O que estão compartilhando: que um estudo teria descoberto que crianças vacinadas contra a covid-19 enfrentam risco elevado no sistema imunológico. Dados dos Estados Unidos teriam mostrado que crianças imunizadas de 5 a 18 anos morrem 5,7 vezes mais que as não vacinadas. Além disso, na Nova Zelândia teria ocorrido aumento de cinco vezes nas chamadas de emergência cardíaca de pessoas com menos de 40 anos após o lançamento dos imunizantes.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. A postagem mistura dados de três fontes diferentes. O primeiro estudo citado, feito na Alemanha, não indica dano imunológico em crianças, como mostrou esta checagem do Verifica. O segundo dado, referente aos Estados Unidos, é de um estudo que investiga a relação entre a covid-19 e maior incidência de asma. A pesquisa não indica maior ocorrência de mortes em crianças não vacinadas. A terceira informação, sobre a Nova Zelândia, foi divulgada por um perfil antivacina, não em um estudo. Os dados não comprovam relação entre vacinas e problemas no coração. As vacinas contra a covid-19 são seguras e eficazes, inclusive para o público infantil.
Ao Verifica, o autor da postagem no Instagram, o médico José Nasser, manteve as alegações e afirmou que sempre publica artigos científicos, e não opinião científica. “Todos os dias eu gasto horas do meu dia estudando para não trazer informações que não sejam relevantes”, afirmou.
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Estudo alemão não mostra que vacina causa danos à imunidade
A postagem no Instagram cita que um estudo teria identificado danos imunológicos após a vacinação em crianças; a imagem na publicação mostra uma título em inglês sobre o assunto. O Verifica procurou pelos termos citados e descobriu que esse título é sobre um estudo alemão já analisado anteriormente pelo Estadão.
Segundo o conteúdo em inglês, uma equipe de pesquisadores alemães, liderada pelo doutor Robin Kobbe, teria analisado amostras de sangue de 14 crianças saudáveis com idades entre 5 e 11 anos e monitorado as respostas imunológicas após a primeira dose da vacina da Pfizer. O texto alega que, um ano após a vacinação, os pesquisadores teriam observado níveis elevados de anticorpos IgG4 no sangue das crianças. Isso indicaria, segundo o conteúdo em inglês, “mudança na resposta imunológica e elevação do risco de câncer”. Mas essa afirmação foi desmentida pelo Verifica.
O estudo, publicado em 30 de julho, foi analisado por dois especialistas, que informaram que ele não indica a ocorrência de danos à imunidade de crianças após a vacinação contra o coronavírus. O imunologista Orlando da Costa Ferreira Junior, do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), informou que sequer faz sentido a alegação de que as crianças tiveram mudança na resposta imunológica, já que esse é o objetivo da vacina.
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De acordo com ele, o fato de aparecer o anticorpo IgG4 após a vacinação em crianças é um achado porque, até então, isso só havia sido observado em adultos. Mas a presença do anticorpo não significa um dano à saúde dos pequenos. Para saber a consequência desse achado, explicou Orlando, seriam necessários outros estudos.
A virologista e imunologista Jordana Coelho dos Reis, professora do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirmou que o estudo não mostra que o IgG4 provoca danos no organismo das crianças. Ela explicou que os anticorpos do tipo IgG (com as subclasses IgG1, IgG2, IgG3 e IgG4) são os que permanecem no organismo por mais tempo e garantem a resposta imune de longo prazo. As subclasses IgG2 e IgG4 são as que reconhecem os antígenos (substâncias estranhas ao organismo) e é esperado que elas apareçam tardiamente, pois estão reconhecendo os detalhes da proteína spike (uma parte do vírus da covid).
Assim como Orlando, a virologista destacou serem necessários mais estudos para entender exatamente qual a função do IgG4 no contexto vacinal, mas não há qualquer evidência de que ele possa causar doenças. A Reuters também desmentiu postagens que deturparam o estudo.
Pesquisa com dados dos Estados Unidos foca em desenvolvimento de asma, não em mortes
A segunda afirmação da postagem analisada aqui é a de que dados dos Estados Unidos teriam mostrado que crianças vacinadas com idades entre 5 e 18 anos morreram 5,7 vezes mais do as não vacinadas. A postagem afirma que, segundo o empresário Steve Kirsch, o estudo teria analisado mais de 300 mil indivíduos nessa faixa etária.
