Esta checagem foi produzida por jornalistas da coalizão do Comprova. Leia mais sobre nossa parceria aqui.
Conteúdo investigado: Post publicado no Twitter pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) sobre a portaria 230 do Ministério da Saúde. O parlamentar afirma: “Querem que seu filho mude de sexo sem consentimento dos pais, isso sim”. Ele também diz que o documento “implementa ideologia de gênero através do SUS”.
Onde foi publicado: Twitter e Instagram.
Conclusão do Comprova: A portaria 230 do Ministério da Saúde não aborda a cirurgia de “mudança de sexo” em menores de idade sem a autorização dos pais. A alegação enganosa foi feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro em tuíte que ele diz que o ministério quer “implementar a ideologia de gênero no SUS”.
A norma instituiu o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no SUS, criando condições para a promoção da equidade no ambiente de trabalho (veja aqui). Em nenhum trecho o texto aborda tratamentos para mudança de sexo.
Consultado pela reportagem, o Ministério da Saúde afirmou que “a idade mínima recomendada para a realização de procedimentos com hormônios no processo transexualizador pelo SUS é a partir dos 18 anos e os procedimentos cirúrgicos são permitidos a partir dos 21 anos”.
Ao Comprova, o órgão destacou ainda que o post viral é “um desserviço e um desrespeito à população brasileira”. Sobre a portaria, o órgão reforçou objetivos descritos no documento: “modificar as estruturas machistas e racistas que operam na divisão do trabalho, enfrentar as diversas formas de violências relacionadas ao trabalho na saúde, acolher as trabalhadoras da saúde no processo de maternidade, promover o acolhimento às mulheres no âmbito do trabalho, garantir ações de promoção e reabilitação relacionadas à saúde mental e às questões de gênero”.
Já sobre o uso do termo “ideologia de gênero”, ele surgiu como uma invenção da Igreja Católica, conforme detalha a pesquisa “Os estudos feministas sobre ‘ideologia de gênero’ no Brasil: uma análise nas produções científicas”, da Universidade de Brasília (UnB). Segundo explica reportagem do G1, a expressão não é reconhecida no meio acadêmico e é usada por grupos conservadores “contrários aos estudos de gênero iniciados nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos e na Europa — que teorizam a diferença entre o sexo biológico e o gênero”.
Enganoso, para o Comprova, é todo conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações; que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O tuíte somava 116,4 mil visualizações, 6,9 mil curtidas, 1,7 mil compartilhamentos e 78 comentários até 21 de março. No Instagram, foram quase 17 mil interações até a mesma data.
O que diz o responsável pela publicação: A reportagem tentou contato com o deputado via mensagem privada no Instagram e por meio de sua assessoria de imprensa, mas não houve retorno até a publicação deste texto.
Como verificamos: Primeiramente, localizamos a portaria 230 no site do governo federal e fizemos a leitura na íntegra, para entender o teor do documento. Sem encontrar nenhum conteúdo minimamente relacionado a cirurgia de redesignação sexual, buscamos por palavras como “sexo” e “cirurgia”, mas nada foi encontrado.
Depois, pesquisamos no Google por termos como “portaria 230″ e “Ministério da Saúde”. Obtivemos como retorno reportagens sobre o lançamento da portaria, seu conteúdo e críticas ao documento. Ao buscar por termos como “ideologia de gênero”, “identidade de gênero” e “gênero”, localizamos conteúdos publicados pela imprensa profissional a respeito das diferenças entre os termos (Plural, Agência Pública, G1) e um trabalho acadêmico que explora a temática.
Também fizemos contato com a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde por e-mail e telefone e entrevistamos, por telefone, o professor do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Seffner, que coordena a linha de pesquisa Educação, Sexualidade e Relações de Gênero. Seffner pesquisa o tema há mais de 30 anos.
