Vídeo de momento sem chuva em Dois Lajeados não é prova de que não houve ação de ciclone no Sul

Autor mostra alto volume de água no Rio Carreiro, quando não chovia, e insinua que enchente foi provocada por acidente, e não por eventos meteorológicos; meteorologistas desbancam essa teoria

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Foto do author Clarissa Pacheco

O que estão compartilhando: que não chovia no Rio Carreiro, em Dois Lajeados (RS) e, portanto, não houve ação de um ciclone na região Sul do Brasil dos últimos dias. O post que viralizou no Facebook questiona se a cheia dos rios teria sido um acidente e, ao dizer que os culpados terão que ser punidos, insinua que a tragédia que já matou 48 pessoas foi fruto de uma ação criminosa. Nos comentários da publicação, pessoas falam em sabotagem e culpam o governo federal pelo que ocorreu.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. O vídeo usado no post circula nas redes pelo menos desde a noite do dia 4 de setembro e teria sido gravado às margens do Rio Carreiro, onde uma ponte cedeu por não suportar a força das águas. A cidade fica a 68 quilômetros de Lajeado, uma das mais atingidas por fortes chuvas e por enchentes que se abateram sobre o Vale do Rio Taquari no início do mês. Os fenômenos, até agora, mataram 48 pessoas – 47 no Rio Grande do Sul e uma em Santa Catarina.

De fato, não chovia no momento em que as imagens foram feitas em Dois Lajeados, mas não é plausível dizer que não choveu ou que não houve a formação de um ciclone no litoral sul do Brasil. De acordo com o meteorologista Marcelo Schneider, coordenador do Distrito de Meteorologia de Porto Alegre (RS) do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), um ciclone extratropical se formou sim, nos últimos dias, mas no oceano – onde é mais comum –, e não no continente. Neste caso, é mais comum que se observem ventos fortes. Além disso, a cheia do rio pode ter sido causada por chuva em outros pontos do corpo hídrico.

 Foto: Reprodução

Saiba mais: Conforme já mostrou o Estadão, o ciclone se formou no litoral sul do Brasil no dia 4, e começou a se afastar no dia 5 de setembro. As fortes chuvas foram provocadas por outros fenômenos meteorológicos, explica Schneider. “A chuva em Lajeado e arredores, entre os dias e 1º e 5 de setembro, foi causada por um amplo canal de ar quente e úmido, associado a um sistema de baixa pressão e posteriormente por uma frente fria semi-estacionária, que se move pouco (entenda os termos no glossário ao final da reportagem)”.

Diferente do que faz parecer o autor do vídeo viral, as chuvas não são necessariamente um sinal da existência de um ciclone, já que este costuma estar mais associado a ventos fortes do que a chuvas intensas, aponta o meteorologista: “Geralmente, no estágio final em alto-mar, o ciclone extratropical está ligado mais a ventos fortes do que a chuva. É comum, quando do deslocamento do ciclone extratropical para alto-mar, sua borda provocar chuvas isoladas e ventos fortes na faixa leste dos estados da região Sul”, afirma.

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Cidades ficaram devastadas após fenômenos registrados no início do mês. REUTERS/Diego Vara TPX IMAGES OF THE DAY Foto: DIEGO VARA

Também meteorologista do Inmet, mas na Bahia, Cláudia Valéria da Silva observa que a mesma região sul do País foi atingida por fenômenos diferentes, em sequência, o que contribuiu para a tragédia. “Houve uma sequência de sistemas: teve uma frente fria e, em seguida, um ciclone extratropical (em agosto). Depois, outra frente fria e mais um ciclone que, infelizmente, atingiram a mesma região. Foram dois sistemas meteorológicos diferentes se alternando”, observa.

Nos últimos dias, publicações nas redes sociais têm tentado associar as enchentes decorrentes do fenômeno à abertura de comportas em hidrelétricas construídas na região em governos petistas, o que o Estadão Verifica já mostrou ser falso.

As imagens e os relatos recentes da tragédia no Sul do Brasil foram amplamente publicados pela imprensa e também em redes sociais, de modo que não faz sentido afirmar, como diz o autor do vídeo viral, que não houve chuva no Sul. De acordo com dados do Inmet, o acumulado de precipitação de 1º a 5 de setembro ficou entre 200 e 300 mm.

O ápice foi no dia 4, quando estações de Passo Fundo, Cruz Alta e Serafina Corrêa – esta, a apenas 40 quilômetros de Dois Lajeados – registraram volume recorde de chuva. Cruz Alta teve o maior volume desde 1912 (160,8 mm) e Passo Fundo, o maior desde 1913 (164,4 mm). A estação de Serafina Corrêa registrou 143 mm em 24 horas, o maior volume desde 2016, quando a estação foi inaugurada.

Estes dados já são um indicativo de que os rios da região enfrentariam uma cheia extraordinária, como aponta uma nota técnica emitida no último dia 11 de setembro pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS). Segundo os pesquisadores, o Rio Taquari recebe água da chuva que ocorre em uma área que abrange 100 municípios do Rio Grande do Sul, incluindo locais distantes de Lajeado.

