2009 sobre o mesmo assunto, desta vez para responder às muitas perguntas sobre o porquê de ter falado sobre o assunto naquele momento. Ele reiterou que o artigo tinha sido publicado naquele momento por conta do lançamento do filme sobre Lula, "financiado por grandes empresas que mantêm contratos com o governo federal" e que toda a operação sinalizava "um salto de qualidade em um perigoso processo em curso: a concentração pessoal do poder, a calculada construção do culto à personalidade e a degradação da política em mitologia e espetáculo".
'Menino do MEP' disse que o artigo era 'um horror'
Após a publicação do artigo de César Benjamin na Folha, em 27 de novembro de 2009, o jornal e o conteúdo foram fortemente criticados, inclusive por leitores. A Folha, então, destacou uma equipe de reportagem para apurar a denúncia feita pelo artigo. No dia 1º de dezembro de 2009, o jornal publicou o resultado de uma entrevista com o eletricista João Batista dos Santos, ex-militante do MEP e, supostamente, o menino que teria sido assediado por Lula no Dops em 1980.
João Batista disse que o artigo era "um horror", que não tinha nada a comentar sobre o assunto. Ele também criticou a publicação do artigo sem ouvi-lo. Esposa de João Batista, Maria Cristina Muniz disse que o marido sempre falou de Lula de forma positiva e que nunca tinha ouvido falar sobre tentativas de abuso na prisão. João Batista foi procurado pela revista Veja e disse, por meio de um amigo, que não falaria com a imprensa: "Isso tudo é um mar de lama. Não vou falar com a imprensa. Quem fez a acusação que a comprove".
No mesmo dia, a Folha publicou uma matéria ouvindo seis dos 18 presos que chegaram a compartilhar cela com Lula no Dops em 1980. Todos negaram que abuso ou assédio tenha acontecido. "Ficávamos todos juntos, o tempo inteiro, não tinha como acontecer algo assim. É um delírio", disse Enilson Moura, o Alemão, que em 2009 era vice-presidente da central sindical União Geral dos Trabalhadores (UGT).
Em 28 de novembro de 2009, o grupo NSC Total, de Santa Catarina, publicou que o publicitário Paulo de Tarso, que segundo César Benjamin estava na mesma reunião em que Lula teria feito a afirmação sobre o abuso, negou que o tema tivesse sido tratado no almoço. Ele disse não se lembrar da presença de Benjamin no almoço narrado por ele.
Lula negou acusações na época e agora
Na época em que o artigo foi publicado, há mais de 12 anos, Lula se pronunciou por meio do chefe de gabinete da Presidência da República, Gilberto Carvalho. "Ele disse que é uma loucura", afirmou o assessor, que completou dizendo que Lula ficou muito "triste" ao ler o artigo.
Agora, em 2022, quando o assunto foi trazido de volta, a campanha do petista se pronunciou em um texto publicado no site do candidato. "Trata-se de uma fake news do tipo aleatória só porque Lula está em alta e Bolsonaro está com medo de perder as eleições. Mas vamos lá: o que tem de verdade na história? Tem que MEP é a sigla de um dos muitos movimentos de esquerda da época e que não é impossível que um rapaz do MEP estivesse na mesma cela de Lula. Na época, no texto que origina essa fake, de 2009, o seu autor confessa: 'Eu nunca soube quem é o 'menino do MEP'", diz trecho da nota.
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