O que estabelece a portaria
O documento foi publicado em 8 de março de 2023 pela ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima. Ele, que institui o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no Sistema Único de Saúde, faz parte de um pacote de ações anunciado no Dia Internacional da Mulher pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
De acordo com o Ministério da Saúde e conforme é possível verificar no próprio documento, o programa busca modificar as estruturas machistas e racistas que operam na divisão do trabalho; enfrentar as diversas formas de violências relacionadas ao trabalho na saúde; acolher as trabalhadoras da saúde no processo de maternidade; promover o acolhimento às mulheres no âmbito do trabalho; e garantir ações de promoção e reabilitação relacionadas à saúde mental e às questões de gênero.
Atualmente, segundo a pasta, mulheres representam 74% da força de trabalho no SUS. Somente na rede pública, são mais de 2,1 milhões de trabalhadoras. As ações previstas pelo programa vão ampliar as condições necessárias à prática da equidade.
O princípio da equidade, termo evidenciado pelo programa e cuja definição consta no anexo à portaria, consiste em “tratar desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade, no intuito de atingir a justiça social”, ou seja, passa por reconhecer as diferenças entre as pessoas e ajustar esse “desequilíbrio”.
Ações previstas
As diretrizes de cada um dos objetivos elencados acima também estão detalhadas no anexo disponibilizado junto à portaria (item 3). Elas buscam assegurar os direitos humanos para os diferentes grupos sociais de trabalhadores do SUS.
Entre elas está a adoção de linguagem que evite termos machistas no cotidiano institucional, o incentivo a práticas de gestão que promovam igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, o fomento a programas de prevenção e combate ao assédio moral e sexual no trabalho, a eliminação do preconceito e da discriminação de mulheres trans, a ampliação do debate sobre etarismo, a inclusão da temática de orientação sexual e identidade de gênero nos processos de educação permanente da rede pública de saúde, a oferta de acolhimento a trabalhadoras lactantes no ambiente de trabalho e o estímulo a medidas institucionais para evitar a Síndrome de Burnout e outros sofrimentos psíquicos entre as trabalhadoras da saúde.
A iniciativa será coordenada pelo Ministério da Saúde. Conforme a portaria, para alcançar os objetivos traçados, serão feitas chamadas públicas para seleção e execução de projetos que estejam alinhados à proposta do programa, oferecerá cursos na área de equidade de gênero e raça, disponibilizará aplicativo com instruções sobre o programa e incluirá o tema “equidade” no âmbito do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Os processos formativos serão direcionados a trabalhadores e gestores do SUS, além de estudantes da área.
As críticas ao documento
O conteúdo da portaria 230 foi apresentado pelo governo federal em cerimônia no Palácio do Planalto, que, além de Lula, contou com a presença da primeira-dama, Janja Lula da Silva, de ministros do governo e de representantes de bancos públicos. Desde seu lançamento, o documento vem sofrendo críticas, especialmente por parte de políticos da oposição.
No dia 10 de março, a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) apresentou um projeto de decreto legislativo com intenção de sustar os efeitos da portaria. Entre as justificativas, ela cita que o Ministério da Saúde estaria “criando deveres [a trabalhadores do SUS] ligados à disseminação de temas relativos à ‘teoria de gênero’”.
Já a deputada Coronel Fernanda (PL-MT) entrou com pedido de convocação da ministra Nísia Trindade ao plenário da Câmara Federal, a fim de prestar esclarecimentos sobre a portaria. As justificativas são as mesmas usadas por sua colega de partido, citando a “teoria de gênero” como um “produto ideológico” e “um discurso que substitui a realidade por uma motivação política”.
Maiores de idade
A portaria que orienta sobre o processo transexualizador no SUS é a número 2.803, de 2013, como informado pelo Ministério da Saúde ao Comprova. Segundo o texto, a idade mínima recomendada para a realização de procedimentos com hormônios pelo SUS é de 18 anos; os procedimentos cirúrgicos são permitidos para pessoas a partir dos 21 anos.
