Teoria da conspiração sobre laboratórios da 'Nova Ordem Mundial' na Ucrânia circula no WhatsApp

Texto apela para suposto telefonema a Trump e conta inexistente de Zelenski na Costa Rica, entre outras alegações infundadas

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Foto do author Samuel Lima
Atualização:

Atualização (08/03): título atualizado para maior clareza. Leia as últimas notícias sobre o conflito aqui.

Circulam mensagens no WhatsApp alegando que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está invadindo a Ucrânia para destruir laboratórios secretos que desenvolvem armas biológicas para uma fantasiosa e sinistra "Nova Ordem Mundial". O relato, no entanto, é uma teoria conspiratória desprovida de qualquer evidência e que apresenta uma série de furos -- a começar pelo suposto telefonema de Putin ao ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, do qual não há registro, mas serve de base para a suposta denúncia anônima de um site conhecido por espalhar desinformação.

 Foto: Estadão

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O boato parece ser uma adaptação de outras mensagens falsas que circularam nas redes sociais e se espalharam entre adeptos do QAnon, uma teoria conspiratória popular entre grupos de extrema-direita dos Estados Unidos.  De acordo com reportagem da revista Vice, a história se originou em um perfil anônimo no Twitter chamado @WarClandestine, que insinuou que os alvos reais da Rússia na Ucrânia seriam laboratórios biológicos controlados pelos Estados Unidos. Essa conta foi rapidamente suspensa da rede social, mas não o suficiente para evitar que a história viralizasse em outros canais conspiracionistas.

Mais tarde, um novo boato falso envolvendo telefonemas de Putin a Trump foi disseminado pelo blog Real Raw News -- uma página relativamente nova que costuma publicar textos falsos e sensacionalistas para obter cliques, segundo o Instituto Poynter. Esse mesmo site já divulgou materiais dizendo que Hillary Clinton havia sido enforcada e que Tom Hanks teria sido executado por militares, entre outros absurdos. A página foi excluída do Facebook por violação aos termos de uso no ano passado. Leitores do blog enviaram esse conteúdo como sugestão de checagem pelo WhatsApp  (11) 97683-7490.

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Os EUA negam a existência de laboratórios norte-americanos na Ucrânia. Ao Politifact, o diretor da Associação de Controle de Armas e ex-secretário assistente da Defesa para Programas de Defesa Nuclear, Química e Biológica, Andrew Weber, explicou que o que existe de fato é uma parceria técnica entre o Departamento de Defesa dos Estados Unidos e o Ministério da Saúde da Ucrânia, desde 2005, para evitar ameaças biológicas -- e não criá-las. Para isso, os Estados Unidos financiaram melhorias em laboratórios públicos da Ucrânia que desempenham um trabalho semelhante ao do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Segundo comunicado do governo da Ucrânia divulgado em maio de 2020, laboratórios de Odesa, Kharkiv, Lviv, Kiev, Vinnytsia, Kherson e Dnipropetrovsk foram modernizados por meio da iniciativa, que envolveu reformas, atualização de equipamentos e compra de suprimentos. A Embaixada dos Estados Unidos no país declarou em nota que "as prioridades do programa são consolidar e proteger patógenos e toxinas de interesse para a segurança e continuar a garantir que a Ucrânia possa detectar e reportar surtos causados por patógenos perigosos antes que eles representem ameaças".

O site Snopes, que chegou à mesma conclusão do Politifact, destaca que, para produzir a falsa coincidência entre a localização dos supostos laboratórios dos EUA e os primeiros ataques da ofensiva militar da Rússia, o rumor comparava dois mapas de origem desconhecida e que tinham diversas discrepâncias. Além disso, os marcadores de bombardeios nos tais mapas cobriam uma área de aproximadamente 65 quilômetros quadrados -- equivalente a cerca de 10 vezes o tamanho do complexo da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern), que gerencia o maior laboratório de física de partículas do mundo, na França e na Suíça.

Para a AFP, a diretora do Centro de Biodefesa, Direito e Políticas Públicas da Texas Tech University, Vickie Sutton, esclareceu que os Estados Unidos trabalham há décadas com outros países para conter armas biológicas e avançar em pesquisas para neutralizar qualquer patógeno de risco. Muitos países que antes faziam parte da União Soviética foram procurados por conta do histórico de estudos da antiga superpotência na área. FactCheck.org e USA Today também investigaram o boato e concluíram que se trata de uma falsidade.