Ao pesquisar a fonte dessa alegação, a reportagem chegou a um texto publicado por Kirsch no Substack, uma plataforma de publicação de newsletters. O empresário fez uma análise do artigo Associação entre vacina/infecção por covid-19 e asma de início recente em crianças - com base no banco de dados global TriNetX, publicado em junho deste ano na revista Infection, pelos pesquisadores Chiao-Yu Yang, Yu-Hsiang Shih & Chia-Chi Lung, da Universidade Médica de Chung Shan, em Taiwan.
O estudo analisa evidências de associação entre a infecção pela covid-19 e maior incidência de asma em adultos, o que levantaria preocupações sobre o impacto na saúde respiratória das crianças. Os autores fizeram um estudo de coorte retrospectivo, modalidade de pesquisa em que a ocorrência a doença estudada precede o início da análise. São escolhidos grupos formados no passado, acompanhados até o presente. Esse tipo de estudo depende da disponibilidade de registros e é mais rápido e barato.
No caso aqui analisado, os autores usaram registros médicos eletrônicos do banco de dados TriNetX, de 1º de janeiro de 2021 a 31 de dezembro de 2022. Foram analisados registros de crianças de 5 a 18 anos não vacinadas, com e sem infecção por covid, e crianças vacinadas, com e sem infecção.
Os autores afirmam ter encontrado uma incidência significativamente maior de asma de início recente em crianças infectadas com covid-19 em comparação com as não infectadas. Isso foi observado independentemente do estado de vacinação. Nas vacinadas, esse risco seria ainda mais acentuado. Os pesquisadores concluem que isso enfatiza a necessidade de monitoramento contínuo e de estratégias de saúde personalizadas para mitigar os impactos respiratórios de longo prazo da covid-19 em crianças. Eles defendem estratégias completas para gerenciar e prevenir a asma em meio à pandemia.
Em seu texto, Kirsch aborda um dado do estudo que consta em uma tabela que está no Material Suplementar 1. De acordo com ele, os dados ali presentes mostrariam que as crianças vacinadas morreram mais que as não vacinadas. Em sua argumentação, o empresário usa dados obtidos com a plataforma de inteligência artificial ChatGPT, referentes às principais causas de mortes entre crianças nos Estados Unidos. Ele compara esses números com as comorbidades dos pacientes estudados na pesquisa, e diz que as mortes entre os vacinados não pode ser explicada por essas comorbidades.
A tabela inserida no estudo divide indivíduos infectados com covid-19 e não infectados em dois grupos: não vacinados e vacinados. Eis os dados citados:
Entre os não vacinados
- 2.988 pacientes que não tiveram covid desenvolveram asma (1,9%);
- 7.207 que tiveram covid desenvolveram asma (4,5%);
- 140 que não tiveram covid morreram (0,1%);
- 169 que tiveram covid morreram (0,1%).
Entre vacinados
- 767 pacientes que não tiveram covid desenvolveram asma (2,4%);
- 2386 que tiveram covid desenvolveram asma (7,4%);
- 188 que não tiveram covid morreram (0,6%);
- 166 que tiveram covid morreram (0,5%).
Conforme o médico geneticista Salmo Raskin, CEO do Laboratório Genetika, que analisou o estudo a pedido do Verifica, a pesquisa oferece pontos interessantes entre a infecção por covid-19 e o início de asma em crianças, mas não tem o objetivo de analisar mortes entre vacinados e não vacinados. Os números de mortes registrados entre os participantes da pesquisa foram pequenos e não devem ser analisados de forma isolada.
O especialista destaca que os achados da pesquisa em relação à asma têm muitas limitações que comprometem a sua relevância. O primeiro é o fato o estudo ser observacional, ou seja, um tipo de estudo que permite que os pesquisadores observem e analisem o comportamento natural de um grupo ou indivíduo sem interferir em seu ambiente. Pesquisas observacionais são úteis para identificar associações entre fatores, mas não permitem estabelecer relações de causa e efeito. Além disso, a qualidade dos dados pode ser afetada por diferentes vieses de seleção ou de informação, o que é limitador.
“Embora o estudo aponte uma associação entre infecção/vacinação por covid-19 e o início de asma, por exemplo, ele não pode provar definitivamente que uma causa o outro. Neste artigo científico, o próprio autor explica que podem existir várias hipóteses para explicar seus achados”, explicou.
