É falso que governo tenha vendido terras atingidas por queimadas para a China

Legislação atual não permite confisco de imóveis rurais atingidos por incêndios, nem transferência de área confiscada para estrangeiros; atualmente, chineses são donos de menos de 1% do território nacional

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Atualização:

O que estão compartilhando: que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, “venderam o Brasil para a China”. O autor da postagem afirma que “as queimadas fazem parte de um plano de confisco de terras agrícolas”. O governo aplicaria multa aos proprietários, que não conseguiriam pagar as sanções e perderiam suas terras para os chineses.

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. A Constituição permite o confisco de terras apenas em casos de trabalho escravo e plantação de drogas. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse querer incluir na possibilidade de confisco terras de autores de queimadas -- mas isso ainda não se concretizou. De qualquer forma, pela legislação brasileira os imóveis confiscados seriam destinados à reforma agrária, e não a estrangeiros. Segundo especialistas consultados pelo Verifica, existem regras que limitam a compra do solo e o uso do subsolo brasileiro por estrangeiros. Hoje, chineses são donos de apenas 9.400 hectares de terras rurais no País. Isso corresponde a 0,0011% do território nacional.

Confisco de imóvel não ocorre por inadimplência de multas ambientais. De acordo com o INCRA, se a propriedade for confiscada, ela é destinado à reforma agrária e não pode ser transferiada para outros países Foto: Reprodução/Instagram

Saiba mais: Uma imagem postada no Instagram no dia 19 de setembro acumula 57,4 mil visualizações. Ela mostra as fotos de Lula e de Barroso junto com o seguinte texto: “De acordo com Ernesto Araújo, Lula e Barroso venderam o Brasil para a China. As queimadas fazem parte de um plano de confisco de terras agrícolas, através de multas impagáveis impostas pelo governo, e consequentemente a transferência dessas terras para o governo chinês”.

O que Ernesto Araújo realmente disse

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O Estadão Verifica procurou no Instagram de Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil do governo Bolsonaro, conteúdos sobre a relação entre os dois países. Em 14 de setembro, ele publicou o vídeo “O plano oculto da China, a estranha viagem de Barroso e o que não te contaram sobre a elite brasileira”.

A gravação tem cerca de 21 minutos. Em síntese, ele diz que o governo Lula tem estabelecido uma relação de “vassalagem” com a China. Ele também afirma que Barroso viajou à China em julho para ajudar o Judiciário nacional a implantar um “regime tirânico” no Brasil. Isso não é verdade. Na realidade, durante a missão oficial, Barroso discutiu, dentre outras questões, projetos para aumentar a eficiência e a transparência da Justiça. Um exemplo é o uso de inteligência artificial no sistema processual, sobretudo para a busca de precedentes.

Aos 7 minutos e 54 segundos do vídeo, Araújo comenta o que mudou na relação com a China entre os governos Bolsonaro e Lula. Nesse momento, ele afirma: “tão vendendo, o solo e o subsolo brasileiro pra China. Vendendo não, né? Tão, tipo, dando”. Mas isso também não é verdade (entenda melhor abaixo).

Em momento algum no vídeo Ernesto fala sobre confisco de terras agrícolas devido às queimadas. Araújo foi procurado, mas não retornou.

Imóveis rurais chineses ocupam menos de 1% do território nacional

Atualmente, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) tem registrado o total de 9.400 hectares de terras em nome de pessoas físicas e jurídicas chinesas. Isso corresponde a 0,0011% do território nacional.

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O professor de Direito Agrário e Ambiental Pedro Puttini Mendes, membro fundador da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA), explica que existem normas para a compra ou arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros. “Elas têm como objetivo proteger a soberania nacional e a segurança alimentar, bem como garantir o cumprimento da reforma agrária”, informou ele.

Os critérios para que estrangeiros adquiriram imóveis rurais têm como referência o Módulo de Exploração Indefinida (MEI). Ele é uma unidade de medida que varia entre 5 e 70 hectares (1 hectare equivale a 10.000 m²), de acordo com o município de localização do imóvel rural. Em nota enviada ao Verifica, o Incra apontou os seguintes cenários:

Estrangeiro proprietário de um imóvel com área inferior a três MEI: o uso da propriedade pode ser realizado seguindo os mesmos procedimentos aplicáveis a imóveis de cidadãos brasileiros.

Estrangeiro proprietário de mais de um imóvel com área inferior a três MEI: é necessário apresentação de autorização do Incra para a aquisição do imóvel, conforme o caso.

