Boato desinforma sobre prisão de médico para atacar travestis

Homem que aparece na imagem foi detido por operar clínica clandestina de aborto, e não por se recusar a atender paciente

PUBLICIDADE

Foto do author Samuel Lima

Circula nas redes sociais uma foto da prisão de um médico com a falsa descrição de que seria um ginecologista detido por se recusar a “atender um travesti”. A imagem, na realidade, mostra a prisão de Bruno Gomes da Silva, em 2014, acusado de praticar abortos em clínicas clandestinas no Estado do Rio de Janeiro.

Boato desinforma sobre prisão em flagrante de médico no Rio de Janeiro, acusado de realizar abortos ilegais em clínicas clandestinas. Foto: Reprodução / Instagram

PUBLICIDADE

A mesma foto aparece em reportagem publicada pelo jornal O Globo, em 16 de outubro daquele ano, com o título “Médico preso em ação contra clínicas clandestinas tomava até cerveja quando fazia aborto”. O Estadão Verifica descobriu o contexto original a partir de uma busca reversa de imagens no Google (aprenda aqui como fazer).

Segundo apurou o blog, o boato que ataca a população travesti no Brasil surgiu em um site satírico, em junho de 2016. Ele não está mais disponível, mas pode ser encontrado em arquivos da ferramenta Wayback Machine. Ainda que trouxesse uma descrição no rodapé dizendo que “nada neste site é verdade”, o material foi copiado por uma página que prega “orgulho hétero” e viralizou como se fosse uma notícia real, dando espaço para falas preconceituosas.

“Um ginecologista atender um travesti já é uma aberração. Ser preso por não atender é uma maior ainda. Ser algemado é o fim dos tempos”, opina o autor de um conteúdo que circula há pelo menos sete anos nas redes sociais, mas que segue enganando usuários até hoje. Nesta semana, posts reproduzindo o comentário somaram 4 mil reações no Instagram e 12 mil no TikTok.

Bruno Gomes da Silva, que tinha 80 anos no momento da prisão em flagrante, teve o registro profissional cassado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremerj) e em seu cadastro consta como falecido. Conhecido como “Doutor Aborto”, ele foi acusado de fazer parte de uma quadrilha que operava clínicas clandestinas de aborto no Rio de Janeiro desde a década de 1970.

Publicidade

Trecho de notícia do jornal 'O Globo' publicada em 16/10/2014 com o título: 'Médico preso em ação contra clínicas clandestinas tomava até cerveja quando fazia aborto'. Foto: Reprodução / O Globo

O aborto é considerado crime no Brasil e está descrito nos artigos 124 a 128 do Código Penal (Decreto-Lei Nº 2.848/1940). A prática só é permitida em três situações: risco de morte para a mãe, gravidez decorrente de estupro e em caso de anencefalia do feto. As penas variam de um a quatro anos de prisão, mas podem chegar a 10 anos se for realizado sem o consentimento da gestante e serem ampliadas em decorrência de lesão corporal grave e morte.

Ainda segundo notícias do jornal O Globo, o médico havia sido condenado cinco vezes pela Justiça do Rio, por conta da prática de aborto e outros crimes, como formação de quadrilha e homicídio culposo, cujas penas somavam 22 anos e 6 meses de prisão. Ele tinha uma morte por aborto e duas prisões em flagrante em sua ficha criminal. Nunca havia sido impedido de trabalhar pelo Cremerj e passou apenas 10 meses e 13 dias atrás das grades em mais de 35 anos de atividade na área.

Ele também não é ginecologista. O jornal informa que Bruno Gomes da Silva começou a carreira militar como soldado do Exército, em 1955, formou-se terceiro-sargento burocrata e concluiu o curso na Escola de Saúde do Exército em 1972, sendo declarado primeiro-tenente médico. Em 1982, foi transferido para a reserva remunerada e, em 1995, tornou-se capitão médico reformado.

A Operação Herodes, que prendeu dezenas de médicos, anestesistas, enfermeiros e outros agentes, foi deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro depois que dois casos de mortes por aborto clandestino no Estado ganharam o noticiário nacional: Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, moradora de Niterói, e Elizângela Barbosa, de 32, de São Gonçalo. Jandira ficou desaparecida até que o corpo foi encontrado mutilado e carbonizado dentro de um carro em Mangaratiba, enquanto Elizângela foi deixada em um hospital de Niterói.

A investigação levou à prisão de 75 pessoas e indicou que a rede de clínicas clandestinas teria feito pagamento de propinas a policiais civis e militares. O grupo foi denunciado por crimes como aborto, formação de quadrilha, homicídio qualificado e ocultação de cadáver. O processo não impediu Bruno Gomes da Silva de continuar atuando: ele seria preso em flagrante novamente em setembro de 2021, conforme noticiado pelo SBT News.

Publicidade

Houve uma onda de desinformação relacionada à população LGBTQIA+ recentemente. O Estadão Verifica desmentiu uma série de posts a respeito de atletas trans, por exemplo (1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7). Vários desses conteúdos manifestam apoio ao discurso do parlamentar Nikolas Ferreira (PL-MG) na Câmara dos Deputados, em que criticou “homens que se sentem mulheres”; ele foi acusado de transfobia.

O mesmo boato foi desmentido antes por e-Farsas, Boatos.org, Observador.pt, Aos Fatos e AFP Checamos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.