Um conteúdo negacionista, com 9,3 mil compartilhamentos no Facebook, questiona a segurança das vacinas contra a covid-19 para crianças. O autor do vídeo afirma que a vacinação causa consequências mais graves do que contrair a doença – ele cita a miocardite aguda, uma inflamação no tecido do coração. Na realidade, o risco de desenvolver miocardite é 20 vezes maior ao contrair o coronavírus do que ao se imunizar, esclarece uma nota conjunta da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), em 2021.
O Ministério da Saúde informou ao Estadão que, como qualquer medicamento ou imunizante, as vacinas contra o coronavírus podem causar eventos adversos. Mas, em sua maioria, não têm gravidade, como dores de cabeça, tosse, diarreia, rinite, náusea, entre outros. “Esses eventos (de miocardite) são muito raros e ocorrem, em média, um caso a cada 100 mil doses aplicadas, apresentando um risco significativamente inferior ao risco de complicações causadas pela infecção da covid-19”, informou o ministério.
De acordo com o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, a miocardite é um efeito raríssimo, que ocorre mais frequentemente em meninos. “Algo intrigante, porque é o primeiro efeito colateral de vacinas que se relaciona mais com um sexo do que outro, mas mesmo assim é muito raro”, disse.
Em relação aos desfechos, não há óbitos relacionados a essa miocardite, com recuperação total de quase todos os casos com o uso de anti-inflamatórios.
Renato Kfouri, vice-presidente da SBIm
O vídeo checado aqui foi divulgado por um médico nas redes sociais. Sem fornecer mais informações ou apresentar provas, ele alega que uma mãe o procurou para contar sobre a morte do filho por miocardite aguda após a vacinação da covid-19. O médico diz ter recomendado àquela mãe que não vacinasse o filho e afirma, equivocadamente, que os riscos de desenvolver a inflamação são maiores ao tomar a vacina do que ao contrair o coronavírus, que alega ser uma doença leve em crianças. O Estadão entrou em contato com o profissional por e-mail, mas não obteve resposta até a publicação desta checagem.
O infectologista pediátrico e membro efetivo do Departamento Científico de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria Robério Leite destaca que a covid-19 não deve ser considerada uma doença leve nas crianças. “Pode levar a pneumonias graves, com necessidade de ventilação mecânica em UTI, e determinar inflamação e disfunção cardíaca nos casos da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica”, explicou. “Ainda não temos a dimensão dos efeitos da chamada covid longa sobre o desenvolvimento infantil.”
Há um consenso entre as autoridades de saúde de que o processo de vacinação é seguro, além de ser monitorado em todo o mundo. “Todos os dados de monitoramento e relatos de eventos adversos recebidos até o momento mantêm a relação de benefício-risco da vacina favorável ao seu uso”, informou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Sendo assim, as vacinas permanecem como recurso dos mais confiáveis à disposição da Saúde Pública, tanto em nível nacional como mundial, para combater pandemias como a de covid-19 e, portanto, salvar vidas”.
Ainda segundo a Anvisa, quadros de saúde como trombose, infarto, miocardite e outros podem ser desencadeados por multifatores e não alteram a relação de benefício propiciada pelas vacinas. “A experiência da vacinação contra a covid-19 no Brasil e em todo o mundo mostra que as vacinas salvam as vidas das pessoas”, comunicou a agência. “Todos os dados do uso das vacinas contra a covid-19 no Brasil, disponíveis até o momento, apontam para benefícios superiores aos riscos. A ocorrência de eventos adversos graves se mantém rara para vacinas monovalentes e bivalentes”.
Pesquisa aponta aumento em hesitação de pais
Mesmo com as evidências dos benefícios da vacinação, um levantamento conduzido pelo Instituto Global de Saúde de Barcelona (ISGlobal) mostrou um aumento de 56,3% na hesitação dos brasileiros ao imunizar os seus filhos contra o coronavírus entre 2021 e 2022. Algo que reflete na porcentagem vacinal do País: apenas 39,5% das crianças estão completamente imunizadas e 56,83% receberam pelo menos uma dose no Brasil, conforme informações do Consórcio de Veículos da Imprensa, divulgadas pelo Estadão em janeiro de 2023.
Para o especialista Robério Leite, professor da faculdade de medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), a queda da cobertura vacinal do Plano Nacional de Imunizações (PNI) é preocupante de modo geral. Com baixa cobertura, a população perde a sua “proteção de rebanho”, que ocorre quando a maioria das pessoas está vacinada e fornece proteção indireta às que não estão, já que há menos circulação e proliferação de diversas doenças.
“Destaco os riscos do retorno da poliomielite (paralisia infantil) e descontrole do sarampo, coqueluche, difteria, febre amarela urbana, surtos de doença meningocócica, tétano neonatal e formas graves de tuberculose”, disse. “Como muitas dessas doenças foram controladas ao longo dos anos graças às vacinas, pode estar havendo uma falsa sensação de segurança. Perdeu-se muito da memória coletiva do impacto dessas doenças”, situa.
O Ministério da Saúde alerta sobre “a circulação de notícias inconsistentes que prejudicam as iniciativas para ampliar as coberturas vacinais no País, um desserviço para o irrefutável benefício das vacinas no controle e redução de casos graves da covid-19″. “Vacinas salvam vidas. A pasta orienta que a população busque informações nos canais oficiais do Ministério da Saúde para evitar desinformações relacionadas à vacinação”, comunicou.
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