PLs aprovados na Câmara falam em proteção a vítimas de violência doméstica e não alteram legislação sobre aborto

Postagens nas redes sociais alegam que propostas legalizam no Brasil o procedimento quando feito com até 22 semanas de gestação, o que não é verdade

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Foto do author Samuel Lima
Atualização:

Um boato em circulação no Facebook sugere que a Câmara dos Deputados teria aprovado, "na calada da noite", a legalização do aborto quando realizado com até 22 semanas de gestação. A postagem original cita dois projetos de lei aprovados em 9 de julho (PL 1444/2020 e PL 1552/2020) e que devem ser agora analisados pelo Senado Federal. As matérias, no entanto, não fazem qualquer referência à descriminalização do aborto, de maneira direta ou indireta, como apurou o Estadão Verifica com base em documentos oficiais e entrevistas com três especialistas em Direito.

Postagens falsas afirmam que Câmara dos Deputados aprovou projeto que descriminaliza aborto feito com até 22 semanas de gestação no Brasil. Foto: Reprodução / Arte Estadão

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O PL 1444/2020, de autoria da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), estabelece medidas excepcionais de proteção à mulher e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar durante a emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus. O texto aprovado foi o substitutivo da relatora, a deputada Natália Bonavides (PT-RN).

O documento propõe o afastamento imediato do agressor; a disponibilização de recursos extraordinários para o acolhimento institucional das vítimas e seus dependentes; a possibilidade do aluguel de casas, hotéis, espaços e instalações privadas para garantir oferta adequada durante a pandemia; a alteração de prazos de resposta do poder público aos pedidos de proteção; a possibilidade de visitas periódicas por policiais no domicílio; e a destinação de duas cotas do auxílio emergencial a mulheres de baixa renda sob medida protetiva decretada, entre outros pontos.

Já o PL 1552/2020 sugere que as vítimas de violência doméstica tenham direito a acolhimento temporário, por 15 dias, em abrigos institucionais ou novamente em hotéis, pousadas e outros imóveis custeados pelo poder público para garantir a separação do agressor, de forma sigilosa. A proposta também dispensa licitação para obras, serviços, compras e locações de imóveis em cumprimento da medida e estabelece que o uso dos espaços não poderá se estender para além do período de calamidade pública.

O projeto foi apresentado pela deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e outros 22 parlamentares de diferentes partidos. O texto aprovado também foi o substitutivo da relatora, a deputada Elcione Barbalho (MDB-PA).

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Nos dois projetos, não há qualquer menção aos termos "aborto", "interrupção da gravidez" ou mesmo "gestação". Ainda assim, os boatos na internet afirmam que houve "manipulação de linguagem" para legalizar o aborto nas entrelinhas -- o que é desmentido por três especialistas consultadas pelo Estadão Verifica.

Para a advogada criminalista Thais Monteiro, do escritório Feller e Pacífico, de São Paulo, especializado em Direito Penal, não existe qualquer margem para a legalização do aborto nas propostas. "Não se vislumbra qualquer nova regulamentação sobre o crime aborto, nem de forma direta, nem indireta", comenta.

Segundo Monteiro, os projetos são claros a que se destinam: proteção da integridade física e psíquica da mulher vítima de agressões durante a pandemia. Ela argumenta que as medidas previstas são de ordem "estritamente protetivas", com prazo determinado de vigência, e não existe tentativa alguma de manipulação de linguagem, como sugerem as postagens falsas.

A advogada Marina Ruzzi, do escritório Braga & Ruzzi, de São Paulo, especializado no atendimento a mulheres, entende que nenhum dos projetos de lei traz modificações quanto à descriminalização do aborto nas primeiras semanas de vida do feto. A advogada argumenta que, para descriminalizar a prática nos termos colocados, seria necessário modificar os artigos 124 e 126 do Código Penal, o que não ocorre. 

"Por ora, o aborto é crime sempre, exceto em algumas exceções: risco de morte para a mãe, gravidez decorrente de estupro e em caso de anencefalia do feto", esclarece Ruzzi, que também integra a Rede Feminista de Juristas (Defemde).

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A advogada Gabriela Souza, especialista no atendimento a mulheres em Porto Alegre, também entende que não existe "qualquer menção a aborto ou interrupção de gravidez de nenhuma forma, nem de forma tácita" nos projetos aprovados pelos deputados. 

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"A única legislação vigente no Brasil acerca do aborto é o Código Penal, que criminaliza o aborto, por isso afirmamos que o aborto é proibido no Brasil", aponta. Ela também entende que, para legalizar o aborto até 22 semanas, como sugerem as publicações nas redes, o Congresso precisaria acrescentar inciso específico no artigo 128 do Código Penal, permitindo a opção da gestante até aquele período sem punir médico e paciente.

Além de inventar que os PLs descriminalizariam o aborto até 22 semanas, os boatos no Facebook acusam diretamente o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de ter aprovado a legislação na "calada da noite". Procurada pela reportagem, a assessoria do parlamentar afirmou que os projetos de lei aprovados não fazem qualquer referência a aborto. Também destacou que a sessão foi conduzida pelo vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), e não por Maia. Além disso, a votação foi finalizada em torno das 21h30min, sendo inverídico que a aprovação se deu na "calada da noite". 