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Estrangeiro proprietário de imóvel com área superior a três MEI: é necessário apresentação de autorização do Incra para a aquisição do imóvel, conforme o caso.

Mendes destaca ainda que a soma das áreas rurais pertencentes a pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, não poderá ultrapassar a um quarto da superfície dos municípios onde se situem. “Pessoas da mesma nacionalidade não poderão ser proprietárias, em cada município, de mais de 40% (quarenta por cento) do limite fixado”, acrescentou o advogado.

Recursos minerais pertencem à União

Para saber se o subsolo nacional poderia ser vendido para a China ou qualquer outro país, como afirmou Ernesto Araújo, conversamos com o especialista em Direito Minerário Guilherme Doval, integrante da Comissão de Direito Minerário do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e sócio do Almeida Advogados.

Ele explica que o artigo 176 da Constituição Federal estabelece que os recursos minerais pertencem à União, e sua exploração é autorizada ou concedida a cidadãos brasileiros ou empresas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no País. “Portanto, qualquer mineradora que opere no Brasil será sempre uma empresa constituída e sediada no Brasil, ainda que possua capital estrangeiro (sócios ou acionistas)”, explicou.

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Doval destaca ainda que, quando a atividade de mineração ocorre em áreas situadas a até 150 km das fronteiras brasileiras, a legislação exige que a empresa tenha, no mínimo, 51% do capital pertencente a brasileiros, 2/3 de trabalhadores brasileiros e que a administração seja majoritariamente composta por brasileiros, com poderes predominantes.

De acordo com ele, as mineradoras com capital estrangeiro são minoria no mercado nacional e as chinesas não estão entre as principais investidoras na produção mineral brasileira. Doval cita como fonte o levantamento Capital Estrangeiro nos Setores de Energia e Minerais Estratégicos da Economia Brasileira, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2023.

“O estudo mostra que dentre as mineradoras com capital estrangeiro há predominância de recursos oriundos da Itália, Portugal, Espanha, Austrália, Chile e Holanda nas empresas produtoras de minerais não metálicos. Na produção de minerais metálicos, os principais investidores são Austrália, Canadá e Estados Unidos”, informou.

Confisco de terras no Brasil

Desde 2014, a Constituição Federal permite o confisco de imóveis em duas situações: quando no local é identificada a exploração de trabalho análogo ao de escravo ou o cultivo de drogas ilegais.

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Em resposta enviada ao Verifica, o Incra negou que áreas alvo de queimadas serão confiscadas. Explicaram ainda que imóveis alvo de confisco são destinados à reforma agrária e não podem ser transferidos para outros países.

A Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) disse ao Verifica que Lula não propôs que terras atingidas por queimadas sejam confiscadas e transferidas para países estrangeiros. A Secom informou que o presidente assinou um decreto que endurece as sanções a pessoas que provocarem incêndios ilegais no País.

No dia 11 de setembro, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, disse a jornalistas que analisava a possibilidade de incluir nas situações de confisco as terras de autores de incêndios criminosos. No entanto, ela não deu um prazo para a conclusão dessa análise, nem disse quando uma proposta neste sentido pode estar pronta.

Uma semana depois, em 19 de setembro, o ministro do STF Flávio Dino determinou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifeste sobre a possibilidade de estender a aplicação da desapropriação fundiária para os casos de desmatamento ilegal e incêndios criminosos. A PGR tem até 15 dias para responder.

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Sanções aos autores de incêndios ilegais

Uma das ações concretas para punir os autores de queimadas foi a assinatura do Decreto nº 12.189, no dia 20 de setembro, que cria novas multas e endurece penalidades já existentes contra os incêndios criminosos. O confisco do imóvel não está previsto entre as punições.

O especialista em Direito Agrário e Ambiental Pedro Puttini Mendes explica que quando ocorre um incêndio cabe à fiscalização ambiental elaborar um “auto de infração”, documento que atribui responsabilidade ao proprietário pelo ocorrido, estabelecendo multas.

No entanto, ele informa que existe um longo caminho de discussão entre defesas e recursos até que a multa seja aplicada, e explica que o descumprimento de norma ambiental não pode ser usado como motivo para desapropriação de terra.

“Somente após apuradas as causas, autoria, nexo de causalidade e dano é que se constitui uma dívida, a qual, não quitada, pode levar à penhora de quaisquer bens do devedor da multa, mas não uma desapropriação pelo ilícito ambiental em si”, informou ele.

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O Estadão Verifica mostrou que é enganoso que ministra tenha anunciado confisco de todas as terras atingidas por queimadas.

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