Influenciador distorce manuais da OMS e tira de contexto vídeo sobre educação sexual

Conteúdo enganoso afirma que Organização Mundial da Saúde quer ‘normalizar pedofilia’, o que não é verdade; procurado, autor da postagem não respondeu ao contato

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Por Bernardo Costa

O que estão compartilhando: vídeo em que o influenciador português Sérgio Tavares diz que a Organização Mundial da Saúde (OMS) produziu material com orientações para educação sexual nas escolas com o objetivo de “normalizar a pedofilia”. Segundo ele, a instituição afirma que as crianças devem aprender a se masturbar e a ter relações sexuais precocemente.

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O Estadão Verifica apurou e concluiu que: é enganoso. O vídeo mostrado por Tavares, em que adultos conversam com crianças sobre tocar partes do próprio corpo, não foi produzido pela OMS. Além disso, o português distorce publicações da organização, para passar a ideia de incentivo a práticas sexuais em idade prematura. O que essas publicações da OMS trazem são estratégias para a abordagem desde a primeira infância de temas relacionados à sexualidade. Nos documentos, o conceito de sexualidade é compreendido em um sentido mais amplo, que envolve aspectos emocionais, sociais, culturais e do corpo humano e seu desenvolvimento.

Tavares foi procurado por e-mail, mas não respondeu.

Captura de tela da postagem enganosa Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: O influenciador português Sérgio Tavares desinforma no vídeo. Primeiramente, ao compartilhar conteúdo afirmando se tratar de “vídeo oficial da Organização Mundial da Saúde” que mostra “como esta organização pretende sexualizar as crianças pequenas”. Uma busca reversa de imagens (aprenda como usar a ferramenta) mostra que o material não foi produzido pela OMS, e sim pela fundação holandesa Rutgers, em março de 2023, como parte de uma semana de programação nas escolas voltada à educação sobre relacionamentos e sexualidade.

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No site da Rutgers, consta que a fundação é “o principal centro holandês de especialização em sexualidade” e que trabalha para “melhorar os direitos sexuais, o acesso à educação e informação sobre sexualidade, o acesso à contracepção e ao aborto seguro e a prevenção da violência sexual.”

Logotipo da OMS foi inserido no vídeo da Rutgers

O logotipo da OMS foi inserido enganosamente no vídeo por um perfil no X. Essa é a versão compartilhada no conteúdo enganoso de Tavares. O vídeo original, segundo a Rutgers, foi retirado do ar para proteger as crianças que nele aparecem, após a fundação constatar que “o vídeo está sendo retirado de contexto por algumas pessoas e sendo usado para espalhar desinformação online”. Ainda de acordo com a Rutgers, o vídeo mostra pais conversando com seus filhos sobre os seguintes temas: aprender sobre seu corpo, falar sobre o que você gosta e estabelecer limites.

A versão original, sem o logotipo da OMS, foi compartilhada pelo perfil no YouTube do partido conservador holandês Fórum pela Democracia, com a mensagem: “Parem com a sexualização das crianças!”. A Rutgers diz que a alegação de sexualização das crianças não faz sentido, já que “pesquisas mostram que as crianças bem informadas começam a ter relações sexuais mais tarde”.

Afirmações do vídeo distorcem documento da OMS

Tavares relaciona o vídeo da Rutgers a dois documentos da OMS sobre educação sexual: “Standards for Sexuality Education in Europe” (Padrões para Educação Sexual na Europa), de 2010, e “International technical guidance on sexuality education” (Guia técnico internacional em educação sexual), de 2018. Segundo o português, as orientações promoveriam o acesso à pornografia, masturbação, homossexualidade e relações sexuais prematuras para as crianças pequenas. Tavares conclui que a organização pretende “normalizar a pedofilia”. Mas nada disso está nos documentos.

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Enganosamente, ele destaca trechos, em inglês, como sendo literalmente retirados das publicações, o que não procede. Os trechos são conclusões equivocadas de um blog apócrifo, que propaga teoria da conspiração sobre objetivos de dominação global por parte de entidades como OMS e Fórum Econômico Mundial.

Nos documentos não constam as supostas citações. O que constam são orientações de como implementar temas sobre educação sexual para crianças e jovens, de acordo com diferentes faixas etárias.

