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Revogação de portarias do governo federal não facilitou contaminação por HIV em transplantados no RJ

Normativas revogadas não tratavam de exames laboratoriais realizados em doadores nem do controle de qualidade desses procedimentos

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O que estão compartilhando: que o Ministério da Saúde revogou duas portarias fundamentais para garantir a segurança e a qualidade dos transplantes no Brasil, o que teria facilitado a ocorrência do caso dos seis pacientes transplantados que receberam órgãos infectados pelo HIV, no Rio de Janeiro. Conforme postagem que circula nas redes sociais, os atos normativos revogados estabeleciam diretrizes rigorosas de testagem sorológica de doadores e permitiam o monitoramento de falhas críticas no sistema.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. As portarias 3264/2022 e 3265/2022 não tratam das etapas de exames laboratoriais realizados em potenciais doadores de órgãos ou do controle de qualidade desses procedimentos. Ao Verifica, a presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), Luciana Haddad, explicou que os atos normativos não teriam impacto sobre o caso dos pacientes que receberam órgãos infectados pelo HIV. Revogadas em 2023, as portarias tratavam sobre o Programa de Qualidade no Processo de Doação e Transplantes (Qualidot), que foi substituído pelo Incremento Financeiro para Qualidade do Sistema Nacional de Transplantes. Ambas iniciativas têm objetivos semelhantes (entenda mais abaixo).

À reportagem, o Ministério da Saúde informou que o conteúdo das portarias não tem relação com a testagem de potenciais doadores. Segundo a pasta, interpretações que sugerem que revogações de portarias e alterações em normativas contribuíram para o incidente são infundadas e não correspondem à realidade.

Procurado, o infectologista Francisco Cardoso, autor da publicação verificada, defendeu que a revogação do programa Qualidot teria contribuído para o caso de infecção por HIV em transplantados. Segundo ele, as revogações das medidas não têm justificativas técnicas sustentadas e teriam contribuído diretamente para a “fragilização das responsabilidades compartilhadas entre União, Estados e Municípios e ampliaram as possibilidades de corrupção dentro do setor”.

Postagem publicada no Instagram engana ao afirmar que portarias publicadas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e revogadas na gestão de Lula poderiam evitar a contaminação por HIV em pacientes transplantados no Rio de Janeiro Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: publicado no Instagram no sábado, 12, o conteúdo verificado engana ao afirmar que a contaminação por HIV em pacientes transplantados no Rio de Janeiro poderia ter sido evitada caso as portarias 3264/2022 e 3265/2022 ainda estivessem em vigor. Conforme matérias publicadas pela imprensa (aqui, aqui e aqui), as primeiras investigações da Polícia Civil indicam que uma falha de controle operacional do laboratório PCS Lab Saleme, motivada para obter lucro, pode ter comprometido a qualidade dos testes de HIV, que liberaram para transplante órgãos infectados com o vírus.

Conforme explicou a presidente da ABTO, Luciana Haddad, nenhuma das portarias tratavam de etapas relacionadas a exames de doadores de órgãos ou ao controle de qualidade desse processo. “Essas portarias só tratavam de transplantes de órgãos e eram portarias para incremento financeiro dos programas de transplantes”, disse. “A portaria atual é muito semelhante à portaria anterior. Foram feitos só alguns ajustes, nenhuma delas impactaria de forma alguma nesse quesito”.

As portarias revogadas foram publicadas no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No ano passado, a gestão Lula revisou o Programa de Qualidade no Processo de Doação e Transplantes (Qualidot), que tinha como objetivo avaliar o desempenho dos hospitais integrantes do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) a partir de uma análise multicritério. Com base nessa avaliação, era estabelecido um incentivo financeiro para os serviços que demonstrassem melhores resultados.

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A revisão da gestão atual resultou na criação do Incremento Financeiro para Qualidade do Sistema Nacional de Transplantes, que foi instituído a partir da portaria nº 1.262. De acordo com o Ministério da Saúde, foram realizadas as seguintes alterações:

  • Mudança de nome do incremento, de Qualidot para Incremento Financeiro para Qualidade do Sistema Nacional de Transplantes;
  • Reforço na participação das Comissões Intergestores Bipartite, para fortalecer a gestão e auxiliar no monitoramento do repasse de incentivos financeiros públicos;
  • Reformulação na classificação dos serviços de transplantes, a fim de esclarecer melhor os parâmetros;
  • Reajuste dos valores de incrementos, ampliando os recursos destinados a cada nível de classificação em relação às portarias revogadas;
  • Definição de indicadores a serem monitorados pelas centrais estaduais de transplantes como contrapartida dos incrementos, como realização de vistorias técnicas e o acompanhamento da sobrevida dos pacientes.

Essas mudanças podem ser conferidas comparando os textos das portarias em questão (3264/2022, 3265/2022 e 1262/2023).