Os tratamentos, como todos no SUS, são gratuitos e, ainda como informou o ministério ao Comprova, incluem acompanhamento psicológico e exames, além da hormonioterapia e cirurgias.
Sem respaldo científico
Criado em reação ao movimento feminista por grupos neofundamentalistas católicos, como explica reportagem do G1 e estudo da UnB, o termo “ideologia de gênero” busca contrapor-se aos estudos de gênero, que teorizam a diferença entre o sexo biológico e o gênero com o qual cada pessoa se identifica. Tal expressão, porém, não encontra respaldo no meio científico. Nos últimos anos, o termo vem sendo explorado politicamente por grupos conservadores, sob alegação de ameaça à família tradicional cristã.
“Tem havido, na última década, pelo menos, mais especificamente nos últimos seis anos, uma explosão do que eu chamo de pânico moral sempre que se fala em gênero”, observa o professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS Fernando Seffner, citando o falso caso “kit gay”, associado, de maneira equivocada, ao PT nas eleições de 2018.
“Do ponto de vista acadêmico, existem estudos de gênero, de sexualidade e de perspectiva de gênero. ‘Ideologia de gênero’ é um termo inventado por essa corrente um tanto religiosa, conservadora, e que faz dois desserviços: toma ‘ideologia’ como uma coisa nefasta, sendo que todos nós temos uma ideologia na cabeça; e outra coisa é colar isso no ‘gênero’ e dizer que ‘gênero’ é invenção.”
Pesquisador da temática de gênero e sexualidade há mais de 30 anos, o professor explica que as políticas públicas que abarcam a “perspectiva de gênero” passaram a se espalhar pelo mundo a partir de duas conferências da Organização das Nações Unidas (ONU): a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento no Cairo, em 1994, e a Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres em Pequim, em 1995.
“Políticas públicas começaram a ter por escrito nelas esse cuidado com as populações vulneráveis, como as mulheres. É olhar uma classe de alunos, um atendimento ambulatorial de serviço de saúde, um concurso para juiz, e perceber que mulheres têm menos oportunidades do que os homens. Essas políticas incluíram também a questão racial. Hoje em dia, se busca uma equidade de raça e de gênero”, explica Seffner.
O que podemos aprender com esta verificação: Como já informado, o post retira um conteúdo original de contexto. O autor usa uma informação verdadeira – a publicação da portaria – para fabricar uma mentira. Esta é uma tática comum dos desinformadores, à qual devemos ficar atentos.
Outro ponto a ser destacado é que ele abre o post comentando sobre uma reportagem do site Metrópoles com as palavras: “Absurdo! Urgente!”. Esta é outra prática de quem dissemina informações enganosas, “apresentar” informações bombásticas. Mesmo que, neste caso, o autor esteja sendo irônico ao usar essas palavras, sempre que o conteúdo de um post que não foi publicado por veículos profissionais começar dessa forma, desconfie.
Também devemos pensar se o conteúdo faz sentido. Neste caso, o autor afirma que a portaria vai permitir que crianças “mudem de sexo” sem o aval dos responsáveis. Antes de acreditar e disseminar desinformação, pense se isso seria possível. Basta perguntar: “Como assim? Uma criança vai entrar no hospital público, dizer que quer mudar de gênero e os médicos vão operá-la?”.
Por fim, normalmente, ao citar documentos oficiais, os produtores de desinformação não compartilham o conteúdo desse documento na íntegra. Desconfie e busque pelo texto oficial para entender o que, de fato, estabelece o texto citado.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: A temática gênero já apareceu em outras checagens feitas pelo Comprova. Em 2018, por exemplo, constatamos que Haddad não afirmou que governo deve decidir o gênero das crianças e, em 2020, que não é verdade que vacina contra a covid-19 cause câncer, danos genéticos ou “homossexualismo”.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.