O que estão compartilhando: que um relatório mostrou que a covid vazou de um laboratório de Wuhan, na China, o que prova que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estava certo sobre a origem do vírus.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O relatório em questão foi produzido por um subcomitê do Congresso dos Estados Unidos e foi apresentado por parlamentares republicanos. O documento contém informações falsas sobre vacinas e máscaras, que já foram desbancadas por órgãos de saúde e estudos científicos.
Ainda não se sabe ao certo a origem do SARS-CoV-2, que causa a covid. Até hoje, a teoria mais aceita pela comunidade científica é a de que o vírus teria passado de animais para humanos.
Saiba mais: Uma postagem publicada no Instagram reproduz a manchete de uma notícia publicada pelo portal americano Fox News. O título diz que um relatório concluiu que o vírus da covid-19 foi criado em um laboratório na China e que o isolamento social não tinha comprovação científica. Sobreposto ao conteúdo, um texto afirma que “Bolsonaro tinha razão” quanto à origem do vírus.
A postagem omite que o relatório reproduz teorias contestadas pela comunidade científica. O documento, produzido por congressistas, é político, e não científico.
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O que é e o que diz o relatório de republicanos dos EUA
O subcomitê do Congresso americano foi formado para investigar as origens da covid-19 e as possíveis falhas das políticas públicas dos Estados Unidos durante a pandemia. O grupo era composto por 16 parlamentares, divididos entre republicanos e democratas. O trabalho do subcomitê levou dois anos.
Em 2 de dezembro, os integrantes republicanos publicaram um relatório de 520 páginas. Segundo o presidente do subcomitê, Brad Wenstrup, foram feitas 38 entrevistas e 25 audiências ou reuniões. Anthony Fauci, principal autoridade pública no combate à pandemia, foi um dos ouvidos pelo subcomitê.
O documento (disponível aqui) reúne afirmações que não são amparadas pela comunidade científica. Por exemplo, a de que as vacinas não teriam sido eficientes e causariam mais “mal do que bem” e de que não haveria “evidências conclusivas de que as máscaras protegeram contra a doença”.
Em contrapartida, os membros democratas publicaram um relatório diferente (disponível aqui). Os democratas acusaram os republicanos de “desperdiçar” dois anos que poderiam ser usados em preparação para uma nova pandemia e afirmaram que os rivais políticos “difamaram os cientistas e autoridades de saúde pública” do país. Para os democratas, o relatório republicano seria um esforço para encobrir a “resposta desastrosa” do ex-presidente Donald Trump à pandemia.
Quais alegações falsas estão contidas no relatório
Muitas das teorias listadas no relatório republicano foram desmentidas por estudos e entidades médicas. Confira abaixo pontos falsos ou enganosos no documento.
- “O distanciamento social não foi eficaz, nem teve embasamento científico”.
Falso. Um artigo publicado na revista médica The Lancet concluiu, após revisar 44 estudos observacionais, que medidas como distanciamento físico de 1 metro e uso de máscaras faciais reduzem significativamente a transmissão do vírus da covid-19. O documento, financiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tinha o intuito de servir como guia para a formulação de políticas sobre as estratégias.
A médica Fernanda Grassi, imunologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que o intuito do isolamento é diminuir o número de pessoas que se infectam ao mesmo tempo. Na ausência de uma vacina, é uma medida eficaz.
“(O distanciamento) não aumentou o excesso de mortalidade", explicou. “O que aumentou foi o fato das pessoas adoecerem todas ao mesmo tempo. Houve um colapso do sistema de saúde em várias regiões que adotaram tardiamente as medidas de isolamento social”.
- “Não há evidências conclusivas de que as máscaras protegeram contra a covid”.
Falso. O uso de máscaras foi recomendado pela OMS durante a pandemia com base em evidências científicas. Atualmente, a organização entende que o uso de máscara reduz a propagação de doenças respiratórias e faz parte de um pacote de medidas de prevenção e controle da covid-19. Como mostrou uma checagem feita pelo Comprova, a OMS destaca que a utilização do item serve para evitar a infecção e a transmissão de doenças respiratórias e é amplamente recomendada por especialistas.
