Para desinformar sobre resolução do CNJ, postagens dizem que autores de crimes graves serão soltos

Documento que institui Política Antimanicomial no Judiciário entrou em vigor, mas não ‘liberta’ criminosos automaticamente; posts dizem até que o Bandido da Luz Vermelha será solto, mas ele morreu há 25 anos

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Foto do author Clarissa Pacheco

Na data em que entrou em vigor a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que institui a Política Antimanicomial no Poder Judiciário Brasileiro, conteúdos enganosos sobre a medida viralizaram nas redes. As postagens alegam que 5,8 mil internos de hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTP) voltarão às ruas. Não é bem assim. O CNJ determinou a interdição desses hospitais, mas isso não significa que os internos serão soltos automaticamente – a Justiça analisará caso a caso. Além disso, o número de pessoas em HCTPs é bem menor – eram 1.987 em 2022, segundo dados do Sisdepen, sistema da Secretaria Nacional de Políticas Penais.

Para espalhar pânico, vídeos e textos alertam à população que criminosos que ficaram no imaginário popular logo estarão livres, como o Maníaco do Parque, Chico Picadinho, Champinha, o Bandido da Luz Vermelha e até Adélio Bispo, autor da facada contra Jair Bolsonaro em 2018. Destes, apenas um se encontra em hospital de custódia: o Maníaco do Parque. O Bandido da Luz Vermelha, por exemplo, morreu há 25 anos (leia mais abaixo). O Estadão Verifica desmentiu que a Resolução 487 colocaria em liberdade o homem responsável pelo massacre em uma creche de Blumenau (SC).

Posts desinformam ao dizer que autores de crimes graves serão automaticamente libertados Foto: Ye Jinghan/Unsplash.com

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Além de espalhar medo, os conteúdos desinformam porque não dizem o que, de fato, propõe a Resolução 487 do CNJ. O dispositivo não cria nada novo, apenas estabelece ferramentas para que a legislação do Brasil seja cumprida, no que diz respeito ao tratamento de pessoas custodiadas ou que cumprem medidas em regime aberto ou semiaberto e que tenham algum tipo de transtorno mental ou deficiência psicossocial.

Uma dessas medidas é assegurar que pessoas com transtorno mentais e que cometeram crimes tenham atendimento especializado e em local adequado desde a audiência de custódia até o cumprimento da medida de segurança. Para isso, a resolução determina, entre outras coisas, que os HCTPs do Brasil sejam interditados e que novos internamentos não sejam feitos nestas unidades em um prazo de até 12 meses. Esses locais não são considerados estabelecimentos de saúde, e sim presídios com condições de funcionamento precárias, de acordo com o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ.

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Onde estão os autores de crimes graves citados em vídeos?

Boa parte dos vídeos que começaram a circular no dia 15 de maio faz referência a nomes conhecidos da população brasileira como autores de crimes graves. Segundo as publicações, essas pessoas estão prestes a ganhar as ruas graças à resolução do CNJ, mas isso não é verdade. A resolução do Conselho não se aplica à maioria dos citados. Veja a seguir a situação de cada um deles:

Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, ainda era menor de 18 anos quando foi considerado o líder do bando que assassinou o casal Liana Bei Friedenbach, 16 anos, e Felipe Silva Caffé, 19, em Juquitiba (SP), em 2003. Ele foi internado na Unidade Experimental de Saúde da Fundação CASA, antiga Febem. Ao completar 18 anos, foi transferido para o Manicômio Casa de Custódia de Taubaté, por tempo indeterminado. Atualmente, segundo a Secretaria de Estado de Saúde do Governo de São Paulo, Champinha se encontra novamente internado na Unidade Experimental de Saúde, unidade criada em 2008 por determinação da Justiça e que não se enquadra como hospital psiquiátrico. Ou seja, a Resolução 487 do CNJ não se aplica ao caso dele.

João Acácio Pereira da Costa, conhecido como Bandido da Luz Vermelha, foi condenado por quatro assassinatos, sete tentativas e 77 assaltos na década de 1960 em Curitiba (PR). Segundo um dos posts virais, ele também estaria prestes a ganhar as ruas novamente. O problema é que João Acácio morreu há 25 anos, em janeiro de 1998. Depois e ser preso em 1967 e cumprir 30 anos de prisão, ele foi libertado em 1997 e voltou para Joinville (SC), sua cidade natal. No ano seguinte, foi assassinado em um bar da cidade.

Cena do filme O Bandido da Luz Vermelha, de 1968, dirigido por Rogério Sganzerla; João Acácio, que inspirou a produção, não poderá ser solto pela resolução do CNJ - ele morreu há 25 anos Foto: Versatti Filmes

Adélio Bispo de Oliveira, o autor da facada contra Jair Bolsonaro em setembro de 2018, durante campanha eleitoral em Minas Gerais, também é apontado como um dos candidatos à liberdade por conta da resolução. Mas, ela também não se aplica ao caso de Adélio, que não está internado em um hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, e sim preso em um presídio federal em Campo Grande (MS).

