Estamos vivendo uma epidemia de teorias da conspiração? Veja o que dizem estudos sobre o tema

Pesquisas apontam que adesão a pensamento conspiracionista ainda é minoritária, mas há evidências de danos graves na área de saúde e política

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Por Flavio Lobo

Nos últimos anos, muita gente tem dito e escrito — inclusive com base em pesquisas — que as redes sociais estão impulsionando uma inédita popularização de teorias da conspiração e do modo conspiracionista de enxergar o mundo. Além da ideia de que o conspiracionismo está se espalhando como nunca, a percepção de que isso é prejudicial para a sociedade é também frequente. Mas está mesmo provado que as redes sociais disseminam a crença em teorias da conspiração? E há evidências de que o conspiracionismo causa danos às pessoas e à sociedade?

As melhores respostas hoje disponíveis a essas perguntas não são simples sim ou não. De modo geral, as pesquisas que até agora tentaram medir a evolução quantitativa da adesão ao pensamento conspiracionista tendem a apontar que esse modo de enxergar o mundo prevalece para uma minoria de pessoas. Mas os estudos disponíveis têm limitações e ainda não há consenso sobre o tema. Quanto aos riscos e danos de teorias da conspiração, há pesquisas que indicam impacto grave em áreas como política e saúde. Veja abaixo o que sabemos sobre esse assunto.

O que é uma teoria da conspiração?

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Os primeiros registros da expressão “teoria da conspiração” com o sentido de distorção fantasiosa remontam ao século 19, mas o termo começou a ser popularizado na década de 1960. Nesse sentido, teorias da conspiração são produto de um modo conspiracionista de enxergar a realidade, marcado pela noção genérica de que a “verdade oficial” é uma mentira a serviço de interesses ocultos e inconfessáveis.

Em entrevista ao Estadão Verifica, a antropóloga Katerina Hatzikidi, doutora pela Universidade de Oxford, ressalta três características do conspiracionismo:

  • ocultismo: nada é o que parece
  • intencionalismo: nada é por acaso
  • dualismo ou maniqueísmo: “nós contra eles”

Nas versões mais abrangentes do conspiracionismo, o grande sistema de ocultação da verdade reúne — num único grande conluio — instituições científicas e educacionais, a imprensa, governos e vertentes políticas aparentemente adversárias ou mesmo inimigas entre si. Um conchavo tão poderoso que conseguiria reproduzir, ao longo de décadas ou séculos, “mentiras oficiais” de dimensão astrofísica, como a de que Terra é (quase) redonda e que o homem chegou à Lua em 1969. Outra característica desse modo de pensar é a construção de narrativas nas quais fatos e fenômenos sem relação direta entre si são vistos como evidências de um mesmo grande sistema conspiratório.

QAnon é uma teoria da conspiração popular nos Estados Unidos. Foto de uma manifestação na Virgínia em 2020. Foto: Anthony Crider

Motivações e formas do conspiracionismo

Estudiosos explicam o poder de atração do conspiracionismo pela sua capacidade de fornecer senso de organização, compreensão e controle subjetivo. A crença num simples e abrangente sistema explicativo pode aplacar a angústia de nos percebermos imersos em realidades complexas, em rápida transformação, incertas e imprevisíveis.

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Ao aderir a um grupo ou “bolha” conspiracionista, as pessoas também podem estar em busca de socialização e pertencimento. Considerar-se alguém capaz de enxergar a verdade ocultada por um sistema poderoso pode ser um modo de buscar reconhecimento, prestígio e autoestima.

Na área das ciências sociais, há pesquisadores que reconhecem nas teorias da conspiração um recurso usado por grupos desfavorecidos para formular visões de mundo que se contrapõem ao modelo dominante, abrindo espaço para concepções alternativas, críticas e denúncias legítimas.

Há também razões menos respeitáveis para se tornar um conspiracionista militante: ganhar likes, seguidores, visibilidade, dinheiro e poder. Para comunicadores como o americano Alex Jones, por exemplo, o conspiracionismo é um bem-sucedido modelo de negócios. A disseminação de conteúdo conspiratório também pode promover agendas políticas e ideológicas específicas com o objetivo de manipular a opinião pública para influenciar comportamentos, decisões e votos.

A volta do conspiracionismo extremista ao centro das disputas políticas

Katerina Hatzikidi conta que até meados do século 20, teorias da conspiração eram populares e aceitas em ambientes de prestígio — na sociedade, na academia e na política. Como exemplo, ela cita artigos de Winston Churchill, primeiro-ministro do Reino Unido que combateu o nazismo, que antes da Segunda Guerra Mundial expressava adesão a visões conspiracionistas, por vezes associadas a formas de racismo.

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O estudo do conspiracionismo começou a ganhar consistência e importância na década de 1930, período marcado pela ascensão de regimes totalitários que utilizavam teorias da conspiração para manipular a opinião pública e conquistar apoio e poder. O antissemitismo nazista, que disseminou teorias da conspiração contra judeus e impulsionou o Holocausto, é o exemplo histórico mais conhecido de conspiracionismo associado a formas de racismo.

No pós-guerra. a expressão “teoria da conspiração” passou a se popularizar com sentido pejorativo e o conspiracionismo foi perdendo espaço em ambientes de poder e saber. Segundo Katerina, um artigo do historiador Richard Hofstadter publicado em 1964 marcou o início de uma fase de “estigmatização e patologização” do conspiracionismo, que passou a ser associado a problemas psíquicos e limitações mentais. Durante décadas, os conspiracionismos que desafiavam fundamentos do pensamento dominante e “oficial” foram associados a desprestígio e impopularidade.

