Pessoas que fazem campanha contra o uso de vacinas na pandemia andam alegando que elas são “experimentais”. Isso dá a falsa impressão de que quem toma vacina está sendo submetido a uma experiência ou está correndo riscos não informados pelas autoridades de saúde. Neste texto vamos explicar por que isso é enganoso.
Uma postagem no Instagram é exemplo dessa tendência de jogar com as palavras para disseminar medo de vacinas. Além de qualificar os imunizantes contra covid-19 atualmente em uso no Brasil como "experimentais", a postagem chega a dizer que a Anvisa teria aprovado registro do produto da Pfizer "sem que estudo de fases 1/2/3 tenha sido finalizado", o que é falso. Todas as vacinas aplicadas no País já apresentaram resultados de eficácia e segurança em testes clínicos de fase 3. Duas delas possuem registro definitivo (Pfizer e Astrazeneca) e outras duas receberam autorização para uso emergencial (Coronavac e Janssen).
Para argumentar que vacinas são "experimentais", a autora da postagem utiliza as datas de conclusão definitiva dos estudos sobre os imunizantes, registradas no site do governo americano ClinicalTrials.gov -- que podem chegar até 2023. No entanto, essas datas se referem ao término do prazo para acompanhamento dos voluntários, que pode durar até dois anos. Não é necessário aguardar todo esse tempo para obter os dados de segurança e eficácia, como explicaram especialistas ao Estadão Verifica.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nega que as vacinas registradas possam ser consideradas experimentais: "Está incorreta a afirmação". O órgão esclarece que o fato de os estudos ainda estarem em andamento não coloca em questionamento a segurança e eficácia destes produtos, dados que já são conhecidos. "São estudos necessários, por exemplo, para confirmar a eficácia e duração da imunização conhecida até o momento", afirma a Anvisa.
Para que seja testada em humanos, uma vacina precisa primeiro apresentar resultados positivos em estudos com animais. Tendo sido bem-sucedida, é colocada à prova em três fases de testes nos quais se atestam sua segurança e eficácia, processo sob regras de um conselho de ética em pesquisa e pela Anvisa. As duas primeiras etapas são conduzidas em um grupo reduzido de voluntários e visam principalmente obter dados de segurança e confirmação de eficácia. Sendo bem-sucedidas, o estudo segue para a terceira fase, na qual o imunizante é aplicado em milhares de pessoas. Com isso, é possível ter uma ideia melhor, por amostragem, de qual resultado esperar quando a vacina for aplicada na população.
A médica Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações, reforça que os dados dos estudos de fase 1, 2 e 3 para eficácia e segurança das vacinas em uso no Brasil já foram obtidos. Mas há braços do estudo que continuam, como a análise de grupos específicos por idade ou até por comorbidade.
Agora é preciso fazer o acompanhamento para entender questões como a duração da imunidade garantida pelo imunizante, explica Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas. "O acompanhamento continua em vários sentidos, até para ver a duração da imunidade (fornecida pela vacina). Mas a parte do estudo que verificou a eficácia e a segurança já foi finalizada porque se tinha um cálculo de amostragem que foi atingido."
A questão técnica quanto ao número mínimo de infectados necessário para se obter os dados de segurança e eficácia está demonstrada no caso da Coronavac. O site ClinicalTrials informa que "dados preliminares de eficácia podem ser obtidos ao se atingir 61 voluntários infectados" e "a primeira análise de eficácia exige ao menos 151 infectados". Isso ocorreu em 17 de dezembro de 2020.
Mesmo após concedido o registro definitivo, é preciso haver um acompanhamento do resultado da vacina na população geral. É a chamada fase 4, de farmacovigilância, em que se monitora os efeitos seguem o padrão esperado a partir dos testes. "O registro definitivo tem mais relação com a elaboração de um plano para esse acompanhamento", explica Levi.
A seguir você confere a situação de todos os imunizantes citados na postagem. Todos eles estão em uso no Brasil e já tiveram eficácia e segurança comprovadas em testes clínicos de fase 3.
