Não é verdade que um vídeo que viralizou no Kwai e em outras plataformas mostre um “prefeito petista atirando para cima” ao ser cobrado pela população por supostamente mandar recolher a bomba de um poço artesiano perfurado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Na realidade, a gravação mostra o momento em que um agente da Polícia Civil de Pernambuco prende um ex-vereador de Petrolina durante um protesto na cidade.
O Estadão Verifica descobriu o real contexto a partir de elementos que aparecem no vídeo original. O homem que aparece armado nas imagens possui um veículo com placa de Petrolina e que estava adesivado com um logotipo da Polícia Civil e com propaganda eleitoral de um candidato a deputado estadual em Pernambuco, Rafael Cavalcanti, do União Brasil. O candidato é presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Estado (Sinpol-PE).
Em contato com a reportagem, Cavalcanti informou que se tratava de um agente da Polícia Civil e encaminhou o seu contato. Por telefone, o servidor se recusou a dar entrevista. Porém, o blog encontrou outros vídeos sobre o episódio em notícias de sites locais, confirmando que se tratava de uma abordagem policial em Petrolina. O protesto de moradores era contra problemas de abastecimento de água em um distrito na cidade, ocasionado por conta de uma obra executada pelo governo estadual, sem participação da União.
Não há qualquer registro de que a prefeitura tenha sabotado alguma obra do governo de Jair Bolsonaro na cidade, e o responsável pela publicação no Kwai não respondeu de onde teria tirado essa informação. Até março do ano passado, o município era comandado por Miguel Coelho (União Brasil), filho de Fernando Bezerra Coelho, ex-líder do governo Bolsonaro no Senado. Ele deixou o cargo para disputar as eleições e o vice-prefeito, Simão Durando, assumiu o governo.
Protesto contra falta de água
No real contexto do vídeo, o homem não é um “prefeito petista”, e sim o agente da Polícia Civil de Pernambuco Otávio Coelho. Ele efetuava a prisão do ex-vereador da cidade Domingos de Cristália, do PSD, durante um protesto em frente a uma instalação da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), no distrito rural de Izacolândia, que fica na divisa com o município de Lagoa Grande.
Segundo conteúdos divulgados por blogs locais, o político havia ameaçado invadir o local com outras pessoas em protesto contra problemas de abastecimento de água na região. Não há relação com o governo de Jair Bolsonaro, e a história de que o prefeito teria mandado recolher a bomba de um poço artesiano é uma invenção de uma conta bolsonarista no Kwai.
O distrito de Izacolândia, em Petrolina, e a cidade de Lagoa Grande historicamente convivem com abastecimento de água em esquema de rodízio. Em fevereiro do ano passado, teve início uma obra para regularizar a situação, por meio da substituição da tubulação atual por uma de maior diâmetro, aumentando o fluxo de água. O trabalho foi executado pela Compesa, que pertence ao Estado de Pernambuco.
A obra foi inaugurada em 23 de setembro, com o anúncio da suspensão do rodízio pelo então governador Paulo Câmara (PSB) e pelo prefeito de Lagoa Grande, Vilmar Capellaro (MDB). Os trabalhos, no entanto, ainda estavam inconclusos no distrito de Izacolândia, em Petrolina, o que gerou reclamações da população.
A Compesa emitiu um comunicado no mesmo dia, dizendo que houve interrupção do abastecimento de água em algumas áreas do distrito para “permitir a execução dos serviços de ampliação do sistema de abastecimento, obra que tem o objetivo de retirar a localidade do rodízio”. A previsão era regularizar o atendimento no dia seguinte, mas mantendo o acesso intercalado.
Sites de notícias da região mostram que o ex-vereador de Petrolina Domingos de Cristália cobrou publicamente a Compesa e a prefeitura de Lagoa Grande, alegando que o rodízio na cidade vizinha teria acabado porque “levaram a água de Izacolândia”. Ele convoca a população para invadir a Compesa, no dia 26 de setembro, caso a situação não fosse resolvida.
O Estadão pediu esclarecimentos para a Compesa e o governo de Pernambuco sobre o protesto dos moradores, as condições da obra e a situação atual do distrito rural de Petrolina. A companhia estadual reiterou que a falha na distribuição de água se deu por conta dos serviços de ampliação do sistema de abastecimento e que a obra segue em andamento, faltando apenas a compra de bombas para o sistema. A região continua sendo atendida em esquema de rodízio de três dias, enquanto Lagoa Grande está sem rodízio.
