Não é verdade que policiais do estado da Bahia tenham devolvido armas para “traficantes” durante uma ocorrência na periferia de Salvador, no último domingo, 19. O armamento que aparece em vídeo que circula nas redes sociais é de mentira e estava sendo usado por atores durante a filmagem da websérie de ficção De Dentro da Favela, publicada no canal do Youtube O Pest. Em uma publicação postada nas redes sociais, o diretor do grupo, Luan Batista, lamentou que o vídeo dos bastidores da gravação, feito para agradecer o trabalho da polícia militar, tenha sido tirado de contexto.
As cenas que mostram atores da série entregando as réplicas de armas e agentes da polícia militar tirando foto do acervo foram postadas no perfil do O Pest no Kwai, no dia 19 de março, às 22h12. Na legenda, Luan Batista escreveu que estava agradecido pelo apoio e “trabalho excepcional” dos policiais.
Os agentes foram até o local após terem recebido “a informação de que um grupo de pessoas estava em posse de simulacro de armas de fogo na Rua Dr. Almeida, em Periperi [bairro da capital baiana]”, segundo a 18ª Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM) - unidade operacional distante 5 minutos de carro do local onde foi feita a ocorrência. Ao constatarem que se tratava de uma gravação, os agentes bateram fotos das armas de brinquedo e realizaram uma ronda para garantir a segurança e evitar “interpretações equivocadas”, informa a nota.
Interpretação equivocada nas redes sociais
Sem a legenda de agradecimento à Polícia Militar, o vídeo passou a circular em perfis das redes sociais de forma distorcida. Usuários do Facebook ao compartilhar o conteúdo escreveram: “O governo do PT na Bahia da ordem só pra tirar fotos das armas dos traficantes e em seguida devolver, porque o crime compensa!”. Outros levantaram suspeitas sobre a idoneidade da polícia: “a ordem aí é só pra tirar fotos das armas e depois devolve-las pros traficantes absurdo isso!”.
Não foi possível identificar quem foi o primeiro a tirar o vídeo de contexto, mas a versão distorcida viralizou nas redes sociais. Levantamento feito pelo Aos Fatos identificou que até a tarde de terça-feira, 21, a peça de desinformação já havia sido compartilhada mais de 3 mil vezes no Facebook e 1,5 mil vezes no Twitter. O conteúdo também acumulou dezenas de milhares de visualizações no TikTok e circulou no WhatsApp.
O uso de simulacro de armas em filmagens
Em uma postagem nas redes sociais, Luan Batista, diretor e líder do projeto O Pest, explicou que antes de realizar a gravação com as réplicas de armas ele próprio se comunicou com a Polícia Civil de Periperi e com o Comando Geral da Polícia Militar da Bahia. Fotos e vídeos mostram que uma equipe isolou vias e orientou moradores e motoristas sobre a realização da filmagem.
Nos primeiros segundos do vídeo alvo desta checagem é possível ouvir alguém dizendo para os policiais: “a gente está avisando, sinalizando, mas sempre tem um desavisado”.
Comunicar as forças de segurança pública e orientar a comunidade são cuidados adotados também pelo Portal da Realidade, um grupo de teatro que passou a produzir vídeos sobre o cotidiano das favelas de Salvador, com o propósito de dissuadir os jovens de entrar no mundo do crime. No mês passado, uma produção deles foi alvo de um boato. Cenas de um assalto filmadas no túnel Luís Eduardo Magalhães, na capital baiana, circularam nas redes sociais como se fossem um arrastão no Rio de Janeiro.
“Um conselho que eu dou para os atores é de só utilizar o armamento no momento em que as câmeras estão direcionadas a eles. Fora isso, o equipamento não fica na mão, para que justamente as pessoas que estão nos prédios, nas casas, não se assustem”, explica o líder do Portal da Realidade, Erico Silva.
Ele lembra que o grupo, hoje com mais de 10 anos de existência, já sofreu muito com fake news e explica que os cuidados tomados para evitar qualquer tipo de constrangimento com os agentes de segurança pública e com os moradores foram adquiridos com a experiência.
O sucesso de circulação de uma informação falsa
Se o boato do escândalo de policiais devolvendo armas a traficantes fosse verdade, ele estaria nos principais jornais do País. Por que, então, há quem acredite em um? Para o professor de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em Teoria do Conhecimento Alexandre Meyer Luz, a resposta está nos vínculos de confiança entre emissor e receptor.
“As pessoas não acreditam primariamente na informação que circula, elas acreditam nas pessoas que fazem a informação circular”, explica ele. “Entender fenômenos de fake news implica em entender os modos pelos quais nós nos engajamos na aquisição de informação, modos que passam pela confiança nos outros em boa parte do tempo, e não exatamente na avaliação cuidadosa feita em último grau das informações”, complementa ele.
Ciente da importância que os vínculos sociais têm para a transmissão de conhecimento, o professor recomenda que as pessoas façam circular em seus grupos de convivência informações de qualidade. “Uma fonte importante dessas informações são as agências de checagem. Elas colocam de um jeito rápido, à disposição das pessoas, bons caminhos que não só afirmam que a informação é falsa, mas que também mostram detalhadamente em que sentido ela é falsa e/ou inadequada”.
O mesmo conteúdo foi checado pelo Aos Fatos, pela Reuters, pela Lupa e Boatos.org.
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