Estudo citado por médico não conclui que vacinas de mRNA destroem microbioma intestinal

Publicação citada em postagem no Instagram apresenta hipótese não comprovada sobre potenciais impactos da proteína spike; ainda são necessários mais estudos sobre o tema; procurado, autor da postagem enganosa disse estar seguro que há alteração no intestino

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Foto do author Luciana Marschall
Foto do author Kethilyn Mieza
Por Luciana Marschall e Kethilyn Mieza

O que estão compartilhando: vídeo em que um médico afirma que um estudo mostrou que a proteína spike presente em vacinas contra a covid-19 destrói o microbioma do intestino. Segundo ele, isso precipitaria uma série de condições crônicas e terminais.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Um dos autores do estudo citado na postagem declarou ao Verifica que o trabalho não demonstrou que a proteína spike pode alterar a diversidade da microbiota. Na realidade, os pesquisadores propuseram um protocolo experimental para refutar ou comprovar essa hipótese de alteração.

Duas especialistas analisaram o artigo a pedido do Verifica e afirmaram o mesmo que o autor do estudo. Segundo elas, o texto apresenta uma hipótese sobre potenciais impactos da spike na microbiota intestinal e sugere a realização de estudos em células e em animais para comprová-la ou refutá-la.

A microbiota intestinal é um conjunto de microrganismos, como bactérias, fungos e vírus, que habitam o intestino humano e desempenham papéis essenciais no funcionamento do corpo. Já a proteína spike é uma estrutura existente no vírus causador da covid, responsável por ligar o vírus à célula humana. Os imunizantes de tecnologia RNA mensageiro, como o da Pfizer e o da Moderna, ensinam o corpo a produzir essa proteína para combater o coronavírus.

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Procurado pelo Verifica, o imunologista Roberto Zeballos, autor da alegação, disse estar seguro que a proteína spike – tanto da doença quanto a sintetizada a partir da vacina – afeta negativamente o microbioma intestinal. “Não é porque o estudo que eu citei (no post) fala que tem que estudar mais que o que eu estou falando não procede”, declarou.

O artigo não demonstra que a proteína spike presente em vacinas de RNA mensageiro destrói o microbioma intestinal. Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: No Instagram, Zeballos compartilhou um texto publicado por Sasha Latypova, que já foi desmentido por checagens de agências internacionais (aqui e aqui) por espalhar desinformação em relação às vacinas. No texto, Latypova comenta o estudo A proteína Spike derivada de vacinas de mRNA pode ter impacto negativo em bactérias benéficas no intestino?. A pesquisa foi publicada na revista MDPI em agosto de 2024 por autores do México, Reino Unido, Itália, Arábia Saudita, Egito e Estados Unidos.

Latypova afirma que o artigo propôs uma “hipótese muito sólida” sobre como os imunizantes destroem o microbioma intestinal, causando uma série de condições crônicas e terminais. Zeballos, por sua vez, declara ser um “estudo mostrando realmente alteração do microbioma pela spike da vacina”. Essas afirmações são enganosas.

O que diz o estudo?

Na verdade, a pesquisa afirma que estudos anteriores mostraram que o vírus da covid-19 infecta e destrói cepas bacterianas específicas presentes na microbiota intestinal. Com base nisso, os autores levantaram a hipótese de que a proteína spike presente em vacinas de RNA mensageiro poderia criar mudanças na composição e no funcionamento da microbiota ao entrar nas células intestinais após a vacinação.

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Os imunizantes contra a covid-19 que utilizam a tecnologia de RNA mensageiro – como os da Pfizer – ensinam as células do corpo humano a sintetizar a proteína spike, que é própria do coronavírus. Isso ocorre para que o sistema imune esteja preparado para combater o vírus caso ele entre em contato com o corpo. A proteína spike é eliminada do corpo após a vacinação.

Vacina da Pfizer foi desenvolvida com base na tecnologia de RNA mensageiro. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O que diz o autor do artigo?