Um estudo citado pelo Comprova, publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), mostrou que uma pessoa não vacinada sem máscara a uma distância de até três metros de outra pessoa infectada pelo covid-19 e também sem máscara pode levar menos de cinco minutos para contrair a doença. Os resultados garantem a importância do uso do item de proteção numa situação de calamidade, como foi a pandemia.
- “A vacinação obrigatória não foi apoiada pela ciência e causou mais mal do que bem”.
Falso. Pesquisas científicas comprovam que o imunizante salvou vidas em todo o mundo. Um estudo do ano passado publicado na revista Journal of the Royal Society of Medicine mostrou que as vacinas contra a covid-19 protegem contra a hospitalização e morte. A proteção continua mesmo que a taxa de anticorpos medida no sangue apresente uma queda após seis meses - o que é considerado natural por especialistas. Indivíduos com a vacinação em dia também têm menor risco de morte pela doença em comparação aos não vacinados. O estudo foi realizado na Inglaterra, com dados obtidos pelo Sistema de Notificação de Paciente de Covid no país.
No Brasil, o Ministério da Saúde considera que os benefícios da vacinação superam os riscos. Todas as vacinas ofertadas pelo Programa Nacional de Imunizações, como é o caso da covid, são seguras e possuem autorização de uso pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
- “As crianças provavelmente não contribuíram para a disseminação da covid-19, nem sofreram com doenças graves ou mortalidade”.
Enganoso. Durante os primeiros anos da pandemia, as crianças eram consideradas menos propensas a transmitir o coronavírus (aqui e aqui). No entanto, elas passaram a ser mais afetadas pela doença à medida que a taxa de vacinação nesse grupo etário diminuiu. Em março deste ano, foram 48 mortes de crianças ou adolescentes. Eram, em média, três mortes a cada quatro dias no país por complicações da covid.
Crianças e adolescentes são a maioria entre os não vacinados. Segundo médicos especialistas ouvidos pelo Estadão, a doença está se tornando cada vez mais uma “doença pediátrica”, devido ao número significativo de casos graves nesse grupo.
O que se sabe sobre a origem do vírus da covid
Desde a crise sanitária causada pela covid-19, cientistas tentam descobrir o que poderia ter originado o vírus. Segundo Fernanda Grassi, da Fiocruz, a teoria mais aceita entre a comunidade científica é a de que o vírus tenha passado de animais para humanos.
“Isso é uma coisa que acontece muito frequentemente”, indicou. “(O vírus) tem uma origem animal e por conta do contato muito próximo entre os homens e esses animais, eles acabam quebrando a barreira de espécie e passando de uma espécie para outra. E isso acontece frequentemente com vírus respiratórios. A gripe, o HIV e a zika são exemplos disso".
A teoria de que o vírus teria sido criado em laboratório é divulgada desde o início da pandemia, mas não foi comprovada até o momento. Em junho do ano passado, um artigo no New England Journal of Medicine mapeou as investigações iniciadas desde 2020 e confirmou que “a maioria das evidências científicas identificadas até agora apoia a emergência natural” do vírus.
Segundo o artigo, mais da metade dos primeiros casos registrados de covid-19 foram conectados ao mercado de Huanan, na China. Além disso, um mapeamento epidemiológico revelou que havia concentração de casos no local.
Conforme mostrou o Comprova, o material genético dos primeiros casos de covid-19 na China constatou a presença de DNA animal. Isso é mais uma evidência de origem zoonótica.
A revista científica Nature publicou neste mês que o virologista Shi Zhengli mostrou que nenhum dos vírus armazenados nos freezers do Instituto de Virologia de Wuhan eram ancestrais do vírus da SARS-Cov-2. Shi liderava uma pesquisa sobre a família de vírus do coronavírus quando os primeiros casos de covid-19 foram relatados. Isso motivou teorias de que a doença teria vazado, intencionalmente ou acidentalmente, do laboratório de Shi.
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