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Água da chuva e cheia dos rios

No vídeo investigado, as imagens mostram o Rio Carreiro com uma grande vazão de água, embora não chovesse no momento em que o vídeo foi gravado. Segundo especialistas, isso é perfeitamente comum porque a chuva pode ter ocorrido antes ou em outro ponto do rio – na cabeceira, por exemplo, fazendo as águas volumosas seguirem rio a baixo.

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“Não necessariamente precisa estar chovendo na cidade em que está o rio para que você veja uma cheia de grandes proporções“, explica o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna. “Pode ter chovido no curso do rio ou em momentos anteriores. Se chove muito na cabeceira do rio, vai provocar uma cheia na jusante, rio abaixo. Ou seja, não precisa chover em cima da cidade para formar uma enchente, independentemente de ter sido formada por um ciclone ou não”.

Este trecho da nota técnica do IPH-UFRGS exemplifica bem o que aconteceu no dia 5 de setembro deste ano: “A água da chuva que caiu em Serafina Correa passou pelo rio Taquari em Lajeado. A água que derrubou a ponte de ferro em Nova Roma do Sul também passou pelo rio Taquari em Lajeado, assim como a água que deixou em pânico os responsáveis pela Usina Castro Alves. Isso demonstra que era possível saber, com quase 24 horas de antecedência, que a cheia do rio Taquari em Lajeado seria de grande magnitude”.

Cláudia Valéria, do Inmet na Bahia, também ajuda a explicar o volume de água no Rio Carreiro, mesmo sem chuva no momento das imagens: “A quantidade de chuva tem uma grande variabilidade, mesmo com a atuação dos sistemas (ciclone e frente fria). Em alguns lugares chove mais, em outros chove menos. Às vezes, você tem um grande volume de água no Rio São Francisco, por exemplo, e não está chovendo aqui na Bahia, mas choveu na nascente, em Minas Gerais”.

Cheia foi provocada por acidente?

Desde o início das enchentes no Sul do Brasil, publicações nas redes sociais tentaram culpar hidrelétricas construídas na região e uma fantasiosa abertura de comportas pela tragédia. Para o engenheiro hidrólogo Arlan Scortegagna, as teses de acidente ou sabotagem não se confirmam porque só existe uma forma de a vazão dos rios atingir a proporção que atingiu no Sul nos últimos dias: por um evento atmosférico.

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“Eventos extremos são estatisticamente possíveis de acontecer, mas eles acontecem com uma frequência muito baixa: 100, 200, 1.000, 10.000 anos. E a sociedade vai se desenvolvendo nas margens dos rios sem ter uma noção. É por isso que você tem todo um planejamento de engenharia hidrológica”, observa Arlan Scortegagna.

Imóveis em área inundada de Lajeado, no Vale do Taquari, no dia 6 de setembro de 2023. REUTERS/Diego Vara Foto: DIEGO VARA

Segundo ele, os projetos das barragens e usinas são feitos pensando em suportar algo muito maior do que historicamente registrado, e mesmo que comportas fossem abertas – intencionalmente ou não – isso não seria capaz de reproduzir o que houve nos últimos dias. “Os projetos são planejados para suportar certo risco, as barragens são projetadas para uma magnitude infinitamente maior. Se você abrir as comportas, vai provocar uma cheia, mas nunca maior do que a própria usina estava prevista para suportar”, explica.

Os pesquisadores que assinaram a nota técnica do IPH-UFRGS sobre o fenômeno classificaram as cheias do início de setembro como “extremas” e apontaram que fatos similares já aconteceram no passado, como a enchente de 1941. Eles relatam que estudos recentes indicam um aumento nas vazões de cheias dos últimos anos no Sul do Brasil e projetam aumento na magnitude e na frequência das cheias no Rio Grande do Sul para o futuro, relacionadas às mudanças climáticas.

Glossário:

  • Ciclone – Os ciclones são descritos como áreas fechadas de baixa pressão atmosférica, comumente formados nos oceanos, onde os ventos giram no sentido horário no Hemisfério Sul, concentrando umidade no centro e formando nuvens carregadas. Eles podem ser classificados como ciclones tropicais, subtropicais ou extratropicais.
  • Ciclone extratropical – Segundo o Inmet, estes são os mais comuns no Brasil e ocorrem no ano inteiro, embora sejam mais comuns no inverno. Estes ciclones estão sempre associados a uma frente fria, que foi o que aconteceu na região Sul do Brasil no início de setembro.
  • Frente fria – Ocorre quando a extremidade de uma massa de ar fria avança deslocando o ar quente de seu caminho. Geralmente, a temperatura e a umidade diminuem durante a passagem de uma frente fria e ocorre chuva antes ou depois da passagem.
  • Frente semi-estacionária – É um tipo de frente que se move pouco desde sua última posição.
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