O Verifica entrou em contato com um dos autores do estudo, Alberto Rubio-Casillas, pesquisador da Universidade de Guadalajara, no México. Segundo o cientista, dois trabalhos analisados por ele e por colegas (aqui e aqui) apontaram que pessoas infectadas com covid-19 e vacinados com imunizantes de RNA mensageiro tiveram uma redução nas bactérias Bifidobacterium e Faecalibacterium presentes no intestino. A avaliação foi feita a partir de amostras de fezes de 34 pessoas, antes e um mês após a imunização.

Rubio-Casillas explicou que eles concluíram que essa redução nas bactérias deve ser investigada a fundo. Segundo ele, existe “um crescente corpo de pesquisas” que apontam conexão entre a redução da Bifidobacterium e o câncer colorretal.

O pesquisador da Universidade de Guadalajara destacou que os estudos analisados por eles não relataram complicações clínicas significativas nos indivíduos vacinados no curto prazo (1 ano). Porém, ele e os colegas levantaram a hipótese de que a exposição contínua às vacinas poderia reduzir ainda mais os números de Bifidobacterium. Isso facilitaria o crescimento do câncer.

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Isso significa, necessariamente, que as vacinas podem induzir câncer de cólon? Conforme o autor, não. Ele explicou ao Verifica que as vacinas não se mostraram cancerígenas. Porém, existe a possibilidade de que a diminuição das bactérias em uma pessoa que já possui células cancerígenas em desevolvimento possa contribuir para o crescimento do câncer.

“Isso só pode ser investigado realizando estudos de longo prazo em modelos animais”, explicou. “Devido à urgência de obter uma vacina eficaz contra o SARS-CoV-2, não foi possível realizar esse tipo de estudo, mas isso não significa que eles não devem ser realizados. É nossa obrigação como cientistas questionar isso e outros tipos de reações adversas que as vacinas poderiam induzir a longo prazo”, concluiu.

Especialistas negam que o artigo comprove alteração da microbiota

A doutora em Biologia Celular e Estrutural Valquiria Aparecida Matheus, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirmou que o artigo não apresentou uma pesquisa conclusiva ou empírica.

Segundo ela, o estudo mostrou uma hipótese sobre os potenciais impactos da proteína spike derivada das vacinas de mRNA na microbiota intestinal. “Apenas sugere que essa proteína pode causar inflamação e, teoricamente, alterar o equilíbrio de bactérias benéficas no intestino, como Bifidobacterium e Faecalibacterium”, explicou.

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“O artigo inclusive propõe estudos experimentais in vitro (estudo em células) e in vivo (estudo em modelo animal) para investigar essa hipótese, indicando que mais pesquisas são necessárias para validar qualquer efeito direto da proteína spike das vacinas no microbioma”, disse.

Ela acrescentou que os pesquisadores não apontaram evidências de que a proteína spike das vacinas cause doenças crônicas ou terminais, nem incluíram experimentos nesse sentido. De acordo com Valquiria, seria preciso utilizar outra metodologia para avaliar o impacto na microbiota.

“O artigo oferece uma hipótese teórica fundamentada em observações de outros estudos”, indicou. “Ao revisar os artigos citados, percebi que eles comparam grupos de pessoas vacinadas e não vacinadas, mas, para confirmar que qualquer alteração na microbiota se deve exclusivamente à vacina, seria essencial avaliar o mesmo indivíduo antes e após a vacinação, já que o estilo de vida de cada pessoa impacta significativamente a microbiota”.

A doutora em Ciências em Gastroenterologia e Hepatologia Cristina Flores analisou a publicação de forma semelhante. Segundo ela, os autores do artigo têm desenvolvido pesquisas na área, mas a análise citada na postagem é uma revisão de dados de estudos prévios. A cientista confirma que os autores apenas levantam a hipótese de que a spike possa induzir inflamação.