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Francisco Costa Rocha, conhecido como Chico Picadinho, já tinha sido citado em postagens anteriores. Ele foi condenado por assassinar e esquartejar duas mulheres – os crimes aconteceram em um intervalo de dez anos, em 1966 e 1976. Ele foi diagnosticado como psicopata e, hoje, aos 80 anos, está interditado civilmente, por decisão judicial, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté (SP). Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP) ele “só terá sua situação judicial alterada mediante outra ordem judicial”.

Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, também citado em postagens mais antigas, não se encontra em um HCTP, e sim na Penitenciária de Iaras, no interior de São Paulo. Ele foi preso em 1998 e confessou ter assassinado 11 mulheres – foi condenado pela morte de sete, e também por estupro e atentado violento ao pudor. Eles atraía jovens para o Parque do Estado, em São Paulo, com falsas promessas de emprego. Lá, as espancava, estuprava e matava por estrangulamento. A pena foi de 268 anos de prisão.

Repercussão da medida

Diferentemente do que afirmam autores de diversos vídeos publicados nas redes sociais, a medida não significa “libertar” automaticamente pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes graves, como homicídios, assassinatos em série, estupros e pedofilia, por exemplo. A resolução estabelece um prazo de seis meses contados a partir da entrada em vigor do documento – ou seja, a partir de 16 de maio – para que os processos dessas pessoas sejam revisados pelo poder judiciário.

Na prática, a resolução aponta que pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes graves poderão continuar o tratamento com internação, se essa for a recomendação após a revisão dos casos. No entanto, os internos não ficam mais em celas de HCTP, e sim em unidades da Rede de Atendimento Psicossocial (Raps). O Raps inclui os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento (UA) e leitos de atenção integral – seja na atenção básica de saúde ou nos hospitais gerais, residências terapêuticas, Programa de Volta para Casa (PVC) e estratégias de reabilitação psicossocial.

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É nesse ponto que a decisão causa preocupação em associações médicas. Um documento publicado no último dia 8 de maio pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) se posiciona contra a resolução e diz que os médicos não foram consultados sobre a medida “que trará mudanças profundas para a saúde mental pública brasileira e para a segurança pública”.

Antes de pedir a revogação da medida, o documento acrescenta: “O sistema público de saúde e o sistema prisional comum não estão preparados para receber todas essas pessoas, por isso haverá abandono do tratamento médico, aumento da violência, aumento de criminosos com doenças mentais em prisões comuns, recidiva criminal, dentre outros prejuízos sociais”, diz a nota, assinada também pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB), Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e Federação Médica Brasileira (FMB).

Em resposta enviada ao Estadão Verifica no mês passado, o CNJ disse que os HCTP não “correspondem às necessidades terapêuticas” que neles se devia praticar. “Tanto as normas em vigor no Brasil, quanto o conhecimento acumulado no campo psiquiátrico no País e no mundo indicam que a internação numa prisão-manicômio não é a melhor resposta para o tratamento dos transtornos mentais de que essas pessoas padecem”, diz o DMF. Os núcleos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo divulgaram uma nota de apoio à resolução.

O deputado federal Kim Kataguiri (União-SP), que também fez publicações nas redes sociais apontando que criminosos perigosos seriam soltos, propôs um Projeto de Decreto Legislativo para suspender a resolução. Na última segunda-feira, 15, ele disse ter conseguido assinaturas suficientes para votar a urgência e o mérito do projeto. Nesta terça, 16, o projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Procurado, o deputado não respondeu ao Verifica.

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Decisão não tem relação com governo Lula

Um dos vídeos virais da última semana afirma que a resolução do CNJ serviu pra atender a uma promessa de campanha do governo de Luiz Inácio Lula da Silva que não passaria pelo Congresso, o que não é verdade. A Resolução estabelece regras para o cumprimento de uma lei de 2001 que já determinava o fechamento dos HCTP, antes chamados de manicômios judiciários.

Além disso, não há qualquer menção a uma política antimanicomial ou de saúde mental entre as propostas de governo de Lula e Geraldo Alckmin entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A única menção à questão carcerária aparece no ponto 38: “Construiremos políticas que combatam e revertam a política atual de genocídio e a perseguição à juventude negra, com o superencarceramento, e que combatam a violência policial contra as mulheres negras, contra a juventude negra e contra os povos e comunidades tradicionais de matriz africana e de terreiro”.

Apesar de não ser uma decisão do governo, a medida envolve unidades de saúde e, por isso, no início deste mês, representantes do DMF do Conselho Nacional de Justiça se reuniram com o Ministério da Saúde para iniciar os trabalhos de implementação da resolução. O objetivo é, segundo o CNJ, “reforçar a estrutura de saúde pública para fazer frente às determinações da lei em vigor desde 2001, que veda a internação de pessoas com transtornos mentais em instituições com características asilares, como os Hospitais de Custódia”.

Durante o encontro, o secretário nacional de Atenção Especializada à Saúde do ministério, Hevécio Magalhães, disse que será adotada uma política específica para cumprir a legislação. “Será pactuado com estados e municípios o financiamento federal para equipes multidisciplinares para este trabalho, para avaliar cada usuário e o integrar de forma responsável em um ponto da rede de atenção. Além disto, vamos induzir o crescimento desta rede onde for necessário. E este trabalho só será efetivo na parceria com o CNJ, dialogando com os juízes e avaliando conjuntamente com o SUS todo o plano de trabalho a ser elaborado de modo compartilhado”, afirmou.

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