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Ainda assim, as mídias estatais russa e chinesa vêm divulgando declarações de militares e diplomatas de que teriam sido encontradas evidências de que os Estados Unidos estão promovendo um programa de armas biológicas na Ucrânia. Essas provas jamais foram apresentadas, o que suscita desconfiança de que o assunto faz parte da propaganda interna para justificar o conflito.

Conta inexistente de Zelenski na Costa Rica

Uma das táticas do post para tentar conferir credibilidade à tese infundada de que alguns poderosos estariam desenvolvendo armas biológicas na Ucrânia é dizer que o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, teria recebido dinheiro em uma conta secreta na Costa Rica para autorizar as operações. Só que, mais uma vez, a história não se sustenta ao checar informações básicas.

Os sites que espalharam a falsidade primeiro atribuem a informação a um "membro do parlamento ucraniano" não identificado e alegam que a conta teria sido descoberta com US$ 1,2 bilhão no Dresdner Bank Lateinamerika. Essa instituição, no entanto, nem está cadastrada para operar no país da América Central, segundo consta no site da Superintendência Geral de Entidades Financeiras (Sugef), que integra o Banco Central da Costa Rica.

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Além disso, a Dresdner Bank Lateinamerika era uma subsidiária do banco alemão na América Latina que teve o fim das operações anunciado em 2004. De acordo com o Deutsche Welle, o Banco de Dresdner manteria apenas as agências no Brasil, na Colômbia, no México e no Chile, como apoio para clientes europeus.

Supostos telefonemas de Putin a Trump

O boato alega que a "fonte" dessa teoria seria alguém ligado a Donald Trump e que o ex-presidente dos Estados Unidos teria recebido vários telefonemas de Vladimir Putin sobre o assunto. Mas não há qualquer registro de que Trump e Putin tenham conversado por telefone desde o início do conflito no Leste Europeu.

Trump vem dando declarações controversas sobre o ataque russo contra a Ucrânia. Ele já elogiou Putin com os termos "gênio" e "corajoso" em meio a manobras militares -- ao mesmo tempo em que alfineta a política externa do atual presidente americano, Joe Biden, que o derrotou nas urnas em 2020. Porém, Trump também já condenou o ataque russo, dizendo que é uma "atrocidade que nunca deveria ter acontecido".

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Ataques russos a prédios residenciais

Outra inverdade espalhada pelo boato é o de que Putin está "apenas atirando em alvos militares" e que "nenhum edifício residencial foi afetado em Kiev". A alegação é facilmente rebatida pelo noticiário. Em 26 de fevereiro, por exemplo, ainda no terceiro dia da invasão contra a Ucrânia, um míssil russo atingiu um prédio residencial da capital, entre o 18º e o 21º andar, enquanto civis estavam sendo retirados (veja no vídeo abaixo).

Ainda em Kiev, o hospital infantil Okhmatdyt e uma torre de transmissão de TV foram atingidos. Os ataques também atingiram diversos aeroportos, como o de Hostomel, e prédios públicos, como a prefeitura e um prédio da polícia de Kharkiv, além de áreas residenciais desta que é a segunda maior cidade ucraniana. De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), pelo menos 406 civis morreram em 12 dias de conflito, entre 24 de fevereiro e 7 de março.

Em Mariupol, no sudeste do país, houve relatos de que as tropas russas cortaram o abastecimento de água da cidade e impediram a saída de civis em um cerco. O cessar-fogo imediato e o estabelecimento de corredores humanitários são as principais pautas em negociação hoje nos encontros entre líderes ucranianos e russos em Belarus. Acompanhe as últimas notícias na cobertura em tempo real do Estadão.

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Episódio na Ilha da Cobra e mais desinformação

Por fim, a corrente de WhatsApp analisada pelo Estadão Verifica acrescenta informações falsas sobre um evento recente que ocorreu com a aproximação de um navio de guerra russo a uma pequena ilha que pertence à Ucrânia no Mar Negro, a Ilha da Cobra. Vídeo divulgado pela imprensa europeia mostra militares ucranianos retrucando as ameaças de bombardeio com um xingamento

A ilha tem 0,17 quilômetro quadrado de extensão e é considerada estrategicamente importante devido aos recursos minerais do mar. A ideia de que ela poderia abrigar um laboratório de armas biológicas a mando do Mossad, o serviço secreto israelense, carece de embasamento.

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