Vídeo de Bolsonaro com indígenas não prova que ele cuidou de Yanomamis; visita foi rechaçada à época

Bolsonaristas usam trecho de vídeo de 2021 para buscar isentar ex-presidente de responsabilidade sobre crise humanitária; na época, viagem recebeu cartas de repúdio assinadas por lideranças do Alto Rio Negro

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Foto do author Clarissa Pacheco
Atualização:

Um vídeo que mostra parte da visita de Jair Bolsonaro (PL) a indígenas Yanomami no Amazonas, em 2021, está sendo compartilhado nas redes para argumentar que o ex-presidente “cuidou dos índios”. No entanto, a visita não teve apoio de entidades representativas dos indígenas – na realidade, foi amplamente repudiada por lideranças da região. No vídeo, Bolsonaro diz que respeita os Yanomamis e assegura que não haveria mineração na terra indígena se eles não quisessem. Mas não foi isso que ocorreu. O Estadão mostrou que coronéis da reserva do Exército nomeados pelo governo Bolsonaro para a diretoria do Ibama tiveram em mãos um plano de ação para retirar garimpeiros da terra Yanomami, mas nunca o executaram. O Ministério Público Federal em Roraima acusa o governo de omissão.

A crise humanitária e de saúde afeta Yanomamis brasileiros que vivem, sobretudo, em Roraima. Leitores do Estadão Verifica pediram a checagem do vídeo por WhatsApp, no número (11) 97683-7490.

 Foto: Reprodução

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As imagens registram um encontro ocorrido dentro do 5º Pelotão de Fronteira do Exército, que fica na comunidade Maturacá, dentro da Terra Indígena Yanomami (TIY). Foi a primeira vez que Bolsonaro visitou uma terra indígena – ele esteve no local para inaugurar a ponte de madeira Rodrigo e Cibele, em São Gabriel da Cachoeira (AM), onde fica a comunidade e a TIY. Mas a presença do então presidente foi repudiada por lideranças indígenas antes e depois da visita.

A viagem ganhou os noticiários pelo Brasil porque naquela ocasião, no auge da pandemia, Bolsonaro retirou a máscara para cumprimentar indígenas e defendeu o “kit covid”, cuja ineficácia já foi comprovada. Além disso, também foi notícia o fato de o deputado federal Elias Vaz (PSB-GO) ter divulgado na época os resultados de dois pedidos de informação ao governo federal: quanto tinha custado a viagem para inaugurar a ponte e quanto tinha sido pago pelo equipamento em si: a ponte custou R$ 255 mil, e o governo informou ter pago R$ 711 mil para fazer a inauguração, quase o triplo.

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A primeira reação contrária à visita de Bolsonaro à terra Yanomami surgiu em uma carta de repúdio assinada por 40 lideranças indígenas do povo Baniwa, da Terra Indígena do Alto Rio Negro, na mesma região onde fica o local visitado por Bolsonaro. No texto, republicado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), eles repudiaram tanto a presença do então presidente da República, quanto “sua pauta anti-indígena e anti-meio ambiente de abertura das terras indígenas à exploração mineral e outras atividades econômicas predatórias e destrutivas”. A carta, datada de 26 de maio de 2021, se encerra com uma manifestação de solidariedade aos povos Yanomami e Mundurucu, que já sofriam com a invasão de garimpeiros em suas terras.

Após a visita, foi a vez da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) repudiar o ato. A carta, de 28 de maio de 2021, dizia que Bolsonaro fez da visita um “palanque para fotos e vídeos de sua campanha eleitoral” e sequer convidou para o diálogo as lideranças indígenas reconhecidas. Para a FOIRN, o ex-presidente demonstrou desprezo pelo povo indígena e até inventou uma etnia inexistente – ele chamou os indígenas de “balaios”. “Ao invés de convidar as lideranças e instituições reconhecidas e comprometidas com o coletivo, privilegiou uma agenda com líderes autoproclamados, como ocorreu na Terra Indígena do Balaio, para mais uma vez produzir fake news e narrativas grotescas sobre nosso povo e nossa cultura”, diz a carta da FOIRN.

