Vídeo de carro cheio de crianças foi gravado no Uzbequistão, e não na Ilha do Marajó

Conteúdo publicado no Instagram associa as imagens a uma denúncia nunca comprovada da senadora Damares Alves sobre tráfico de menores no Pará

PUBLICIDADE

Foto do author Luciana Marschall
Atualização:

O que estão compartilhando: vídeo de policiais retirando um número grande de crianças de dentro de um carro. A gravação é associada a outro vídeo, no qual a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) denuncia o tráfico sexual de crianças na Ilha do Marajó, no Pará.

PUBLICIDADE

O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O vídeo com as crianças foi gravado no Uzbequistão. A cena não mostra o resgate de vítimas de exploração sexual ou tráfico humano. A condutora do veículo era dona de uma escola infantil onde elas estudam. Ela foi flagrada por agentes de trânsito do país transportando de forma irregular alunos para as suas casas. As imagens foram divulgadas em um site do governo do Uzbequistão.

O vídeo de Damares Alves foi gravado em 2022. Na ocasião, ela concorria ao cargo de senadora. O Ministério Público Federal apurou as acusações, mas não encontrou provas. O órgão a acusa de fazer uma denúncia ‘sensacionalista’ com vistas à eleição daquele ano.

Vídeo de carro cheio de crianças foi gravado no Uzbequistão, e não na Ilha do Marajó. Foto: Reprodução

Saiba mais: O conteúdo postado no Instagram apresenta uma imagem com dois vídeos que rodam ao mesmo tempo. O primeiro traz a senadora Damares Alves denunciando que crianças da Ilha do Marajó, no Pará, são vítimas de tráfico sexual e têm os corpos mutilados para facilitar a ação dos abusadores. Já o segundo mostra dezenas de crianças dentro de um automóvel pequeno, espalhadas pelo porta malas, no banco da frente e no assento traseiro. Elas são retiradas por alguns homens e, do lado de fora, algumas aparentam estar assustadas e chorando. Da forma como são apresentados os vídeos, de forma associada, os usuários da rede social são levados a crer que a gravação das crianças é comprovação das denúncias da senadora.

Publicidade

O Estadão Verifica fez uma busca reversa (clique aqui para saber como fazer) para encontrar o contexto original do vídeo das crianças no automóvel. A busca levou a uma notícia de que uma motorista foi flagrada transportando as crianças na região de Bukhara, quinta maior cidade do Uzbequistão. O caso ocorreu no ano passado e não foi divulgada, na ocasião, qualquer informação associando o fato ao tráfico de pessoas.

Com a ajuda do tradutor Deepl, a reportagem identificou que um trecho do vídeo (assista clicando aqui) foi postado em 16 de setembro de 2023 na página da Inspecção de Segurança Rodoviária, do Departamento de Segurança Pública do Uzbequistão. Um texto compartilhado junto das imagens informa que a infração de uma motorista que transportava 25 crianças em um carro foi discutida no bairro onde ocorreu o flagrante com a participação da população local.

Uma versão maior do conteúdo também foi compartilhada nos canais do órgão no YouTube e no Telegram.

Sites de notícias do país (Gazeta, Darakchi e Daryo) informaram que os policiais de trânsito pararam um Chevrolet Spark, considerado um carro pequeno, pertencente à diretora de um jardim de infância privado que transportava 25 alunos.

Publicidade

A informação foi divulgada pela assessoria de imprensa da Inspecção de Segurança Rodoviária. Conforme o noticiário, a dona do carro alegou que levava as crianças para casa e que elas moravam nas proximidades. Ela também afirmou ter sido a primeira vez que cometeu a infração.

O caso teve repercussão internacional, sendo publicado também por veículos como The Sun, no Reino Unido, e O Globo, no Brasil.

Essas imagens já foram usadas em outras peças desinformativas. No ano passado, por exemplo, Uol Confere e Boatos.Org desmentiram que elas mostravam crianças sendo traficadas no próprio Uzbequistão.

Denúncias de Damares Alves

O vídeo no qual Damares faz denúncias sobre o tráfico sexual de crianças na Ilha de Marajó foi gravado em outubro de 2022 em uma igreja da Assembleia de Deus, em Goiânia (GO). Alguns dias depois, em entrevista à Rádio Bandeirantes, ela afirmou que as alegações foram feitas com base em conversas que ela teve com pessoas nas ruas da localidade e que teria visto imagens que mostram crianças com dentes arrancados, o que, disse, facilitaria a prática do sexo oral.

Publicidade

O MPF pede que Damares seja condenada a pagar R$ 2,5 milhões de indenização por denúncias infundadas. Foto: Dida Sampaio/Estadão

PUBLICIDADE

Ao ser questionada pelas provas de suas acusações, Damares citou três CPIs sobre o assunto que, segundo ela, atestariam a veracidade de suas falas. O Estadão consultou os relatórios das comissões e não encontrou os fatos citados.

A senadora também alegou que o Ministério Público do Pará já havia recebido os mesmos relatos pela população paraense. O órgão cobrou esclarecimentos ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, onde Damares havia sido ministra. O mesmo foi feito pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que requereu detalhamento de todos os casos de denúncias sobre tráfico de crianças e estupros de vulneráveis recebidos pela pasta entre 2016 e 2022.

Em setembro do ano passado, a Procuradoria da República no Pará concluiu que, mesmo após a mobilização de uma força-tarefa para investigar o caso e de uma grande movimentação de recursos públicos, nenhuma das acusações foi confirmada. O MPF entrou com uma ação civil pública na 5ª Vara Federal Cível em Belém e pede que Damares seja condenada a pagar R$ 2,5 milhões de indenização por denúncias infundadas. A mesma pena foi solicitada contra a União.

O órgão reconhece “as graves violações de direitos humanos e a ocorrência de crimes graves na região do Marajó, incluindo exploração sexual de crianças e adolescentes”, mas argumentou que, em 30 anos, nunca recebeu denúncias semelhantes às feitas pela ministra e afirmou que os registros compartilhados pelo ministério que foi encabeçado por Damares eram ‘desorganizados’ e ‘genéricos’.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.