Pfizer - BioNTech
A autora da postagem alega que a Pfizer está sendo "amplamente aplicada sem que sequer o estudo de fases 1/2/3 tenha sido finalizado", o que é falso. A vacina da Pfizer-BioNTech, BNT162b2, teve o resultado dos testes de fase 3 publicado na revista científica The New England Journal of Medicine em 10 de dezembro de 2020. De um total de 43.448 pessoas, 21.720 receberam o imunizante e 21.728 foram injetadas com uma substância sem qualquer efeito. O resultado pôde ser publicado depois que foram diagnosticados 170 casos de covid-19 nos participantes. Foram 162 no grupo placebo e 8 no grupo vacinado, o que significa eficácia de 95%.
Na mesma ocasião, observou-se que os efeitos adversos mais comuns eram dor leve no local da injeção, cansaço e dor de cabeça que desapareciam dentro de dois dias. Não houve mortes durante os ensaios clínicos.
Concluída esta etapa dos testes clínicos, os pesquisadores da farmacêutica agora se debruçam sobre outras questões. No site ClinicalTrials é informado que o acompanhamento será feito por dois anos para saber os benefícios na imunidade com uma ou duas doses extras de reforço. Está prevista também a aplicação de uma vacina adaptada para combater a variante sul-africana.
No Brasil, a vacina da Pfizer recebeu o registro definitivo da Anvisa em 23 de fevereiro de 2021. Ao dizer que a Pfizer não teria estudos de fase 1/2/3, a postagem afirma que a licença foi concedida "baseada tão somente em mera análise documental, papéis". Isso é enganoso, uma vez que o processo de concessão de registro envolve a revisão completa do processo de pesquisa, dados brutos e produção das vacinas, informa a Anvisa.
Para isso, o órgão refaz os cálculos apresentados pelos laboratórios para confirmar os resultados obtidos. Também realiza a vistoria das instalações onde o imunizante será produzido ou avalia a documentação de vistoria feita por outro órgão, como o FDA dos Estados Unidos, para fornecer o certificado de boas práticas.
A Pfizer foi procurada, mas não respondeu até a publicação.
Janssen - Johnson&Johnson
A Janssen-Johnson&Johnson também publicou os dados da fase 3 da sua vacina Ad26.COV2.S no The New England Journal of Medicine, em 21 de abril de 2021. Ao todo, 19.630 voluntários receberam o imunizante de dose única e 19.691 receberam o placebo. A eficácia encontrada foi de 66,9%: 116 contaminados no grupo vacinado contra 348 no grupo placebo.
Os efeitos adversos mais comuns durante os ensaios foram dor e inchaço no local da injeção, dor de cabeça, cansaço, náusea e febre. Em abril, a aplicação da vacina foi suspensa temporariamente nos Estados Unidos para averiguar a ocorrência de coágulos em seis pacientes que receberam o imunizante. Os órgãos reguladores concluíram se tratar de um efeito adverso tão raro que não deveria impedir a retomada da vacinação, já que os benefícios conhecidos do imunizante superam seus riscos conhecidos. Esse novo efeito adverso foi incluído na bula do imunizante.
Assim como os demais imunizantes citados, o estudo continua sendo acompanhado mesmo após a publicação dos dados de eficácia e segurança para se obter informações relevantes como duração da imunidade e monitoramento de efeitos adversos raros que só aparecem quando se amplia muito a base de pessoas vacinadas.
A vacina da Janssen recebeu autorização de uso emergencial da Anvisa em 31 de março de 2021. A Janssen informou que os dados primários já foram publicados e que a eficácia sobe para 85% quando se considera apenas casos graves, hospitalização e morte. Também informa que a proteção permanece por ao menos 8 meses, período que até o momento foi possível acompanhar.
