Não é verdade que Bill Gates, fundador da Microsoft, tenha admitido que a "vacina experimental" contra a covid-19 "mudará o nosso DNA para sempre", como alega boato em circulação no Facebook. A peça apresenta trechos de um vídeo recente do empresário que não contém esse tipo de declaração. O conteúdo falso ainda distorce uma pesquisa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates, para alegar que a pandemia seria uma farsa e faria parte de um plano para "escravizar a humanidade".
O vídeo original foi publicado na página de Gates no YouTube em 30 de abril e faz parte de conteúdo do blog "Gates Notes" intitulado "O que você precisa saber sobre a vacina contra a covid-19". Bill Gates afirma na gravação que a invenção mais urgente no mundo atualmente é uma vacina que proteja contra o novo coronavírus. Em seguida, explica como esse produto funciona e menciona as diferentes formas de desenvolvimento, incluindo uma "nova e promissora maneira": as vacinas de DNA e RNA, também conhecidas como vacinas genéticas.
Gates não fala em nenhum momento que essa tecnologia vai transformar o DNA das pessoas. "Com RNA e DNA, ao invés de introduzir aquela forma (parcial, inativa ou morta do vírus), você coloca instruções no código para fazer aquela forma". Esse é o trecho recortado nas postagens falsas nas redes sociais. O conceito é melhor explicado no blog "Gates Notes", onde o vídeo está inserido.
"Ao invés de injetar o antígeno (substância estranha que força a produção de anticorpos) do agente infeccioso no corpo, você fornece ao corpo o código genético necessário para que ele mesmo produza o antígeno (dentro das células). Quando os antígenos aparecem do lado de fora das células, o sistema imunológico os ataca -- e aprende no processo a derrotar os futuros invasores. Você basicamente transforma o seu corpo em sua própria unidade de fabricação de vacinas", mostra o texto.
Em outras palavras, o método é diferente daqueles utilizados tradicionalmente, que consistem na introdução de partes do vírus -- ou mesmo o agente inteiro, mas morto ou inativo -- para que o sistema imunológico aprenda a combatê-lo. Os experimentos nesse novo método injetam trechos do código genético do vírus no organismo, que funcionam como uma receita para que as próprias células do corpo produzam os elementos estranhos e forcem a resposta imune. O processo não altera o DNA humano.
Apesar de demonstrar entusiasmo com a invenção por entender que pode apresentar desenvolvimento mais rápido e eficiente, Gates fala nessas vacinas como apenas duas opções, entre uma série de possibilidades. No blog, é feita ainda a ressalva de que o método é inédito e pode não funcionar, defendendo assim que é necessário "continuar perseguindo outras opções" e ter "o maior número de abordagens possível" enquanto nenhum projeto tiver eficácia e segurança comprovada.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) apontava 139 candidatas a vacina em estudos pré-clínicos e 26 com testagem em humanos em página oficial até esta sexta-feira, 31. Nenhuma delas está pronta ainda -- a instituição acredita que as primeiras serão aprovadas e começarão a ser distribuídas apenas em 2021. Entre as mais avançadas, seis delas utilizam a tecnologia de RNA, entre elas a da Moderna, produzida com apoio do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, e a da Pfizer com a BioNTech. Ambas chegaram à terceira e última etapa de desenvolvimento. Outros quatro imunizantes em potencial apostam no método de DNA, cuja ideia é semelhante.
Boato desinforma sobre pesquisa do MIT
Depois de exibir trechos editados do vídeo de Bill Gates, o conteúdo falso faz uma série de afirmações infundadas sobre um suposto plano de dominação por meio das vacinas. Essa parte é narrada por outra pessoa e mostra um texto em inglês, que não foi escrito pelo fundador da Microsoft.
A "prova" da suposta conspiração seria uma pesquisa do Massachusetts Institute of Technology (MIT), financiada pela Fundação Bill & Melinda Gates. Segundo o boato, os cientistas criaram uma "marca de identificação e registro de vacinas" que envolveria um "chip" e um "sistema de rastreamento" e que, no fim das contas, essa tecnologia alteraria o DNA da população. Nada disso é verdade.
