Atualizado em 7 de dezembro para incluir nota da Associação Nacional dos Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag).
Propagandas enganosas divulgadas no Facebook usam indevidamente as imagens do portal de notícias G1, do médico Drauzio Varella e de outras celebridades para comercializar suplementos alimentares. Os anúncios encaminham usuários a sites falsos, que simulam canais oficiais de veículos de jornalismo e inventam depoimentos sobre as mercadorias anunciadas.
O Estadão Verifica identificou pelo menos 14 endereços com conteúdo fraudulento que apresenta soluções milagrosas para acelerar o emagrecimento, aprimorar o desempenho sexual, combater problemas de visão e eliminar dores nas articulações.
Os canais são ainda divulgados no Facebook por páginas falsas que utilizam imagens de emissoras como a GloboNews e até da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para atrair a atenção de usuários. Essas páginas também são utilizadas para patrocinar e ampliar o alcance dos conteúdos na rede social, por meio da ferramenta de anúncios da plataforma. No exemplo a seguir, uma página que imita um perfil do portal de notícias Terra publica anúncio enganoso de um suplemento com supostos benefícios para a visão.
Algumas das plataformas contêm propagandas e botões que encaminham o consumidor para sites "oficiais" de venda dos produtos. Pelo menos nove endereços identificados pelo Estadão Verifica comercializam mercadorias de uma farmácia de manipulação chamada Bio High. A empresa nega ter qualquer relação com os sites falsos e diz ser vítima de agentes que falsificam sua marca. Veja a resposta na íntegra.
Estratégia enganadora
A estratégia dos sites fraudulentos é usar a autoridade de canais de jornalismo profissional e de personalidades para atribuir credibilidade ao produto. Um dos anúncios adota a identidade visual do programa Fantástico, da TV Globo, e atribui ao médico Drauzio Varella depoimentos inventados para fazer a propaganda de um suplemento alimentar chamado Oculax.
Uma dica para identificar essas páginas falsas é observar o endereço eletrônico do site, disponível na barra de navegação. Alguns dos endereços fazem alusão a veículos de imprensa como G1, Estadão, R7, Olhar Digital e Tecmundo, mas os endereços não são compatíveis com os canais oficiais dessas empresas. A imagem abaixo mostra a captura de tela de dois exemplos de conteúdo falso. O domínio verdadeiro dos canais do Estadão tem o código estadao.com.br, já o portal de notícias G1 está hospedado em g1.globo.com.
Para o pesquisador do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) Lucas Cabral, verificar sempre o domínio dos sites, especialmente quando o consumidor pretende adquirir um produto de qualquer plataforma, é crucial para evitar cair em golpes virtuais.
"O domínio é o CPF da internet", alertou o especialista. "Só existe um estadao.com.br. É único. Se você entrou em um site e viu que o domínio é diferente, já desconfie."
Nas redes sociais
No Facebook, um dos sites enganosos é compartilhado por uma página que imita a marca da emissora de televisão GloboNews. A postagem promete um produto capaz de "restaurar a visão sem cirurgia" e mostra uma foto de Drauzio Varella, mas o médico jamais recomendou o produto. Em junho, o oncologista publicou um vídeo em seu canal no YouTube para esclarecer que não faz propaganda de medicamentos ou produtos de saúde.
Em 2019, o Fantástico também alertou espectadores sobre uma propaganda falsa que usava a imagem do programa e de Drauzio Varella para vender suplementos com supostos benefícios contra dores nas articulações. É importante destacar os canais oficiais de veículos de imprensa tradicionais e órgãos públicos de saúde são identificados no Facebook por um selo azul ao lado do nome da página, como no exemplo abaixo com a página oficial da Anvisa:
Drauzio Varella não é a única personalidade vítima desse tipo de falsificação. Outros sites analisados pelo Estadão Verifica imitam a editoria da página de ciência e tecnologia do portal de notícias G1 e citam depoimentos inventados de outras personalidades, como a atriz Cleo Pires e as cantoras Marilia Mendonça e Simone. Já o ator Tony Ramos e o jornalista aposentado Sérgio Chapelin são vítimas de anúncios falsos de um produto para aprimoramento de desempenho sexual.
Links estranhos e montagens
Outro detalhe é que os sites falsos são compartilhados na rede social por meio de links para aplicativos de questionário online. O Estadão Verifica identificou uma série de posts que usam a plataforma Try Interact para espalhar propagandas falsas no Facebook. Isso dificulta o monitoramento desse tipo de conteúdo fraudulento e impede que usuários identifiquem para qual site serão direcionados.