No século 21, uma nova onda de ascensão de movimentos de extrema-direita passou a recolocar teorias da conspiração no palco principal das disputas políticas. Uma tendência que o noticiário recente mostra estar bem viva em países como Hungria, Portugal, França e Estados Unidos, onde o conspiracionismo racista é frequentemente dirigido contra imigrantes. Recentemente, teorias da conspiração foram fator de mobilização e incentivo para movimentos e atos antidemocráticos, como a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, e os ataques às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.

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Entre os estudiosos do assunto, é consensual o entendimento de que a atual onda de conspiracionismo se caracteriza pela utilização de novas tecnologias e modos de comunicação e socialização – com destaque para as redes sociais – para disseminar suas teorias e modos de ver o mundo. Mas especialistas divergem em relação ao impacto e aos danos do conspiracionismo online.

Teorias da conspiração ajudaram a mobilizar manifestantes na invasão às sedes dos três poderes em Brasília, em 2023. Foto: Wilton Junior/Estadão

A pandemia de covid como um marco divisório

Até 2019, prevalecia um consenso acadêmico segundo o qual não havia evidências consistentes de que as teorias da conspiração, apesar da sua presença e visibilidade online, estivessem atraindo mais interessados e adeptos nem que seus impactos sociais estariam aumentando.

Uma revisão de pesquisas sobre teorias da conspiração realizadas até aquele ano avaliou não ser possível dizer com segurança se estavam ou não acontecendo aumentos de audiência e engajamento. Mesmo não cravando uma resposta, o artigo pendia para a posição de um dos mais reconhecidos especialistas no tema, Joseph Uscinski, cujas pesquisas indicavam que não havia provas de que as pessoas estavam se tornando mais propensas ao conspiracionismo desde a popularização da internet.

Nos últimos anos, pesquisas relacionadas à pandemia de covid-19 acirraram essa discussão e deram força a avaliações que identificam relevante impulsionamento e propagação online de teorias conspiratórias. Alguns desses estudos ressaltam a escala e importância desse fenômeno utilizando o termo “infodemia” (da expressão, em inglês, “infodemic”). A palavra qualifica a disseminação de desinformação como uma pandemia informacional, na qual as teorias da conspiração e as redes sociais são importantes fatores. Outras pesquisas, no entanto, continuam afirmando que as evidências disponíveis não corroboram a percepção de um avanço consistente do conspiracionismo.

Em um artigo de 2022, levando em conta o período da pandemia, Uscinski e colaboradores buscaram responder se a crença popular em teorias da conspiração está aumentando. Os autores defenderam o avanço das investigações e do monitoramento dessas teorias online – inclusive para entender a evolução da cultura política, tendências de polarização e radicalização e prover subsídios para a regulação da internet. Mas recomendam “cautela antes de soar alarmes sobre a ‘idade de ouro’ das teorias da conspiração e a degeneração da sociedade numa era de ‘pós-verdade’”.

Esse alerta de cuidado é endossado por estudos mais recentes, como o descrito em um artigo, publicado em 2024, intitulado “Pessoas mudam suas crenças em teorias da conspiração — mas não com frequência”, cujos autores afirmam não ter encontrado “evidências de um aumento geral na crença em teorias da conspiração”.

Conspiracionismo e letalidade durante a pandemia

Juntamente com a maior visibilidade de teorias da conspiração, a pandemia de covid-19 trouxe à tona indícios de que elas podem ser um fator de riscos e danos concretos e graves.

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Durante a pandemia, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) propagou desinformação online sobre a covid e a vacinação contra a doença. Dados eleitorais de 2018 e 2022 e estatísticas sobre o coronavírus cruzados por pesquisadores mostram correlação relevante entre o apoio das populações de Estados e municípios a Bolsonaro e números proporcionais de óbitos causados pela doença.

Estudos de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do instituto francês IRD mostram que municípios nos quais o ex-presidente foi vitorioso nas eleições de 2018 apresentam menores índices de imunização não apenas contra a covid-19, mas também contra outras doenças, como sarampo, caxumba, rubéola e poliomielite. Nos últimos anos, o Brasil caiu de uma posição exemplar entre os países de maior cobertura vacinal para o mais baixo patamar internacional, entre os dez países com menores taxas de vacinação. Entre 2015 e 2022, a taxa de cobertura caiu, no País, de 93,1% para 71,49%.

Em 2020, Bolsonaro promoveu o uso de cloroquina contra a covid-19. Remédio não tem eficácia contra a doença. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Há ou não uma ‘infodemia conspiracionista’ disseminada pelas redes sociais?

Até este momento, não há comprovação de aumentos significativos de adesão a teorias conspiratórias — sejam elas promovidos pelas redes sociais ou outros meios. Mas a complexidade do tema e desse tipo de pesquisa, e as limitações dos estudos disponíveis, em termos de populações e períodos investigados, não sustentam uma resposta segura. Como recomendam muitos estudos já publicados, novas e melhores pesquisas são necessárias para um conhecimento mais consistente do tema.

Sobre o impacto das teorias da conspiração na sociedade, há exemplos de danos nas áreas da saúde e da política. Diante de evidências como essas, a identificação de conspiracionismos perigosos, a compreensão de como eles se articulam e se propagam e a construção de formas eficazes de proteger as pessoas e a sociedade de seus efeitos mais nocivos mostram-se desafios importantes.

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