Aquecer mel no chá não torna produto ‘veneno’ para consumo humano, diferentemente do que diz vídeo

Recomendação é que mel seja consumido in natura, mas isso não quer dizer que a bebida fique tóxica em temperaturas mais altas; autor do vídeo enganoso foi procurado, mas não respondeu

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Foto do author Clarissa Pacheco
Atualização:

O que estão compartilhando: que o mel não deve ser aquecido ou usado para adoçar bebidas quentes, como chá e café, porque as altas temperaturas matam microrganismos benéficos para o organismo humano, dificultam a digestão e aumentam a concentração de hidroximetilfurfural (HMF), uma molécula que é tóxica ao nosso organismo.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. A recomendação de especialistas é que o mel seja consumido in natura, ou seja, sem ser aquecido, para que mantenha o máximo de suas propriedades bioativas. A partir de 40°C, algumas enzimas do mel começam a ser degradadas, principalmente aquela que confere um fator antibiótico ao produto. Porém, mesmo que o mel seja aquecido, essas propriedades não são completamente perdidas.

Além disso, não é verdade que o mel vira um “veneno” ao ser aquecido. Embora aumentar a temperatura realmente faça a concentração de HMF crescer, para que isso representasse um risco para a saúde seria preciso consumir mel em quantidades muito altas. Um especialista calculou que seriam necessários muito mais que dois quilos de mel por dia para que os malefícios fossem sentidos.

Card mel aquecido Foto: Reprodução/Threads

Saiba mais: O vídeo investigado foi publicado no Threads. No perfil da rede social, o autor indica um link para uma loja virtual onde vende cursos, livros e jogos pedagógicos. Ele também se apresenta como fitoterapeuta clínico, neurocientista e doutorando em Naturopatia. A postagem tem mais de 3 mil interações na rede social. O Verifica procurou o autor do vídeo, mas ele não respondeu.

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Especialistas não recomendam aquecer o mel

O vídeo começa quando o autor pergunta se as pessoas gostam de usar mel para adoçar chá ou café. Em seguida, ele diz que as pessoas não devem nunca aquecer o produto e lista três razões para isso. A primeira seria o fato de, segundo ele, o mel perder microrganismos benéficos ao corpo humano a partir do aquecimento.

O Verifica conversou com especialistas que concordam: de fato, não se recomenda aquecer o mel. Algumas das propriedades medicinais se degradam à medida que a temperatura aumenta e de acordo com o tempo de exposição a temperaturas mais altas. No entanto, aquecer o mel, simplesmente, ou usá-lo para adoçar bebidas quentes não faz com que todos os benefícios se percam, nem chega a ser prejudicial à saúde.

“A partir de 40°C, algumas enzimas começam a ser degradadas, principalmente o peróxido de hidrogênio que, em contato com solução aquosa, produz água oxigenada“, apontou o pesquisador Cristiano Menezes, da Embrapa Meio Ambiente. “Esse é o principal fator antibiótico do mel. Essa degradação vai aumentar à medida que você aumenta a temperatura e o tempo de exposição a essa temperatura, mas a enzima não é totalmente degradada quando você faz um chá. Aquecer o mel não elimina toda a atividade bioativa”.

Em termos práticos, afirma Cristiano, quem prefere adoçar o chá ou o café com mel pode fazer isso depois de preparar a bebida. “Faça o chá e adoce com o mel depois que ele estiver pronto, porque ele vai ficar menos tempo aquecido. O efeito degradante vai ser menor se você colocar o mel depois”, afirma.

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Alta temperatura mata microrganismos?

Depende. Aquecer o mel pode, sim, matar microrganismos, mas não quer dizer que o produto passe a ter menos propriedades medicinais, como já dito acima. O efeito da temperatura sobre esses microorganismos depende do tipo de abelha que produz o mel. O mel de Apis mellifera scutellata, ou seja, da abelha africanizada, tem uma concentração muito grande de açúcar e pouca água. Menezes explica que isso faz com que os microrganismos não consigam se reproduzir. Ou seja, não faz diferença se eles morrem ao serem aquecidos.

 Mel deve ser consumido in natura, sem aquecer, mas esquentá-lo não faz perder todas as propriedades bioativas. Foto: Fernando Sciarra Foto: Fernando Sciarra

Já o mel de abelhas sem ferrão, aponta o pesquisador, é mais aquoso e há microrganismos que conseguem se multiplicar e trazer benefícios para as propriedades antibióticas. “O fato de a gente aquecer e eliminar esses microrganismos vai limitar o potencial de atividade biológica do mel”, explicou. “Mas, nós desconhecemos a maior parte desses processos biológicos, a ciência ainda está por entender a função dos microrganismos e a gente ainda não sabe o quanto esse aquecimento vai acarretar em prejuízo nas propriedades medicinais”.