Essas plataformas ainda apelam para montagens grosseiras na tentativa de enganar consumidores. Um anúncio falso do suplemento Oculax apresenta um vídeo manipulado para sugerir que Drauzio Varella teria afirmado que o suplemento é seguro e foi aprovado pela Anvisa, mas isso não é verdade.
A montagem se aproveita de parte de um conteúdo publicado no canal oficial do médico no YouTube em que ele justamente denuncia o uso indevido de sua imagem por propagandas enganosas de suplementos. Outro trecho é retirado de uma gravação na qual Drauzio discorre sobre miopia. No vídeo original, ele não faz recomendação de medicamentos e até contradiz o site enganoso ao aconselhar o acompanhamento médico com oftalmologistas.
Além disso, os conteúdos enganosos promovem edições gráficas que inserem os produtos anunciados nas mãos de personalidades que nunca fizeram propaganda dos produtos. Uma montagem, por exemplo, coloca um pote de uma substância com supostos efeitos para emagrecimento nas mãos de Cleo Pires.
Também chama a atenção o fato de que as propagandas têm estruturas textuais muito semelhantes ou até idênticas. Os anúncios falsos do Oculax e de outro suplemento chamado Morflex têm frases com a mesma estrutura atribuídas a Varella e a um pesquisador chinês.
Em nota ao Estadão, a Anvisa afirmou que suplementos alimentares são dispensados de registro da agência, exceto aqueles que contenham probióticos ou enzimas em sua composição, o que não é o caso dos divulgados nessas propagandas. O órgão disponibiliza um sistema em que é possível consultar quais das substâncias que compõem esses produtos são aprovadas pela agência. De acordo com o comunicado, a regularização de suplementos alimentares deve ser feita pelo fabricante junto ao órgão local de Vigilância Sanitária.
Fabricante diz ser vítima de estelionatários
De 14 endereços identificados pelo Estadão Verifica, nove sites falsos fazem propaganda da farmácia Bio High, com sedes em Itajaí (SC) e Nazaré Paulista (SP). O site "saude-br.online" redireciona consumidores para uma segunda plataforma, que corresponde ao canal de vendas oficial do Oculax.
Já o endereço "estadao-famosos.site" encaminha usuários à plataforma de vendas do suplemento chamado Lipotril. Os nomes dos administradores dos sites enganosos são ocultados na busca pelo domínio na plataforma WhoIS, que fornece dados sobre os registros de endereços eletrônicos. O site do Lipotril, por outro lado, está registrado no nome da Bio High.
Por e-mail, Victor Gamarra, sócio da farmácia de manipulação Bio High, afirmou que os sites apontam inicialmente para canais de venda no Mercado Livre e Americanas, onde anúncios de produtos pirateados são hospedados. "Quando essa publicidade em redes sociais cessa, eles apenas trocam os links destas páginas, apontando para algumas de nossas páginas oficiais, a fim de nos colocar como responsáveis ou beneficiários desse tipo de matéria", diz o empresário.
Segundo Gamarra, a empresa já denunciou vários sites aos provedores que hospedam essas plataformas enganosas. Ele encaminhou à reportagem um boletim de ocorrência contra uma empresa que anunciava suplementos falsos no Mercado Livre. De acordo com o empresário, a Bio High não trabalha com revendedores e comercializa o produto original apenas em seus canais oficiais. Há, porém, diversos anúncios dos suplementos da companhia em plataformas de marketplace.
Questionado se a empresa oferece suporte aos clientes enganados, o sócio da Bio High afirmou que a empresa alerta consumidores em seus canais de suporte para que não comprem produtos em sites não oficiais. O site oficial da empresa, no entanto, não apresenta alertas sobre as propagandas enganosas do produto na internet, tampouco desmente esses conteúdos.
Em nota, o Mercado Livre afirmou que trabalha "de forma incansável para combater o mau uso da sua plataforma" e atua no combate a casos de pirataria, falsificação e fraude, a fim de garantir o cumprimento das suas políticas, auxiliar as autoridades na investigação de irregularidades e oferecer a melhor experiência aos usuários. "Assim que um anúncio irregular é identificado, além de excluí-lo, notificamos o vendedor", diz a empresa. "Além disso, a plataforma atua rapidamente diante de denúncias, que podem ser feitas por qualquer usuário, por meio do botão 'denunciar' presente em todos os anúncios, ou por empresas que integram o programa de proteção à propriedade intelectual da plataforma
Foi enganado? Quais são seus direitos?