Conforme o médico, entre as explicações possíveis, podem estar a resposta imunológica à vacina, a interação entre a vacina e o vírus e outros fatores ambientais ou genéticos não relacionados. Nenhuma dessas variáveis foi analisada pelos pesquisadores. “O autor cita ao menos dois trabalhos (1 e 2) que encontraram resultados opostos ao dele, ou seja, que vacinados têm um risco menor de desenvolver um primeiro episódio de asma do que não vacinados”, ressaltou Raskin.
O médico detalhou ainda que vários fatores sequer foram investigados e podem mudar os resultados e conclusões. “O principal problema destes estudos é que comparam grupos de pessoas com diferentes perfis antes de receberem a vacina”, afirmou. “O próprio autor toma o cuidado de dizer que esta metodologia limita a habilidade de confirmar causalidade. Ou seja, o trabalho não permite estabelecer uma relação clara e inquestionável entre causa (vacinação para covid-19) e efeito (maior prevalência de um primeiro episódio de asma)”.
O geneticista disse ser no mínimo intrigante e difícil de compreender a conclusão do estudo de haver risco maior de desenvolvimento de asma em crianças vacinadas. “A vacinação sabidamente protege contra as formas mais graves da covid-19, pelo menos por um período de meses após a vacinação. Portanto, fica difícil encontrar plausibilidade neste achado”, afirmou.
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Dados de problemas cardíacos da Nova Zelândia não são de artigo científico
A postagem analisada afirma que que dados da Nova Zelândia teriam mostrarado aumento de cinco vezes nas chamadas de emergência cardíaca de pessoas com menos de 40 anos após o lançamento das vacinas. Ocorre que o dado não veio de um texto científico, mas de uma publicação no site do antivacina Guy Hatchard.
Ele solicitou ao Ministério da Saúde da Nova Zelândia o número de pessoas com menos de 40 anos que chegaram às emergência dos hospitais do país com dor no peito ou problemas cardíacos entre 2019 e julho de 2024. Conforme Hatchard, o governo informou que:
- Em 2019, foram 2219 atendimentos;
- Em 2020, 4.406;
- Em 2021, 13.063;
- Em 2022, 21.416;
- Em 2023, 20.005;
- Até junho de 2024, 14.639.
O texto de Hatchard também foi analisado pelo geneticista Salmo Raskin, que destacou não ter havido qualquer tipo de estudo para verificar a relação entre causa e efeito. “Hatchard imediatamente associou o fato (problema cardíaco ou dor no peito) à administração de vacinas de RNA mensageiro (como Pfizer, por exemplo)”, explicou. “Ele ignorou completamente a possibilidade das pessoas poderem ter dor no peito ou problemas cardíacos por outros motivos, que são tantos e tão conhecidos que nem se faz necessário listar”.
Raskin destaca que muitos artigos científicos foram publicados demonstrando não haver correlação causal entre vacinas para covid e infarto do miocárdio. Um dos mais recentes, publicado em julho de 2024, na Nature Communications, é um estudo sobre segurança cardiovascular das diferentes doses de vacinação contra o coronavírus em 46 milhões de adultos na Inglaterra. Além dos já conhecidos raros casos de miocardite e pericardite, de severidade leve e menos frequentes do que aqueles provocados pela própria covid, nenhum outro risco cardiovascular foi encontrado em relação às vacinas.
As mesmas conclusões foram obtidas em recente estudo realizado em Israel e publicado no periódico científico JAMA. Trata-se de uma análise do caso de 5,7 milhões de pessoas após a segunda dose de vacina de RNA mensageiro. “Resultados semelhantes já foram relatados em dezenas de estudos publicados em periódicos científicos de alto impacto e com metodologias científicas muito mais adequadas que uma série de telefonemas”, comentou o médico.
Hatchard, que assina o texto associando problemas cardíacos às vacinas contra a covid-19, é reconhecido na Nova Zelândia por suas teorias conspiracionistas e antivacinas. A alegação dele também foi compartilhada por Steve Kirsch, outro conhecido negacionista apontado por publicar desinformação sobre mortalidade de vacinas na Nova Zelândia. A partir de Kirsch, Nasser fez a publicação no Brasil. O brasileiro também já foi desmentido várias vezes por alegações falsas e enganosas sobre imunizantes contra a covid-19 (1, 2, 3, 4 e 5).
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