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“É hipótese, ou seja, não tem absolutamente nada comprovado. E esse artigo não estuda isso, apenas sugere como deve ser estudado, se realmente a spike sintética poderia também produzir uma série de efeitos que nós temos chamado de síndrome pós-covid”, explicou. Flores é presidente da Organização Brasileira de Doença de Crohn e Colite, também conhecida como Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil (GEDIIB),

O que é a microbiota intestinal?

Valquiria explicou que a microbiota intestinal é uma comunidade de microrganismos que habita o intestino de humanos e de outros animais. Em equilíbrio, esses microrganismos desempenham um papel essencial no metabolismo e na imunidade. Quando ocorre um desequilíbrio, podem surgir disfunções metabólicas, como obesidade e diabetes tipo II, e disfunções imunológicas, como doenças autoimunes e doenças inflamatórias intestinais.

Mesmo fatores de estilo de vida, como o consumo de alimentos ultraprocessados e álcool, afetam negativamente esse equilíbrio. Eles comprometem a capacidade da microbiota de sustentar a saúde metabólica e imunológica.

Relação da microbiota com o pós-covid não é conhecida

Valquiria afirmou que a covid em si não afeta a microbiota de forma direta, porque o vírus não infecta diretamente as bactérias intestinais. Porém, o vírus infecta as células humanas e, por esse motivo, pode afetar a microbiota ao infectar células intestinais. Isso altera o ambiente do intestino, de forma que o equilíbrio da microbiota pode ser prejudicado.

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De acordo com ela, os efeitos desse desequilíbrio no organismo são: quebra da barreira epitelial intestinal (camada de proteção do intestino), inflamação local e sistêmica. “Embora possa agravar o quadro de covid-19, um paciente não vai a óbito diretamente por isso”, explicou. “Vale ressaltar que o uso indiscriminado de antibióticos representa um risco ainda mais significativo para o equilíbrio da microbiota no dia a dia”.

Cristina acrescentou que, no momento em que uma infecção viral ou bacteriana ocorre no organismo, há diminuição da presença das bactérias consideradas boas, principalmente Bifidobacterium e Faecalibacterium. Diante disso, ocorrem manifestações intestinais. A covid-19 em muitos pacientes causa diarreia e às vezes até lesões no intestino durante a infecção aguda. Porém, não há evidência de que essas alterações induzam um processo inflamatório.

“A verdade é que nós não sabemos através de qual mecanismo uma porcentagem dos pacientes desenvolve a síndrome pós-covid”, explicou.

Da mesma forma, explica, mesmo que a vacina impacte na microbiota, ainda não se sabe qual seria a durabilidade dessa alteração e qual o significado clínico disso. “Não sabemos como realmente isso impacta na vida da pessoa vacinada”, continuou Cristina. “Acho muito precipitado qualquer tipo de afirmação nesse sentido e acho um desserviço para a população ficarmos divulgando informações que não são as mais corretas”.

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O que diz Zeballos

Desde o início da pandemia de coronavírus, Zeballos foi desmentido pelo Estadão Verifica em pelo menos oito oportunidades. Ele publicou em redes sociais, por exemplo, a alegação falsa de que o nível de proteção conferido por uma infecção prévia de covid-19 é superior ao das vacinas.

Procurado pelo Verifica, Zeballos compartilhou estudos que apontam que a infecção por covid-19 pode causar anormalidades inflamatórias de microbioma e disse estar seguro que a proteína spike, incluindo a da vacina, afeta negativamente o microbioma intestinal.

Ele sustentou que, após consultar os estudos ligando a proteína spike à desorganização da microbiota, por intuição passou a tratar pacientes que reclamavam de covid longa, apresentando falta de foco, alteração de memória e fadiga, com lactobacillus, bífidos e outros medicamentos, eliminando os sintomas em até cinco semanas. Ele reconhece que o tratamento não é oficial “porque você não pode sair passando um tratamento se não tem evidência”, mas defende a “estratégia terapêutica” desenvolvida por ele por ter “resultados excelentes”. Por fim, o médico diz que prepara um artigo com cinco estudos de caso que pretende publicar ainda neste ano.

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