Médico desinforma sobre efeitos de vacinas mRNA contra a covid-19

Autor de vídeo chega a defender a absurda tese de que produtos com a tecnologia de RNA mensageiro não são considerados imunizantes; especialistas afirmam que não há questionamento da comunidade científica a respeito desse assunto

PUBLICIDADE

Circula nas redes sociais vídeo em que um médico pneumologista faz alegações enganosas sobre vacinas contra a covid-19 que usam a tecnologia RNA mensageiro ou mRNA, como as da Pfizer e Moderna. Na gravação, o profissional critica a inclusão da vacina pediátrica no Calendário Nacional de Vacinação a partir de 2024. Ele afirma, por exemplo, que em diversas partes do mundo se questiona se os imunizantes de mRNA são vacinas ou não — o que não é verdade, de acordo com especialistas consultados pelo Verifica.

O profissional também associa as vacinas desenvolvidas a partir da tecnologia mRNA a efeitos colaterais não relacionados aos imunizantes, como distúrbios de coagulação. De acordo com o pediatra e infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), fenômenos trombóticos raros foram observados em vacinas de vetor viral, como as vacinas da Janssen e AstraZeneca, mas não nas vacinas de mRNA. Confira abaixo a verificação do vídeo:

De acordo com o Ministério da Saúde, não há nenhum caso de miocardite em crianças com relação casual confirmada com a vacina de mRNA 

Vacinas de mRNA questionadas

PUBLICIDADE

O que estão compartilhando: que em várias partes do mundo está se questionando se as vacinas de RNA mensageiro realmente são vacinas.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. De acordo com a médica imunologista Fernanda Grassi, pesquisadora do Instituto Gonçalo Moniz (Fiocruz Bahia), não existe nenhum questionamento da comunidade científica sobre o fato de uma vacina RNA mensageiro ser uma vacina, ou seja, um produto que estimula o sistema imunológico a criar defesas contra uma determinda doença. O mesmo argumento é defendido pelo vice-presidente da SBIm, Renato Kfouri, que informou nunca ter ouvido essa afirmação.

Publicidade

Segundo Grassi, a comunidade científica tem informações suficientes que demonstram a eficácia e segurança das vacinas de mRNA. “Nós já sabemos que o RNA mensageiro, no caso do Sars-CoV-2, induz uma resposta imunológica importante tanto humoral, que está relacionada à produção de anticorpos, quanto celular, que está relacionada às células linfócitos ‘T’ de memória, que reconhecem o antígeno e que estimulam a produção de anticorpos e de outros elementos que protegem o indivíduo vacinado”, explicou a imunologista.

De acordo com Kfouri, quase 80% da população mundial tem pelo menos duas doses de vacina contra a covid-19. “Nenhuma vacina foi aplicada em uma parcela tão significativa da população. Cerca de 30% dessas vacinas foram as de RNA mensageiro”, explicou. “Elas foram utilizadas em larga escala no mundo e cumpriram o objetivo de estimular o sistema imunológico a se defender″.

Reações adversas das vacinas mRNA

O que estão compartilhando: que a grande maioria dos imunizados com vacinas de RNA mensageiro apresenta distúrbios de coagulação, infecções de repetição, acidentes vasculares e miocardite (inflamação do miocárdio, tecido muscular do coração).

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Na avaliação da imunologista Fernanda Grassi, a alegação mistura potenciais efeitos adversos de diferentes vacinas e os atribui, de maneira equivocada, somente às de mRNA. “É bom que a gente diga que qualquer vacina, assim como medicamentos, podem causar reações adversas”, explicou. De acordo com a especialista, os riscos e os benefícios tanto de um medicamento, quanto de uma vacina sempre são avaliados. “Nós já sabemos suficientemente muito bem, depois de três anos de pandemia, de milhões de crianças vacinadas, que os efeitos adversos são muito raros e são muito mais frequentes no caso da doença”, disse. “O fato de adoecer de covid leva à mortalidade e a complicações muito mais frequentemente do que uma vacina levaria. Existe um benefício muito grande em se vacinar.”

Publicidade

De acordo com o vice-presidente da SBIm, fenômenos trombóticos foram observados nas vacinas com tecnologia de vetor viral. No Brasil, as vacinas de vetor viral aprovadas para uso são a Oxford/Astrazeneca e Janssen. Mesmo com casos raros de trombose associados a essas vacinas, Kfouri observa que, no momento crítico da pandemia, esse risco foi absolutamente inferior ao das complicações relacionadas à infecção por covid-19, que também pode causar trombose.