Mudanças no Qualidot

O médico Francisco Cardoso, autor da postagem analisada aqui, diz que o programa Qualidot, que foi substituído pela portaria de 2023, foi “desenvolvido com base em rigorosos requisitos técnicos, estabelecidos após uma análise de impacto regulatório, com o objetivo de melhorar a qualidade do processo de doação e transplante no Brasil”. Segundo ele, “um dos critérios principais incluía a exigência de comprovação de conformidade com o Programa Nacional de Segurança do Paciente, um fator essencial para garantir a segurança e eficiência em cada etapa desse processo”.

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Cardoso afirma ainda que o Qualidot “trouxe uma inovação significativa ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT) ao introduzir mecanismos que obrigavam o Minstério da Saúde a monitorar e avaliar os resultados dos transplantes, algo que anteriormente não era feito de maneira estruturada”. Porém, o ministério continua a avaliar as atividades de doação de órgãos e transplantes no Brasil. A pasta informou ao Verifica que o monitoramento é feito de forma contínua por meio do Sistema Informatizado de Gerenciamento (SIG/GNT), em parceria com as Centrais Estaduais de Transplantes. Segundo a pasta, o acompanhamento envolve as inscrições de potenciais receptores, notificações de doadores, a efetivação dos transplantes e o acompanhamento pós-procedimento.

“O SNT é regulamentado pela Lei nº 9.434/1997, pelo Decreto nº 9.175/2017 e pela portaria de consolidação GM/MS nº 04/2017, que estabelecem protocolos específicos para minimizar riscos e são atualizados regularmente para acompanhar os avanços médicos e científicos”, informou a pasta. Essas normas foram estabelecidas antes da implementação do Qualidot, em 2022.

Cardoso informou ao Verifica que fez a postagem em conjunto com Raphael Câmara, conselheiro federal de Medicina pelo Rio de Janeiro e ex-secretário de atenção primária do governo Bolsonaro. Câmara disse à reportagem que o programa de transplante é de responsabilidade federal, apesar de o laboratório que deu o falso positivo ter sido contratatado pelo governo do Estado do Rio. “Nossas portarias aumentavam a segurança e esse governo o que mais fez foi revogar nossas portarias e o resultado é esse. Nosso post foi após eu consultar os gestores de transplante da nossa época e os atuais e todos dizem que essa revogação afetou”, afirmou.

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De acordo com a presidente da ABTO, todos os processos de segurança e monitoramento dos transplantes sempre funcionaram com excelência, em todas as etapas dos transplantes. “Essa questão [dos pacientes que receberam órgãos infectados pelo HIV] está muito mais relacionada a falhas do laboratório em si, que estão sendo investigadas e identificadas”, comentou Luciana. “A mídia já tem, inclusive, trazido várias falhas internas do laboratório, e não falhas do controle geral do Sistema Nacional de Transplantes”.

O Ministério da Saúde pontuou ainda que o incidente envolvendo o sistema de transplantes do Rio de Janeiro trata-se de um evento isolado, que está sendo investigado pelas autoridades competentes. Segundo a pasta, as mudanças nas portarias foram implementadas para “aprimorar os processos em conformidade com inovações tecnológicas e melhores práticas, sem retrocesso dos padrões de segurança e controle”.

Pacientes transplantados testaram positivo para HIV

Seis pessoas que estavam na fila do transplante da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ) testaram positivo para HIV após receberem órgãos contaminados pelo vírus. O caso, que é inédito no País, foi revelado no dia 11 de outubro pela rádio Band News FM.

De acordo com as investigações, dois doadores fizeram exame de sangue no laboratório PCS Lab Saleme, localizado na Baixada Fluminense, e os resultados deram falso negativo. O laboratório é apontado como responsável pelo erro que, segundo a Polícia Civil, foi causado por falha de controle operacional na qualidade dos testes de HIV, com objetivo de obter lucro. Os quatro funcionários investigados pelo caso estão presos.

O laboratório PCS Lab Saleme foi contratado por licitação pela Fundação Saúde, sob responsabilidade da SES-RJ. No dia em que o caso foi revelado, o Ministério da Saúde solicitou a interdição cautelar da empresa. De acordo com informações publicadas pela CNN, o contrato firmado pela Fundação em dezembro de 2023, tinha duração de 12 meses, no valor de R$ R$ 11.479.459,07. “O acordo com a Patologia Clinica Doutor Saleme Ltda foi estabelecido para que a empresa realizasse análises clínicas e de anatomia patológica”.

Conforme matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo, o Ministério da Saúde vai rever a portaria que regulamenta o Sistema Nacional de Transplantes. A regulamentação atual não define critérios para escolha dos laboratórios que realizam testes relacionados aos transplantes de órgãos. As normativas vigentes, como a portaria nº 2.600/2009, apenas determinam que a soropositividade para HIV é critério de exclusão de doador de órgãos, tecidos, células ou partes do corpo humano.

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