Ele aponta, ainda, que esquentar o mel não o torna mais difícil de digerir, diferente do que diz o autor do vídeo em seu segundo argumento. “O mel é rico em açúcares pré-digeridos, estão todos quebrados. Por isso, inclusive, não é recomendado para diabéticos, porque a absorção é muito rápida e o aquecimento não vai mudar isso”, disse.

HMF não determina toxicidade do mel

O último argumento para não aquecer o mel é que esse processo aumenta a concentração de uma molécula chamada hidroximetilfurfural, o HMF, e que esta é tóxica ao ser humano, tornando o mel impróprio para consumo. No vídeo, o autor diz: “Mel no café quente, mel no chá quente, mel cozido para fazer xarope vira veneno, não pode ser utilizado”. Mas não é bem assim.

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Primeiro, porque a concentração do HMF não decorre do aquecimento do pólen, como diz o autor do vídeo, e sim dos açúcares presentes no mel. Segundo, porque não é só o HMF que determina a toxicidade do mel.

“Precisamos considerar vários fatores: a quantidade ingerida pela pessoa, a temperatura do líquido que seria adoçado com mel e a concentração de HMF no final“, enumerou Mozaniel de Oliveira, doutor em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). “Além do aquecimento, vários outros fatores influenciam a formação de HMF no mel”.

O HMF, explica Mozaniel de Oliveira, é um composto produzido pela degradação do açúcar através de uma reação química conhecida como reação de Maillard. Ela provoca o escurecimento durante o processamento ou o armazenamento prolongado de alguns alimentos. “Este composto, juntamente com outros, pode contribuir para a toxicidade do mel. No entanto, a afirmação de que o mel se torna um veneno é claramente falsa”, diz.

O HMF já existe naturalmente no mel novo, mas em pequenas quantidades. E ele também está presente em diversos outros produtos processados termicamente e açucarados, como cereais matinais, pães, laticínios e sucos de frutas, além de licores. O aquecimento do mel realmente faz aumentar a concentração dessa molécula, e é por isso que ela passou a ser utilizada como um determinante de qualidade do produto.

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Além do aquecimento, outros fatores fazem aumentar essa concentração, como a idade – produtos mais velhos tendem a ter mais HMF –, as condições de armazenamento e a composição. Mel falso tem maior concentração de HMF, explicou Mozaniel.

A legislação brasileira permite que a concentração máxima de HMF no mel vendido ao consumidor seja de 60 mg/kg do produto. Internacionalmente, se aceita até uma concentração de 80 mg/kg em países tropicais, justamente por causa das temperaturas mais altas. Mas, isso está muito abaixo dos níveis considerados seguros para o consumo humano.

O que o HMF faz no nosso organismo?

De acordo com Cristiano Menezes, o HMF é de fato uma substância tóxica e cancerígena, mas apenas quantidades muito elevadas do produto são prejudiciais à saúde das pessoas. Um estudo publicado em 2020 na revista científica Molecules e disponível na National Library of Medicine, dos Estados Unidos, considera segura uma dose de 2mg/kg de peso corporal.

“Considerando a posição mais conservadora nesse estudo, uma pessoa de 70 kg poderia consumir até 140 mg de HMF por dia de forma segura. Isso significa que se ela consumir dois quilos de mel com a dose máxima de HMF, de 60mg/kg mel, por dia, ou seja, 120 mg ao todo, ainda estaria bem abaixo da dose segura”, explicou Menezes.

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Mozaniel chama a atenção para o fato de que não é qualquer aumento de temperatura que faz elevar a concentração de HMF de forma significativa. “Para que haja um aumento significativo na concentração de HMF, em alguns casos, a temperatura precisa ser superior a 140°C. Ou seja, ninguém toma chá a essa temperatura, já que a água entra em ebulição a 100°C”, afirmou.

O pesquisador acrescenta que não é tão simples dizer que o consumo de mel em café ou chá quente seja prejudicial. “Para avaliar os potenciais efeitos de bebidas adoçadas com mel em diferentes temperaturas seria necessário realizar um estudo clínico randomizado e duplo-cego. Caso contrário, não é possível afirmar com precisão se ele causa mal à saúde humana”, completou.

Ele observa, ainda, que há relatos de efeitos negativos do HMF à saúde das pessoas, mas estudos recentes têm apontado benefícios, como propriedades antioxidantes, antialérgicas e antiinflamatórias.

E se precisar aquecer o mel?

A última declaração do autor do vídeo é que, caso seja necessário aquecer o mel porque ele cristalizou, as pessoas devem fazê-lo em banho maria. Isso está correto: é a forma mais indicada de aquecer o produto com o mínimo de degradação possível de suas propriedades bioativas.

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Cristiano Menezes, da Embrapa Meio Ambiente, explica que as pessoas podem aquecer a água até 40°C, no máximo, desligar o fogo e colocar o mel para que ele saia da condição de cristalizado para líquido novamente.

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