Não, estudo da Universidade de Stanford não concluiu que uso de máscaras é ineficaz e perigoso

Instituição de ensino negou vínculos com trabalho teórico publicado em revista científica não convencional; entidades de saúde preconizam o uso comunitário de máscara como medida essencial para controlar a pandemia

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É falso que um estudo da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, tenha apontado que o uso de máscaras é ineficaz na prevenção da covid-19 e pode prejudicar a saúde, como sugerem conteúdos enganosos em blogs e aplicativos de mensagem. O boato remete a um artigo divulgado na revista Medical Hypotheses, cuja finalidade é publicar hipóteses científicas "radicais" e "especulações" que contrastam com o conhecimento convencional.

Disponível no site dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, o trabalho informa um único autor que se identifica como membro da divisão de cardiologia do Sistema de Saúde para Veteranos de Palo Alto, na Califórnia. Embora o centro hospitalar tenha ligações com a Universidade de Stanford, a instituição de ensino negou qualquer vínculo com o artigo e ressaltou que "apoia fortemente" o uso de máscaras para diminuir a transmissão do novo coronavírus.

 Foto: Estadão

Em nota publicada nesta quarta-feira, 21, a universidade esclareceu que o autor não era filiado ao hospital nem ao centro de ensino na data de publicação do trabalho, em novembro. O último vínculo dele com Stanford se encerrou em 2016, após o término de um período como acadêmico visitante em "assuntos não relacionados ao [tema do] artigo".

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O comunicado diz que a universidade solicitou que as filiações do autor sejam corrigidas no documento.

CDC defende eficácia das máscaras

O trabalho enganosamente atribuído à Universidade de Stanford diz que as evidências existentes desafiam a eficácia e a segurança de máscaras faciais. A afirmação, no entanto, contraria referências mundiais de saúde, como o Centro de Controle de Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (CDC) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Um informe do CDC divulgado em novembro afirma que os estudos de eficácia do uso de equipamentos de proteção no contexto da covid-19 são limitados a estudos epidemiológicos e observacionais.

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O órgão defende, no entanto, que os dados já disponíveis sustentam a recomendação de uso universal de máscaras faciais. A nota cita que ao menos sete estudos populacionais confirmaram os benefícios da medida de prevenção em nível comunitário nos Estados Unidos e no Canadá.

A OMS também argumenta que as evidências sobre o efeito protetor do uso de máscaras são limitadas. A entidade, porém, recomenda a utilização de equipamentos não cirúrgicos em locais com transmissão comunitária como parte de uma estratégia ampla para combater a pandemia, que também inclui o distanciamento social.

Distorções

Para sustentar sua hipótese, o autor ainda distorce dados e conclusões de outros artigos que, na verdade, mostram resultados favoráveis ao uso de máscaras. O documento diz, por exemplo, que um trabalho publicado na Nature em abril de 2020 não identificou diferenças no potencial de transmissão entre pacientes que usavam máscaras e voluntários que não usavam. Os autores do estudo da Nature, no entanto, apresentam uma interpretação diferente logo no resumo do trabalho.

"Os nossos resultados indicam que as máscaras faciais cirúrgicas podem impedir a transmissão de coronavírus humanos e vírus da gripe de indivíduos sintomáticos", afirmam os pesquisadores.

Na discussão dos resultados eles avaliam que os dados demonstram "a eficácia das máscaras cirúrgicas para reduzir a detecção do coronavírus e cópias virais em grandes gotículas respiratórias e em aerossóis".

"Isso tem implicações importantes para o controle da covid-19, sugerindo que as máscaras cirúrgicas faciais poderiam ser utilizadas por pessoas doentes para reduzir a transmissão posterior",  acrescentam os cientistas.

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Cartaz recomenda o uso de máscara em Salt Lake City, nos Estados Unidos. Foto: AP Photo/Rick Bowmer

Segurança

O artigo do Medical Hypothesis diz também que máscaras podem causar danos fisiológicos e psicológicos aos usuários, entre eles hipóxia (oxigenação insuficiente nos tecidos) e hipercapnia (retenção excessiva de gás carbônico no corpo). Ele cita trabalhos em contextos específicos, como o uso de máscaras N95 durante sessões de tratamentos de hemodiálise por pacientes com doenças renais em fase terminal. Não há referências sobre a segurança do uso comunitário da no contexto da covid-19. Outros artigos nem sequer apresentam conclusões sobre eventos adversos dos equipamentos de proteção.

A hipótese de que máscaras possam causar problemas respiratórios é rejeitada pela OMS e já foi contestada por especialistas em outras verificações. Uma página da organização dedicada a combater boatos afirma que o uso prolongado de máscaras "não causa intoxicação por dióxido de carbono nem deficiência de oxigênio". Também não constam eventos adversos semelhantes no quadro de "desvantagens" do uso de máscaras no documento da entidade.

Um artigo publicado na revista de medicina JAMA aponta que preocupações sobre a redução da saturação de oxigênio e retenção de dióxido de carbono não têm respaldo nos dados disponíveis sobre o uso de máscaras no contexto da covid-19. Em outra reportagem do Estadão Verifica, publicada em fevereiro, infectologistas afirmaram que o equipamento não retém gás carbônico porque permite a troca gasosa entre a parte interna e externa do produto.

A página de orientações do CDC acerca do uso de máscaras destaca que as moléculas de CO2 (dióxido de carbono) são suficientemente pequenas para passarem facilmente através de qualquer material de máscaras de pano. "Em contraste, as gotículas respiratórias que transportam o vírus que causa a covid-19 são muito maiores do que o CO2, pelo que não podem passar tão facilmente através de uma máscara de pano devidamente concebida e devidamente usada", afirma a agência americana.

Especialistas também já contestaram boatos de que máscaras reduzem a imunidade e potencializam a proliferação de bactérias. Também não há evidências de que o uso da proteção provoque a acidificação do sangue.

A revista

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A revista Medical Hypotheses é uma publicação científica incomum que já foi o centro de algumas polêmicas no setor acadêmico. O guia para autores do periódico afirma que o objetivo da revista consiste na divulgação de artigos teóricos "interessantes". "A revista considerará as ideias científicas radicais, especulativas e não convencionais, desde que sejam expressas de forma coerente", afirma o texto.

Como destaca uma verificação do site Snopes, o jornal já publicou trabalhos que relacionam o uso de salto alto com esquizofrenia. Em 2009, um artigo que negava a epidemia de AIDS causou polêmica na comunidade acadêmica e foi retirado do Medical Hypothesis após uma revisão por uma equipe editorial de outra revista. A publicação lamentou o episódio.

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