Em dezembro do ano passado, considerando casos raros de Síndrome de Trombose e Trombocitopenia (STT) associados à vacina, o Ministério da Saúde alterou a recomendação da Astrazeneca e da Janssen, passando a indicá-las para pessoas a partir dos 40 anos. A mudança, no entanto, não significa que as vacinas não sejam seguras. Em nota publicada em abril deste ano, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reforçou que todas as vacinas ofertadas à população são seguras, eficazes e aprovadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Quanto aos casos de miocardite relacionados às vacinas de RNA mensageiro, Kfouri afirma que a inflamação no músculo do coração é rara e que eventos dessa natureza acometem pessoas mais jovens, do sexo masculino. “Provavelmente tem um aspecto pubertário envolvido nesse evento adverso que, embora grave, no sentido de ser uma inflamação cardíaca, não levou crianças à morte”, disse o infectologista.

Em nota enviada ao Verifica, o Ministério da Saúde informou que, desde a aprovação das vacinas contra a covid-19 no Brasil, o órgão tem monitorado e investigado, juntamente com a Anvisa, a ocorrência de eventos supostamente atribuíveis à imunização. “Até dezembro de 2022, foi observada uma incidência de 0,07 casos de miocardite a cada 100 mil doses aplicadas, e nenhum óbito com associação causal com a vacina”, diz a nota. O ministério reiterou que não há nenhum caso dos eventos em questão em crianças com relação casual confirmada com a vacina de mRNA.

Publicidade

mRNA e leite materno

PUBLICIDADE

O que estão compartilhando: que já foi comprovado que o RNA mensageiro passa no leite materno e atravessa a barreira cerebral.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. De acordo com os especialistas consultados pelo Verifica, não há evidências de que o RNA mensageiro atravesse a barreira cerebral. Segundo a imunologista Fernanda Grassi, a quebra da barreira hematoencefálica é uma situação extremamente grave que leva a sintomas importantes. “O RNA mensageiro se degrada muito rapidamente, então isso é uma coisa infundada”, afirmou.

Os imunizantes que usam a tecnologia RNA mensageiro ensinam o corpo a produzir a proteína spike, uma estrutura específica do vírus que é fundamental para que o Sars-CoV-2 se ligue à célula humana. A produção da proteína faz com que o sistema imunológico dos pacientes a reconheça e se prepare para combater o coronavírus. Conforme explicou Grassi, a proteína de RNA mensageiro que é inoculada com a vacina tem vida curta e não permanece no organismo. “É por isso que, quando as pessoas tomam a vacina, geralmente elas têm nas primeiras 24 ou 48 horas uma reação, devida ao estímulo da resposta imune, mas depois tudo se dissipa, porque esse RNA não tem a capacidade de persistir.”

Em relação ao leite materno, segundo Renato Kfouri, é possível encontrar a presença do componente vacinal nos líquidos corpóreos, mas não há demonstração de que isso traga algum malefício. Quanto ao mRNA que supostamente ultrapassaria a barreira cerebral, ele afirmou: “Nós temos bilhões de doses de vacina RNA mensageiro e nenhuma descrição de problemas que sejam neurológicos, trombóticos ou de mortes de crianças por miocardite. Essa é mais uma das falácias relacionadas à conspiração”.

Publicidade

No Brasil, os números demonstram que as crianças não estão isentas das formas graves e letais da doença Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Máscaras de proteção e imunidade natural

Em alta
Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

O que estão compartilhando: que as máscaras de proteção não conseguem evitar o contágio do vírus e as vacinas também não. Segundo o autor do vídeo, o que está funcionando é a imunidade natural.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O Ministério da Saúde e os especialistas consultados pelo Verifica reforçaram que as máscaras são eficazes na redução da transmissibilidade de vírus respiratórios. Fernanda Grassi comentou que centenas de artigos científicos comprovam que, durante a pandemia, a imunidade natural não foi suficiente para conter o número de infecções pela doença e evitar os casos de morte.