Pelo Facebook, a Hutukara Associação Yanomami também se manifestou após a visita, afirmando que Bolsonaro havia enganado os Yanomamis do Maturacá. A entidade questionou se o fato de receber presentes tornava o tornava amigo e declarou que os povos indígenas estavam sofrendo com os invasores do garimpo ilegal. A postagem se encerrava com as hashtags “forabolsonaro” e “foragenocidio”.

No dia seguinte à visita, o professor Yanomami Valdemar Lins postou em seu Instagram uma foto do momento em que uma liderança indígena se dirige a Bolsonaro para entregar um documento. Na legenda, afirmou que era uma carta de reivindicações e um pedido de respeito:

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Falas sobre mineração e garimpo

As primeiras palavras de Bolsonaro no vídeo são sobre respeito aos Yanomamis. Ele diz: “Senhores Yanomamis, nós respeitamos vocês. A vontade de vocês será feita. Vocês não querem mineração? Não terá mineração”. Na sequência, afirma que outros indígenas fora da Amazônia desejam minerar a terra serão respeitados. “Jamais aprovaríamos uma lei onde seria obrigado que a terra fosse explorada por quem quer que seja. Isso não acontecerá”, completa. A manifestação dá a entender que o assunto da mineração – legal ou ilegal – na Terra Indígena Yanomami estava encerrado, mas não foi o que aconteceu.

“A situação não é tão simples quanto o ex-presidente Bolsonaro faz parecer em sua fala neste vídeo. Apesar de afirmar que se eles, os Yanomami, ‘não querem a mineração, não terá mineração’, sabemos que na prática a realidade foi e é outra”, afirma Priscilla Oliveira, pesquisadora da ONG Survival Internacional, que trabalha em parceria com povos indígenas para protegê-los, assim como suas terras.

“A atuação do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami - que é a razão pela qual essa crise de saúde catastrófica que estamos vendo agora está acontecendo – já existia antes do governo Bolsonaro. Porém, é inegável que com ele a situação piorou drasticamente e o garimpo ilegal na terra Yanomami tomou outra proporção”, diz Priscilla.

Para a pesquisadora, o ex-presidente Bolsonaro não só foi omisso, como seu governo incentivou a expansão da atual crise humanitária. “Bolsonaro encorajou a abertura do território e incentivou a entrada de milhares de garimpeiros; desmantelou o serviço de saúde indígena; aplaudiu a expansão do garimpo; e ignorou os apelos desesperados de organizações indígenas, da Survival e de muitos outros quando a escala dessa crise ficou clara”, completa.

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A liderança indígena Dzoodzo Baniwa (Juvêncio Cardoso), que também assinou a carta de repúdio à visita de Bolsonaro em 2021, disse ao Estadão Verifica que a crise humanitária que afeta os Yanomami agora é consequência do garimpo ilegal, incentivado pelo governo anterior. “Ele [Bolsonaro], nas falas dele, sempre defende essa forma de desenvolvimento predatória, inclusive incentivando essa invasão territorial. No vídeo, ele disse que [a mineração] é ‘se os indígenas querem’. No entanto, o povo Yanomami não quer garimpo em sua terra indígena, assim como outros povos aqui no Alto Rio Negro. Se fosse obedecida a decisão do povo Yanomami de não querer garimpo em sua terra indígena, também não poderia ocorrer essa situação em que se encontra o povo Yanomami. Portanto, tem sim essa responsabilidade do governo Bolsonaro sobre a situação do povo Yanomami em Roraima”, diz.

Nesta quinta-feira, 26, o Estadão mostrou que coronéis da reserva do Exército nomeados pelo governo Bolsonaro para diretoria do Ibama tiveram em mãos um plano e ação para retirar os garimpeiros da terra Yanomami, mas nunca o executaram. O Estadão também mostrou que, segundo o procurador da República em Roraima Alisson Marugal, as operações do governo eram feitas para não funcionar – tinham ciclos de cinco a dez dias e informações vazadas aos garimpeiros.

O relatório Yanomami Sob Ataque, publicado pela Hutukara Associação Yanomami no ano passado mostra que, em 2021, a destruição provocada pelo garimpo na Terra Indígena Yanomami cresceu 46% com relação a 2020, mesmo que a posição dos Yanomami seja contrária à exploração. “O garimpo não apenas tem crescido em área, mas também tem se espalhado para novas regiões do território yanomami”, diz o relatório.

