O que estão espalhando: que um petista, em um evento do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), disse que trabalhar é castigo.
O Estadão Verifica investigou e concluiu: é enganoso e falta contexto à declaração. O homem que aparece no vídeo é o intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo, e a declaração foi feita em uma palestra na Universidade de São Paulo (USP). As logomarcas do PT e da CUT não aparecem na gravação original do evento. A palestra não foi organizada por nenhuma das duas entidades.
Também não é verdade que Nêgo Bispo seja petista ou ligado à CUT. Embora já tenha sido líder sindical e filiado ao PT e ao PSB, Bispo se desfiliou dos dois partidos ainda na década de 1990 e deixou de integrar a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí (FETAG-PI) na mesma época, quando passou a se dedicar à militância política para a causa quilombola. Ele morreu em 3 de dezembro do ano passado.
Saiba mais: Antônio Bispo dos Santos é autor de vários artigos, poemas e de livros como A terra dá, a terra quer, lançado em 2023. A fala que aparece no vídeo é de 13 de março do ano passado, durante palestra chamada “Aquilombar o Antropoceno, Contra-colonizar a Ecologia”, promovida pelo Centro de Estudos Ameríndios (CEstA), do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).
O encontro foi transmitido ao vivo no YouTube e não há marcas que indiquem a participação de partidos políticos. Os convidados e os mediadores aparecem sentados atrás de uma mesa e, ao fundo, há um quadro branco e uma tela de projetor que, durante a fala de Nêgo Bispo, permanece desligada.
O vídeo publicado no canal da FFLCH-USP tem a identificação da instituição no topo e no rodapé, mas ambos foram recortados do vídeo investigado. Leitores do Estadão Verifica pediram a checagem deste conteúdo através do WhatsApp, no número (11) 97683-7490. Ele também foi compartilhado no TikTok e no Instagram.
O contexto da fala de Nêgo Bispo
Nêgo Bispo já havia falado no início da palestra. Na parte final, ele retomou a palavra para responder perguntas da plateia, entre elas a de um estudante quilombola mineiro chamado Pedro, aluno de Ciências Sociais na Unicamp. Pedro perguntou sobre a possibilidade de manter jovens quilombolas dentro de suas comunidades, sem que eles “caiam no conto” da realização financeira da cidade grande.
O intelectual respondeu outras perguntas, antes de passar a tratar especificamente da questão quilombola:
“Isso é para dizer que quilombola tem que ter pertencimento. Se não tiver pertencimento, não é quilombola, é morador do quilombo. E morador do quilombo pode ir embora que não faz falta. Faz falta quem tem pertencimento. Só para concluir, meu filho, a nossa situação dos quilombos, o que é que ocorre? Todos os dias, nós recebemos bombardeamento de informações para dizer que nós somos pobres, vai dizer que nós somos pobres. Essa história de pobre é uma arma colonialista utilizada pela política para nos vender a ilusão. Os sindicatos são corretores de direitos, os sindicatos vivem vendendo direito para os patrões entregar. Como os patrões nunca entregam, os que compram nunca recebem. As igrejas vivem vendendo salvação para Deus entregar. Como Deus nunca entrega, os compradores da salvação nunca recebem. E, da mesma forma, os partidos políticos vivem vendendo política pública para o Estado entregar. Como o Estado nunca entrega, os compradores nunca recebem”.
Enquanto Nêgo Bispo fala, a plateia e a mesa reagem em sinal de concordância. Ele faz, então, uma comparação entre a casa dele, no interior do Piauí, e a do pesquisador Guilherme Moura, da USP, que o recebeu em São Paulo, para ilustrar o contraponto entre as narrativas de ricos e pobres. A plateia reage rindo, assim como o próprio Guilherme, sentado na ponta esquerda da mesa:
“É preciso dar um basta em tudo isso, é preciso dizer o seguinte: se hoje, hoje, agora, eu tô aqui, mas se chegar dez pessoas lá na minha casa, dez, come, bebe e dorme. Porque a nossa casa é grande, a nossa cozinha é grande, a nossa panela é grande. Aqui na cidade, por mais generosos que sejam nossos amigos, Guilherme é super generoso, me hospedou na casa dele, mas a casa dele não cabe 10 pessoas para comer, beber e dormir. E ele ganha um salário 20 vezes maior do que o meu, que é um salário mínimo de aposentadoria rural. Mas, a minha casa é maior do que a dele porque a minha casa é feita para recepcionar, não é feita só para mim dormir. Então, esse povo da cidade que fica dizendo que é rico, na casa dele não cabe a mãe. Que riqueza é essa?”.
Como se pode ver, a fala é longa e o trecho destacado no vídeo que viralizou é, na verdade, o final da resposta ao estudante:
“Então, pra concluir, é dizer que nós precisamos entrar valendo nessa guerra das narrativas. Pobres são vocês que não podem receber os amigos, pobres são vocês que não podem passar um dia sem trabalhar, pobres são vocês, que são escravos do sistema colonialista, porque trabalhar, trabalhar é castigo, tá lá na Bíblia. Eu sou é vagabundo, eu gosto de vadiar! Muito obrigado!”.
Em outras oportunidades, Nêgo Bispo já havia apresentado mais detidamente, em lives e entrevistas, seu ponto de vista sobre o trabalho como castigo. Bispo se refere a uma passagem da Bíblia, no livro de Gênesis, capítulo 3, versículo 19, que diz: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás”.
Nêgo Bispo não era petista, nem filiado à CUT
Embora já tivesse atuado na militância partidária e sindical, Nêgo Bispo não era mais filiado a nenhum partido político, nem era ligado a sindicatos desde a década de 1990. Durante o próprio evento da USP, inclusive, ele fez críticas a sindicatos e disse que, hoje, direita e esquerda têm repertórios parecidos em relação ao trabalho.
Em maio de 2023, em entrevista à Folha de S. Paulo, Bispo foi questionado sobre esse ponto de vista e sobre já ter sido filiado a dois partidos de esquerda – o PT e o PSB. Ele respondeu: “Atuei em movimento sindical, partido e movimentos sociais por um bom tempo. Ao contrário da minha criação, me deparei com um conhecimento todo escriturado. Tentaram me convencer de que a sociedade era composta por duas classes, a trabalhadora e a patronal. Eu nasci e me criei na roça, numa comunidade quilombola. Como lavrador, nunca fui ou tive patrão”.
Ele acrescentou que desde o fim de suas filiações, também tinha deixado de votar. “A última vez que votei foi em 1996, e em 1998, me desvinculei do movimento sindical. Hoje participo de uma mobilização para estruturarmos a nossa comunidade. Essa é a nossa grande luta de defesa”, completou.
O sindicato a que ele se referia, provavelmente, era a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Piauí (FETAG-PI), da qual foi presidente. Nêgo Bispo morreu em 3 de dezembro do ano passado, aos 63 anos, no Quilombo Saco-Curtume, município de São João do Piauí, onde morava, após uma parada cardiorrespiratória.
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