De fato, o MIT divulgou, em 18 de dezembro de 2019, que pesquisadores da instituição desenvolveram uma nova maneira de registrar o histórico de vacinação dos pacientes, com apoio financeiro da fundação de Bill Gates. Mas essa tecnologia não envolve chips ou rastreamento algum, e sim corantes. A substância, invisível a olho nu, seria introduzida abaixo da superfície da pele, ao mesmo tempo que a vacina.
"Os pesquisadores mostraram que seu novo corante, que consiste em nanocristais chamados pontos quânticos, pode permanecer por pelo menos cinco anos sob a pele, onde emite luz infravermelha que pode ser detectada por um smartphone especialmente equipado", explica a publicação. A ideia é que o corante seja entregue por um adesivo com microagulhas, em vez das seringas tradicionais.
A justificativa do projeto é que a infraestrutura precária de armazenamento de registros médicos é um dos fatores que dificultam as campanhas de vacinação em diversos países, principalmente aqueles em desenvolvimento. Sem o histórico dos pacientes, os órgãos de saúde não conseguem determinar quem precisa de alguma imunização específica.
Bill Gates desmentiu o boato
Ao mesmo tempo que investiu mais de US$ 300 milhões no combate à covid-19, segundo notícia da BBC, Bill Gates desponta como um dos alvos favoritos de teorias da conspiração durante a pandemia. Especialistas consultados pela reportagem da BBC acreditam que isso ocorre simplesmente porque o fundador da Microsoft é rico e famoso, perfil que naturalmente aumenta a audiência dos boatos e gera temores na população. Além disso, o empresário está ligado à saúde pública, justamente o que está sob risco neste momento, e as pessoas estão "psicologicamente vulneráveis".
Gates lamentou os boatos em diversas entrevistas -- o canal de televisão CNBC, dos Estados Unidos, publicou um compilado de respostas em junho. Ele comentou especificamente sobre a teoria conspiratória dos microchips em uma delas: "Eu nunca estive envolvido com qualquer coisa sobre microchips [...] É bom saber quais crianças receberam ou não uma vacina contra o sarampo, então existem sistemas de dados e registros de saúde que fazem isso, mas nunca houve chips ou qualquer coisa do gênero". Ele também já disse que os boatos, muitas vezes, "são tão bizarros que você quase vê aquilo como algo humorístico, mas na verdade não é nada engraçado".
Em parceria com o Projeto Comprova, o Estadão Verifica já mostrou que é falso que a vacina contra o novo coronavírus terá "microchips" para rastrear a população.
A pandemia de covid-19 matou mais de 679 mil pessoas até este domingo, 2, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Mais de 17,8 milhões de pessoas já foram infectadas no planeta. O Brasil é o segundo País com mais óbitos: 93,5 mil.
Este boato foi checado por aparecer entre os principais conteúdos suspeitos que circulam no Facebook. O Estadão Verifica tem acesso a uma lista de postagens potencialmente falsas e a dados sobre sua viralização em razão de uma parceria com a rede social. Quando nossas verificações constatam que uma informação é enganosa, o Facebook reduz o alcance de sua circulação. Usuários da rede social e administradores de páginas recebem notificações se tiverem publicado ou compartilhado postagens marcadas como falsas. Um aviso também é enviado a quem quiser postar um conteúdo que tiver sido sinalizado como inverídico anteriormente.
Um pré-requisito para participar da parceria com o Facebook é obter certificação da International Fact Checking Network (IFCN), o que, no caso do Estadão Verifica, ocorreu em janeiro de 2019. A associação internacional de verificadores de fatos exige das entidades certificadas que assinem um código de princípios e assumam compromissos em cinco áreas: apartidarismo e imparcialidade; transparência das fontes; transparência do financiamento e organização; transparência da metodologia; e política de correções aberta e honesta. O comprometimento com essas práticas promove mais equilíbrio e precisão no trabalho.
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