O presidente da FOIRN na época da visita, Marivelton Barroso, do povo Baré, disse que Bolsonaro ignorou os problemas do indígenas e “sequer fez menção ao combate ao garimpo ilegal, narcotráfico e outros assuntos graves que assolam as terras indígenas aqui na região da tríplice fronteira com a Venezuela e Colômbia”.

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Bolsonaro durante visita a reserva Yanomami. Foto: Marcos Correa/Handout via REUTERS

Projeto de lei citado não garante respeito à vontade dos indígenas

Sem entrar em detalhes, Bolsonaro faz referência durante a fala no vídeo a um projeto de lei e diz que quem vai explorar a mineração no local é a “etnia”: “A etnia que quiser explorar, explora. Quem não desejar, não será explorado”. Ele se referia, provavelmente, ao Projeto de Lei 191/2020, apresentado pelo Executivo, que viabilizava a exploração mineral em terras indígenas, que ainda tramita no Congresso.

Pela proposta, a exploração mineral em terras indígenas precisaria ser aprovada pelo Congresso Nacional, por meio de decreto legislativo, mediante consulta às comunidades indígenas afetadas. Diferentemente do que diz Bolsonaro, contudo, o projeto não diz que a “etnia” é quem vai explorar a mineração no local, e sim que era poderá ter participação nos resultados, se houver aproveitamento.

O capítulo VI do texto apresentado pelo Executivo diz que, na hipótese de aproveitamento de potenciais de energia hidráulica, a comunidade receberia 0,7% do valor da energia elétrica produzida; em caso de aproveitamento de lavra de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, a participação seria de 0,5% a 1% da produção, a critério da Agência Nacional do Petróleo (ANP); e na hipótese de lavra de outros recursos minerais, 50% do valor da compensação financeira.

Também não é verdade, de acordo com o projeto, que a exploração só seria feita no local se os indígenas concordarem. O texto enviado pelo Executivo ao Congresso diz, no parágrafo 1º do artigo 14, que “o Presidente da República considerará a manifestação das comunidades indígenas afetadas para a realização das atividades”, enquanto o parágrafo seguinte afirma que o pedido de autorização poderá ser encaminhado mesmo “com manifestação contrária das comunidades indígenas afetadas”.

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Diversas lideranças indígenas consideram equivocada a ideia difundida pelo governo passado de que a mineração é benéfica para as comunidades de povos originários. “Para nós Baniwa é um equívoco entender que a exploração mineral seja solução para o desenvolvimento dos povos indígenas. A instalação de empreendimentos minerários provocaria um fluxo migratório para o interior das terras indígenas, deslocaria os povos tradicionais de seus locais de origem e impactaria o meio ambiente”, diz um trecho da carta assinada por 40 lideranças Baniwa em 26 de maio de 2021.

Falas sobre saúde indígena

Também durante a visita a São Gabriel da Cachoeira em 2021, Bolsonaro prometeu intensificar a fiscalização sobre os recursos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI): “O dinheiro da saúde indígena, vamos fiscalizar de modo que ele seja aplicado realmente na saúde de vocês”, diz. Entretanto, o relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022, denuncia que havia desvio de medicamentos que deveriam ser destinados aos indígenas, mas teriam ido para garimpeiros.

Em novembro do ano passado, uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal (MPF) mirou suspeitas de desvios de verba para remédios na área Yanomami – a suspeita é de só 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma empresa contratada pelo Distrito Sanitário Indígena local (DSEI-Y) tenham sido entregues, como mostrou o Estadão.

A carta da FOIRN, que repudiou a visita de Bolsonaro exibida no vídeo aqui investigado, também criticou falas relacionadas à covid-19: “Em sua live semanal, gravada ontem no Pelotão de Fronteira de Matucará, o presidente comparou a medicina tradicional indígena com o kit Covid, tentando ridicularizar a CPI do Senado, que investiga às denúncias de prescrição de remédios sem eficácia, como a cloroquina. Mais uma vez, Bolsonaro demonstra apreço em confundir a opinião pública para se livrar de acusações graves em relação à condução da gestão da pandemia de Covid-19, que já matou [até aquele momento] mais de 450 mil brasileiros”.

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