“A imunidade natural funciona, sim, mas no caso de haver uma cobertura grande de pessoas vacinadas. Aí funciona pra uma pessoa ou outra, mas ela não é capaz de segurar uma fase de pandemia como a que a gente observou, com um número muito grande de pessoas se infectando ao mesmo tempo”, disse. “Ela [a imunidade natural] não é suficiente para proteger os indivíduos e foi por isso que morreram mais de 700 mil pessoas aqui no Brasil, justamente porque a gente não teve acesso à vacinação no momento em que deveríamos ter.”

Para Fernanda, é irresponsável dizer que a imunidade natural é suficiente para conter a infecção de um vírus que se propaga rapidamente e causa infecções letais, inclusive em crianças. “Não são só adultos, idosos e pessoas com comorbidades, crianças também podem ter infecções graves e morrer”, comentou. “A vacina é segura e protege, isso já tem consenso total na literatura, há centenas de artigos mostrando isso de forma muito clara.”

Publicidade

Em nota, o Ministério da Saúde informou que as máscaras são recomendadas principalmente para pessoas com fatores de risco para complicações por doenças respiratórias (imunossuprimidos, idosos, gestantes e pessoas com múltiplas comorbidades) em situações de maior risco de infecção, como: locais fechados e mal ventilados, locais com aglomeração e em serviços de saúde e por pessoas com sintomas respiratórios.

“As máscaras podem ser usadas para a proteção de pessoas saudáveis (quando em contato com alguém infectado) ou para controle da fonte de infecção (quando usadas por alguém infectado para prevenir transmissão subsequente)”, informou a pasta.

Segundo o ministério, as máscaras não devem ser usadas por crianças menores de dois anos ou pessoas que tenham dificuldade para respirar, que estejam inconscientes, incapacitadas ou que tenham dificuldade de remover a máscara sem ajuda.

Vacinação infantil

No final de outubro, o Ministério da Saúde anunciou a inclusão da vacina pediátrica contra a covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação a partir de 2024. De acordo com o órgão, a medida foi tomada com base em evidências científicas mundiais e dados epidemiológicos de casos e óbitos pela doença no País. “Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou aos países que priorizem a vacinação da população de alto risco para doença grave e avaliem o cenário epidemiológico local para estabelecer estratégias para a vacinação infantil”, informou o ministério.

Publicidade

No Brasil, de janeiro a agosto de 2023, segundo o Boletim Epidemiológico Covid-19, mais de 4.300 crianças menores de 12 anos foram hospitalizadas com Síndrome Respiratória Aguda Grave por covid-19. No mesmo período, 105 crianças na mesma faixa etária morreram pela doença.

De acordo com Renato Kfouri, a vacinação contra a covid é fundamental no público infantil. “A criança pequena é a única que não teve a chance de encontrar com o vírus, porque ela nasceu nos últimos um ou dois anos, e também não tomou nenhuma dose de vacina”, disse. “Não é à toa que a doença vai se desviando para a faixa pediátrica. Hoje a incidência de hospitalização por covid-19 na criança menor de um ano só perde para os maiores de 80 anos.”

De janeiro a setembro deste ano foram registradas 93 mortes de crianças de zero até cinco anos incompletos por covid-19. Os dados são do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe). Nessa faixa etária, o maior número de óbitos se concentra nas crianças menores de 1 ano, com 66 casos. Entre as crianças de 1 a 5 anos incompletos há 27 casos de óbitos.

Hoje, para o grupo de 6 meses até 5 anos incompletos, há dois imunizantes disponíveis, a Pfizer Baby (a partir dos 6 meses até 5 anos incompletos) e a Coronavac (a partir dos 3 anos). Os especialistas e o Ministério da Saúde afirmam que o risco de complicações pela própria covid-19 é muito superior ao de reações graves pela vacinação. Em publicação sobre a segurança das vacinas, o órgão reiterou que os imunizantes passam por um rigoroso processo de análise antes de ser incorporadas ao SUS.

Publicidade

O que diz o autor do vídeo

O autor do vídeo verificado aqui é Paulo Roberto Benites. No Instagram, rede social onde o conteúdo foi publicado, o médico se apresenta como pneumologista, alergista e imunologista. Procurado, ele afirmou estar investigando o assunto e que tem “grandes preocupações com o futuro da humanidade referente à saúde física e mental”. Benites ainda repetiu alegações enganosas de que imunizantes mRNA não são considerados vacinas e que não reduzem a transmissibilidade ou o adoecimento de pessoas.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.