Em linhas gerais, “Standards for Sexuality Education in Europe” indica o que crianças e jovens devem saber e entender, com que situações ou desafios devem saber lidar e que valores e atitudes precisam desenvolver em diferentes idades. O documento trata de educação sexual em um conceito mais amplo e, por isso, lista recomendações à faixa etária inicial, de 0 a 4 anos, ao considerar que, desde o nascimento, os bebês aprendem o valor e o prazer do contato corporal e da intimidade.

“A questão é que, desde o nascimento, os pais em particular enviam aos filhos mensagens que se relacionam com o corpo humano e a intimidade. Em outras palavras, eles estão engajados na educação sexual”, diz o documento.

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Já a publicação “International technical guidance on sexuality education” busca estabelecer bases para o ensino e aprendizado sobre aspectos cognitivos emocionais, físicos e sociais da sexualidade, com o objetivo de “preparar os jovens para uma vida segura, produtiva e plena num mundo onde o HIV e a Aids, as infecções sexualmente transmissíveis, a gravidez indesejada, a violência baseada no gênero e a desigualdade de gênero ainda representam sérios riscos para o seu bem-estar”. O documento contém diretrizes para o ensino de crianças e jovens entre 5 e 18 anos ou mais.

O que os documentos da OMS dizem, na verdade?

As alegações do vídeo analisado aqui distorcem o objetivo das publicações. Enganosamente, passam a ideia de que há incentivo a práticas sexuais prematuras. Na verdade, os documentos afirmam ter o objetivo de promover o acesso a informações relacionadas à sexualidade de forma apropriada para cada faixa etária, desde a primeira infância. Vale ressaltar que crianças e adolescentes não são o público-alvo dos documentos, voltados a educadores e profissionais de saúde.

Segundo Tavares, a publicação “International technical guidance on sexuality education” estimula crianças e jovens a desenvolverem relações sexuais, o que, segundo ele, seria “a normalização da pedofilia”. A conclusão é distorcida, já que o documento afirma que as orientações, como consta na página 16, buscam fornecer conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que os capacitem a desenvolver relações sociais e sexuais respeitosas ao longo da vida. Trata-se, portanto, de uma preparação para as futuras experiências.

As demais alegações enganosas estão relacionadas à publicação “Standards for Sexuality Education in Europe”. O documento traz uma “matriz de educação sexual” na qual sugere quais conteúdos devem ser abordados por educadores a cada faixa etária. Tavares afirma que o documento diz que “crianças de 0 a 4 anos devem aprender sobre masturbação e a desenvolver interesse sobre o seus corpos e os de outras pessoas”. Isso é falso.

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A publicação parte do princípio de que as crianças têm o costume de tocar desde cedo em suas partes genitais, e que sentem prazer nisso. Sendo assim, orienta que se fale sobre o assunto. Na página 40, a publicação diz que devem ser dadas informações às crianças de que há prazer quando se toca no próprio corpo, e que os educadores devem ajudá-las a desenvolver atitude positiva em relação a seus corpos e respeito pelo dos outros.

Outra alegação enganosa é que “crianças de 4 a 6 anos devem aprender sobre masturbação e ser encorajadas a expressar suas necessidades e desejos sexuais”. A publicação não diz isso. Tal como na faixa etária anterior, o documento orienta que seja dada informação de que há prazer quando se toca no próprio corpo (página 42). Há, ainda, o apontamento de que as crianças precisam ser capacitadas a expressar suas necessidades e desejos no campo da sexualidade e dos direitos (página 43).

O vídeo também engana ao afirmar que a publicação diz que “crianças de 6 a 9 anos devem aprender sobre relação sexual, pornografia online, ter amor secreto e a se autoestimular”. Mais uma vez há distorção. Na página 44, consta que elas devem receber informações sobre relação sexual e, no campo das emoções, sobre amores secretos, primeiro amor, paixões e amor não correspondido. Também é dito que os educadores devem ajudar as crianças a desenvolverem consciência de que o sexo é retratado na mídia de diferentes maneiras. De novo, há o dado de que a elas devem ser dadas informações de que há prazer quando se toca no próprio corpo.

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Tavares diz, ainda, que a publicação afirma que “crianças entre 9 e 12 devem ter sua primeira experiência sexual e aprender a usar pornografia online”. A afirmação não é correta. O documento diz, na página 46, que as crianças devem ter informações sobre primeira relação sexual e sobre que influências a pornografia pode exercer nas decisões sexuais, relacionamentos e comportamento do indivíduo.

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