A Compesa destacou ainda que a obra é de caráter estadual, com investimento de R$ 1,6 milhão pelo governo passado e que pretende beneficiar cerca de 20 mil pessoas. Ela contemplou reforma da estrutura física da Estação de Tratamento de Água (ETA) Lagoa Grande, aquisição de leito filtrante, substituição dos conjuntos motobombas das estações elevatórias de água, implantação de 2 mil metros de redes de distribuição e 1.700 metros de adutora. “A distribuição de água nesse distrito e região cabe à Compesa, não tem nada a ver com o governo federal”, conclui a nota.
O que realmente mostra o vídeo
O vídeo analisado pelo Estadão Verifica mostra o momento em que a Polícia Civil foi acionada por funcionários da Compesa para dispersar o protesto em frente à instalação da companhia. O agente aparece nas imagens colocando o ex-vereador Domingos de Cristália dentro de um carro vermelho e dando partida.
É possível notar nas imagens que o policial tenta agredir um manifestante com uma pistola enquanto agia, mas não foi possível confirmar se houve disparo de arma de fogo para o alto, como alega o vídeo. Por telefone, o servidor disse que se reporta para a Corregedoria-Geral da Polícia Civil e que não concederia entrevista no momento.
Outra gravação publicada em um site de notícias local confirma que o agente leva o ex-vereador no mesmo veículo, um HB20 vermelho de mesma placa e adesivado com a propaganda eleitoral de Rafael Cavalcanti. No Instagram, um blog postou o momento em que o ex-vereador é liberado da delegacia, em meio a aplausos irônicos do policial. A pessoa que está gravando o acusa de tê-lo agredido.
Em resposta ao Estadão, a Polícia Civil de Pernambuco, por meio da Delegacia Seccional de Petrolina, declarou que a ocorrência realmente ocorreu no distrito de Izacolândia. “Não houve conflito entre policiais e a população, que participava de um protesto. Uma pessoa foi conduzida para a delegacia e liberada em seguida. Foi instaurado um inquérito policial que segue em curso”, declarou a instituição, em nota.
Narrador desinforma sobre o fato
A peça de desinformação desmentida pelo blog teve 17,2 mil curtidas, comentários e compartilhamentos no Kwai, uma rede social de vídeos curtos, e depois se espalhou em outras plataformas, como Twitter, Facebook e TikTok. As imagens, cuja autoria é desconhecida, não foram alteradas, mas a conta @joaocangaceiro, que costuma fazer publicações em apoio a Jair Bolsonaro e contra o PT, passou a narrar mentiras em cima do conteúdo.
“Prefeito petista trancou o poço que foi perfurado pelo Exército e a população foi em cima dele: e aí prefeito, cadê a água? O Bolsonaro foi quem fez o poço prefeito, libera a água pro povo. Ele ficou bravo, arrastou uma pistola, saiu dando no povo e atirando pra cima”, alega o homem, distorcendo os fatos. Outras publicações chamam o homem de “governador petista”.
O autor do vídeo afirma ainda que “tem muitos poços aqui no Nordeste que foram perfurados pelo (ex-)presidente e, em seguida, quando acabou a inauguração, o prefeito foi lá e mandou recolher a bomba”. Ele não apresenta nenhuma evidência disso. A mesma alegação falsa de sabotagem contra Jair Bolsonaro por governos de esquerda no Nordeste — seja em poços artesianos ou na transposição do Rio São Francisco — circularam antes nas redes, sem fundamento na realidade.
O que dizem os citados
O Estadão Verifica encaminhou uma mensagem pelo chat do aplicativo Kwai para a conta que compartilhou o boato, em 6 de fevereiro. O usuário apareceu online na plataforma, mas não respondeu aos questionamentos até a publicação desta checagem.
O agente da Polícia Civil Otávio Coelho não concedeu entrevista. Domingos de Cristália não foi localizado. A prefeitura de Lagoa Grande e o ex-governador Paulo Câmara não responderam. Não foi possível identificar o autor da gravação original que foi tirada de contexto.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.