Posts distorcem a História ao afirmar que militares em 1964 'impediram o comunismo' no Brasil

O presidente João Goulart, derrubado pelo golpe, não seguia a doutrina marxista; tampouco havia ameaça de que militantes tomassem o poder

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Foto do author Clarissa Pacheco
Atualização:

O golpe militar que mergulhou o Brasil em uma ditadura de 1964 a 1985 não foi uma resposta a uma ameaça comunista, como afirmam peças de desinformação que ganharam impulso nas redes sociais desde a quinta-feira, 31. No Facebook, uma imagem que soma mais de 700 mil visualizações e 3,1 mil compartilhamentos em 24 horas deturpa a História ao afirmar que, em 31 de março de 1964, "os militares impediram o comunismo no País".

O presidente da República deposto com o golpe, João Goulart, o Jango, estava longe de ser comunista, como já foi mostrado nesta checagem de um vídeo postado no YouTube pelo próprio presidente Jair Bolsonaro (PL).

Tanque militar próximo ao Palácio Guanabara, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 1964. FOTO: ACERVO ESTADÃO Foto: Estadão

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Mito do comunismo

O historiador Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq, explica que a versão de que havia uma ameaça comunista "não encontra bases da realidade". "João Goulart não era comunista", diz Fico. E acrescenta: "Não há evidência alguma de que estivesse preparando um golpe. Os golpistas vitoriosos tiveram amplas condições de investigar o governo deposto por meio de inúmeros inquéritos arbitrários e não acharam planos golpistas."

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Fico observa que comunistas apoiavam o governo de Goulart e havia greves e manifestações no período que incomodavam setores de direita. "O fato de haver muitas greves e manifestações não significa que houvesse a possibilidade de aquelas escassas lideranças comunistas tomarem o poder, algo que só poderia ser feito com amplo apoio popular e recurso às armas, sendo que essas lideranças não contavam nem com uma coisa, nem com outra", afirma o pesquisador.

O também historiador Paulo Cesar Gomes, que é pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e editor-chefe do site História da Ditadura, observa que Jango era proprietário de fazendas. "João Goulart, longíssimo de ser um comunista, era um latifundiário muito ligado ao ideário do trabalhismo, que ele herdou de Getúlio Vargas", disse. "As reformas de base que ele propôs eram muito tímidas."

O historiador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Carlos Zacarias também ressalta que Jango se enquadrava como um político trabalhista. "Era um nacionalista, da tradição trabalhista, ligado ao brizolismo, vinculado aos interesses de uma burguesia brasileira, sempre associada ao capitalismo internacional."

Para Paulo Cesar Gomes, de todas as reformas, a que ganhou mais repercussão foi a agrária. Ainda que Gomes considere a proposta "tímida", ele lembra que a mudança mexeria com questões históricas do Brasil. "Foi uma das questões que mais incomodaram os grupos dominantes, as elites e as classes médias, que acabaram apoiando o golpe", afirma.

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Ao UOL, em 2019, João Goulart Filho afirmou que o pai "nunca foi comunista". Segundo ele, o principal objetivo de Jango era a redistribuir terras. "A reforma agrária era o pesadelo das elites rurais brasileiras, que não paravam de caluniar o governo classificando-o de 'comunista'. A reforma agrária de Jango era uma reforma capitalista."

O anticomunismo

Mas, afinal, se não havia ameaça comunista, por que esse discurso causou tanto impacto no período e continua a ser mobilizado, quase seis décadas depois? Para Paulo Cesar Gomes, o anticomunismo já estava presente no Brasil desde o início do século XX, após a Revolução Russa de 1917, e ganhou mais força a partir de 1922, com a fundação no País do Partido Comunista. O grande marco desse movimento é 1935, quando ocorre a chamada "Intentona Comunista". Trata-se de uma revolta comandada pelo líder comunista Luís Carlos Prestes, que foi rapidamente debelada.