Depoimentos no site Reclame Aqui, plataforma online que compila reclamações de consumidores, mostram que os sites enganosos fazem várias vítimas, que são instigadas pelos depoimentos inventados e a imitação de veículos de imprensa antes da compra.
Um relato de uma consumidora de Vila Velha (ES) contra a BioHigh denuncia um anúncio falso que imita o programa Fantástico e usa a imagem de Drauzio Varella. Outra cliente, de Volta Redonda (RJ), diz que foi instigada a comprar um suplemento para sua mãe de 85 anos, após acessar uma página falsa com características visuais do portal G1.
O professor de Direito Digital da FGV Luiz Augusto D'Urso afirma que o consumidor enganado deve denunciar as plataformas à polícia, ao Ministério Público ou ao Procon, para que apurem quem são os responsáveis por esses canais fraudulentos. Ele explica que os administradores das páginas cometem crimes de propaganda enganosa contra o consumidor.
Por outro lado, mesmo que os sites enganosos direcionem o usuário ao site oficial de venda dos suplementos alimentares, os fabricantes dos produtos não podem ser responsabilizados na esfera penal sem elementos robustos para comprovar a ligação entre a empresa e as plataformas enganosas.
"A empresa tem que auxiliar na investigação ao demonstrar sua inocência e que não tem participação nenhuma", disse D'Urso. "Quando houver vendas por meio desses sites, a empresa deve atender o consumidor com a maior atenção e devolver o valor, uma vez que o consumidor consiga provar que foi redirecionado ao canal oficial da empresa."
Empresas devem alertar consumidores sobre riscos de fraude
Henrique Rocha, advogado do escritório Peck, especializado em direito digital, aponta que as empresas devem ter uma vigilância ativa para coibir o mau uso de sua marca ou plataforma, assim como conduzir campanhas de conscientização dos consumidores contra produtos pirateados ou vendas fraudulentas. Ele afirma que também é importante denunciar os sites falsos aos provedores dos domínios.
Rocha disse que uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou uma loja online a indenizar por danos materiais uma vítima de um golpe na compra na internet. O desembargador Carlos Henrique Miguel Trevisan apontou que, embora a empresa não tenha tido participação na fraude, não havia comprovação de que ela adotasse mecanismos de segurança para evitar o engano.
Os dois especialistas apontam que o consumidor enganado pode acionar a Justiça para tentar obter reembolso ou reparação por danos morais e materiais caso entenda que a fabricante não tenha adotado medidas para evitar que seus clientes sejam ludibriados, mesmo sabendo da existência dos anúncios enganosos.
Já o Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) reforça que as empresas devem estabelecer padrões seguros de proteção à replicação de seu conteúdo e apresentar aos consumidores de forma clara quais são os parceiros autorizados a comercializar seus produtos.
O instituto recomenda a consumidores que pesquisem sobre a reputação da página junto a pessoas que tenham adquirido produtos naquele site e também na internet, em sites e fóruns de reclamações de consumidores, antes de compartilhar qualquer dado pessoal, se inscrever como interessado ou comprar qualquer produto ali anunciado.
Anvisa investiga irregularidades em propagandas oficiais de suplementos
Em nota, a Anvisa afirmou que um dossiê interno investiga possíveis irregularidades na publicidade de suplementos alimentares nos sites oficiais da Bio High. A agência pontua que, no caso do Oculax, a publicidade indica o produto para "proteção dos olhos, degeneração macular, regeneração de retina e restauração da visão perfeita". Segundo o órgão, essas alegações seriam irregulares porque prometem um benefício terapêutico não permitido para anúncios de alimentos. O site promete uma "visão perfeita" e "sem espera" aos clientes. A empresa inclusive compara a "Visão Oculax" com tratamentos tradicionais, sem especificar quais tratamentos são esses.
A Bio High contesta. Por e-mail, a Gamarra encaminhou à reportagem uma documentação da Anvisa sobre "alegações de propriedade funcional" para suplementos. O arquivo diz que afirmações sobre a existência de uma relação entre o consumo de um alimento e a saúde são permitidas conforme uma resolução da Anvisa de 1999.
Alegações de propriedade funcional
A resolução diz que o papel de uma substância presente no organismo, por exemplo, poderia ser descrito na propaganda, mas não são permitidas alegações de saúde que façam referência a cura ou prevenção de doenças.
Anfarmag
A BioHigh se define nas redes sociais como farmácia de manipulação, mas a entidade que representa o setor, a Associação Nacional dos Farmacêuticos Magistrais (Anfarmag), informou ao Estadão Verifica que a companhia não tem registro como tal.
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