O que diz o Código Penal sobre o aborto

O artigo 124 do Código Penal (Decreto-Lei Nº 2.848/1940) estabelece como crime o ato de "provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque", enquanto o artigo 126 trata da ação de "provocar aborto com o consentimento da gestante". As penas são aumentadas em caso de lesão corporal grave e morte, segundo o artigo 127.

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Em vigor desde 1940, o Código Penal também determina, no artigo 128, que não se pune o aborto praticado por médico quando "não há outro meio de salvar a vida da gestante" e "se a gravidez resulta de estupro". Esses eram os dois únicos casos em que o procedimento não era considerado crime até 2012.

Em abril daquele ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por maioria que o feto anencéfalo (ausência de partes do cérebro) é natimorto e que a interrupção da gravidez nesses casos não pode ser comparada ao aborto. Os ministros favoráveis à medida argumentaram que a legislação determina o aborto como "crime contra a vida" e citaram que a saúde física e psíquica da mulher pode ser prejudicada caso a gestação seja levada até o fim.

Aborto não foi substituído por outros termos em documentos oficiais

O boato afirma que, para enganar a população, a palavra "aborto" teria sido substituída por dois termos: "atenção humanizada" e "atendimento integral à mulher". O primeiro termo não é sequer mencionado nos projetos. O segundo aparece apenas no PL 1444/2020 quando o texto trata dos Centros de Atendimento Integral e Multidisciplinar para Mulheres -- locais de apoio a vítimas de violência doméstica e familiar e seus dependentes criados a partir da Lei Nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha.

A suposta relação entre esses dois termos e o aborto, segundo as postagens falsas no Facebook, estaria presente em publicações de órgãos públicos. Porém, a primeira definição apresentada, sobre "atenção humanizada", não faz qualquer menção ao aborto. É dito apenas que a mulher deve ser incluída nas decisões sobre seu próprio corpo e que tem direito ao planejamento familiar e métodos e técnicas de prevenção de gravidez. A fonte original é um texto do Conselho Nacional de Saúde, publicado no Dia Internacional da Mulher de 2019.

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Já o segunda definição sugerida pelo boato, sobre "atendimento integral à mulher", distorce uma informação prestada pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul. A pasta estadual afirma, em sua página oficial, que desenvolve o trabalho de Saúde da Mulher a partir de quatro eixos, sendo um deles a "saúde reprodutiva, com ênfase na melhoria da atenção obstétrica, no planejamento reprodutivo e na atenção ao abortamento". 

Isso não quer dizer que as equipes de saúde no Estado gaúcho devem incentivar ou realizar o aborto ilegal, e sim prestar atendimento a mulheres que passaram pelo procedimento e orientar as pacientes. Procurado pela reportagem, o órgão de saúde respondeu, por meio de nota, que a atenção digna a mulheres em situação de abortamento é uma "importante questão de saúde pública" pois o procedimento é uma das causas de mortalidade materna no País. A Secretaria também ressaltou que o procedimento nem sempre é crime, de acordo com o Código Penal.

Na mesma página, a Secretaria Estadual de Saúde menciona a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), publicada pelo Ministério da Saúde em 2004 e que orienta o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) no País. O documento também é citado no artigo do Conselho Nacional de Saúde mencionado nas postagens falsas.

De acordo com o programa do Ministério da Saúde, o aborto realizado em condições inseguras figura entre as principais causas de morte materna e também motiva casos de discriminação e violência institucional nos serviços de saúde. O documento propõe "qualificar e humanizar a atenção à mulher em situação de abortamento" -- por exemplo, orientando sobre métodos contraceptivos e encaminhando a paciente para outros profissionais da rede pública. Não há qualquer trecho sobre promoção do aborto ou que sinalize a adoção dos termos citados em substituição.

Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher

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Deputados bolsonaristas repercutiram o boato

Além dos boatos no Facebook sobre a descriminalização do aborto, a reportagem encontrou um texto enganoso a respeito do assunto no site Senso Incomum, publicado em 9 de julho, com as mesmas citações. Diversos deputados bolsonaristas também publicaram conteúdo enganoso sobre os projetos de lei, como Chris Tonietto (PSL-RJ), Carla Zambelli (PSL-SP), Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP). A revista Época noticiou recentemente o fato.

Esses conteúdos divulgados por parlamentares alegam que os projetos aprovados recentemente abrem "brecha" para a prática de aborto no Brasil por existir uma suposta vinculação com a Lei Nº 12.845/2013 -- mas não há qualquer referência a essa legislação nos dois PLs. A lei de 2013 foi sancionada por Dilma Rousseff (PT) e estabelece "profilaxia da gravidez" a mulheres vítimas de violência sexual. O Ministério da Saúde declarou que o termo "profilaxia" faz referência a administração de pílula do dia seguinte, que apenas evita a fecundação. Além disso, o Código Penal determina que a interrupção da gravidez decorrente de estupro não é crime.

Aos Fatos, Agência Lupa e Boatos.org também verificaram o conteúdo analisado nesta checagem do Estadão Verifica e chegaram à mesma conclusão.

Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.

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Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook  é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas:  apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.

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