O historiador Rodrigo Patto escreveu no livro Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964) que a intentona teve grande repercussão. "O impacto foi enorme sobre a opinião conservadora, afinal, não era uma rebelião comum: tratou-se de uma tentativa armada dos comunistas de tomarem o poder, a qual, uma vez bem sucedida, poderia ter provocado grandes transformações na organização social brasileira."

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O historiador Caio Fernandes Barbosa fala que havia medo, mas não uma ameaça comunista real. "Basta olhar o alcance e tamanho das organizações comunistas em 1964. No entanto, o medo sempre foi um importante fator de mobilização da política no Brasil (poderíamos ir do medo da Revolução Haitiana até a Revolução Cubana). A fábula de que o Brasil e o mundo estavam sob ameaça comunista circulava bastante durante a Guerra Fria e ajudava a mobilizar vários setores da sociedade contra políticas de democratização, como eram as reformas de base de João Goulart".

O medo do comunismo estava instalado -- ainda que, no final das contas, nem se soubesse exatamente o que era aquilo. "O comunismo passou a ser utilizado como uma categoria, uma palavra, um significante muito vago", comenta Paulo Cesar Gomes. "Até por não haver um significado muito claro do que é o comunismo, ele é mobilizado em grande medida para gerar medo na população. Os comunistas são sempre o mal. Sempre se repetem as imagens de cores vermelhas, umas caras diabólicas, serpentes, são sempre coisas associadas a esse imaginário cristão relacionado ao inferno", aponta, citando uma análise da iconografia associada ao comunismo feita por Rodrigo Patto.

O discurso em torno da ameaça comunista era difundido inclusive nas Forças Armadas -- mas o que se via às vésperas de 1964 era diferente, segundo Gomes. "Mesmo que houvesse alguns pequenos grupos ou forças mais extremistas de esquerda, eram pouco relevantes e fracos para representar um perigo de tomada do poder no País", diz o historiador.

Para Carlos Fico, a versão que os golpistas vitoriosos propagaram foi a de que Jango implantaria uma "república sindicalista" no Brasil, nos moldes do peronismo argentino - e esse discurso ganhou eco até fora do Brasil e continua sendo utilizado na atualidade. "Essa versão foi muito propagada, inclusive pelo governo dos Estados Unidos, que estimulou o lançamento de um número especial da popular revista Seleções do Reader Digest intitulado A nação que salvou a si mesma, sustentando a versão da ameaça comunista. A expressão 'a nação que salvou a si mesma' foi usada pelo vice-presidente Mourão no último dia 31 no Twitter."

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O apoio dos norte-americanos foi mesmo importante na difusão do anticomunismo: "Os americanos, quando encontravam escritores que escreviam sobre esse fantasmagórico medo do comunismo, passavam a financiar, difundir e traduzir", diz Caio.

'Distorcionismo' da história

Para Paulo Cesar Gomes, discursos como o da imagem verificada aqui, que tentam justificar o golpe militar como algo necessário para impedir uma ascensão comunista, têm sido comuns nos últimos anos. Para ele, não é necessariamente um caso de negacionismo da história. É algo mais próximo de uma distorção dela. "Não seria exatamente um negacionismo no sentido clássico, mas uma espécie de distorcionismo", diz ele. "Porque não se nega o passado, não se nega que houve uma ditadura ou pelo menos não se nega a violência. A tentativa que se faz é de tornar essa violência positiva, com esse mito de que os militares livraram o Brasil do comunismo. Seria algo muito próximo do mito que fala que só sofreu algum tipo de violência quem fez alguma coisa errada, quem não seguiu as regras."

Nesta sexta-feira, 1º, a Associação Nacional de História (Anpuh) e o site História da Ditadura promoveram uma live sobre os mitos da ditadura militar no Brasil. O debate foi transmitido pelo canal da Anpuh-Brasil no YouTube.

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