Instituto Butantan - Sinovac
Os ensaios clínicos de fase 3 da Coronavac, conduzidos no Brasil pelo Instituto Butantan, contaram com 13.060 voluntários, todos médicos. A eficácia obtida foi de 50,38%. Esse número foi obtido a partir do número de casos sintomáticos que ocorreram dentre os voluntários. Foram 252 contaminados, sendo 167 no grupo placebo (que não recebeu vacina) e 85 nos que receberam o imunizante. O número de vacinados que desenvolveu a doença é 50,38% menor do que o de contaminados sem vacina.
Por meio de sua assessoria, o Instituto Butantan, desenvolvedor da vacina no Brasil, afirmou que "a partir do momento em que a vacina é aprovada, deixa o grupo de vacinas experimentais". E acrescentou: "Se o estudo alcançou um número específico para comprovar a eficácia e segurança, já foi possível fazer pedido de autorização de uso. Isso aconteceu com a Coronavac no final do ano passado."
Oxford - Astrazeneca
A vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a farmacêutica Astrazeneca teve resultado dos testes de fase 3 de eficácia e segurança da vacina ChAdOx1 nCoV-19 (AZD1222) publicado na revista científica The Lancet em 1º de fevereiro de 2021. A eficácia observada foi de 82,4% com um intervalo de 3 meses entre as duas doses.
"Os estudos clínicos comandados pela Universidade de Oxford e pela Astrazeneca já publicaram os primeiros resultados que permitiram a aprovação do uso emergencial em mais de 90 países", disse a Astrazeneca por e-mail. No Brasil, a vacina de Oxford recebeu o registro definitivo da Anvisa em 12 de março de 2021.
No site do ClinicalTrials, o estudo clínico tem data prevista para 14 de fevereiro de 2023. A farmacêutica informou que este prazo refere-se ao período de monitoramento e estudo da duração da proteção concedida pela vacina.
A autora da postagem
A postagem de maior alcance, com ao menos 3.390 reações, foi feita pela médica Maria Emilia Gadelha Serra. Ela é presidente da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia Médica. Esta prática não tem a validade científica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina e só recebeu o aval para ser aplicada em estudos clínicos com critérios definidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Já o Congresso Nacional debate dois projetos de lei, uma na Câmara e outro no Senado, que visam regulamentar a prática como "tratamento complementar".
Em postagens anteriores, Maria Emilia critica a eventual obrigatoriedade das vacinas e divulga, fora de contexto, dados de eventos adversos de imunizantes rgistrados no site da Anvisa. Este tipo de registro é feito por qualquer cidadão e não necessariamente tem relação causal com a vacina. Para afirmar que há relação, é preciso que os registros tenham passado por análise de técnicos. Esses dados são comumente utilizados fora de contexto para desencorajar a vacinação, como já mostrou o Estadão Verifica.
Procurada, a doutora reiterou os argumentos da postagem no Instagram. Ela utiliza a aprovação para uso emergencial como argumento para chamar as vacinas de "experimentais", o que não é correto, como foi explicado por especialistas independentes, pela Anvisa e pelos fabricantes dos imunizantes.
Ela também falou que as vacinas demoram, em média, de 10 a 14 anos para serem aprovadas. Como o projeto Comprova já mostrou, o tempo de pesquisa não é um dos fatores considerados nos protocolos de aprovação de vacinas tanto da Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (Anvisa) quanto da Food and Drug Administration (FDA), autoridade sanitária dos Estados Unidos.
Há muitos fatores que possibilitaram o desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 em tempo recorde. Os órgãos regulatórios mudaram o fluxo de trabalho burocrático de modo que a análise de diferentes documentos ocorresse de forma simultânea à condução dos testes clínicos - a chamada "análise contínua".
As pesquisas ganharam destaque e não tiveram dificuldade em encontrar voluntários. Vale destacar que a alta disseminação do novo coronavírus permitiu que se fosse atingido rapidamente o número necessário de voluntários infectados para obter os dados de eficácia, uma etapa que pode demorar mais em outras situações.
Com relação à vacina da Pfizer-BioNTech, é importante dizer que sua tecnologia já estava em desenvolvimento havia mais de dez anos. Ela já recebia investimentos do governo norte-americano e era a grande aposta para combater uma eventual pandemia.
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