Circula nas redes sociais um vídeo gravado pelo cientista norte-americano Robert Malone no qual ele faz alegações infundadas sobre o perfil de segurança das vacinas infantis contra a covid-19 que utilizam o RNA mensageiro do vírus. Grupos antivacina compartilham a gravação para desencorajar a imunização das crianças. Este conteúdo viralizou após a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar a aplicação da vacina da Pfizer, que utiliza a tecnologia citada, na faixa etária de 5 a 11 anos.
Malone diz que as crianças não vacinadas "não representam perigo para os pais ou avós", o que contradiz os dados epidemiológicos disponíveis até o momento. Também alega que as vacinas causariam "danos reprodutivos" e "danos permanentes", ignorando que os dados de segurança apontados em testes clínicos foram revisados e confirmados pelas principais agências sanitárias do mundo. A vacina da Pfizer já foi aplicada em milhões de crianças na faixa etária dos 5 aos 11 anos, nos Estados Unidos, e não houve nenhum alerta de segurança até o momento.
Leitores solicitaram a checagem deste conteúdo pelo WhatsApp do Estadão Verifica, 11 97683-7490. Confira a checagem das principais alegações do cientista.
Perfil de segurança
O que Malone disse: que as vacinas com a tecnologia RNA mensageiro "costumam causar danos permanentes" no cérebro, no sistema nervoso, no coração e vasos sanguíneos.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Os testes clínicos foram realizados com ao menos 3.100 crianças entre 5 e 11 anos. A taxa de eficácia em prevenir a doença foi de 90,7% e não foram identificados eventos adversos graves. Os dados foram avaliados e endossados pelas agências sanitárias de países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Suíça, além da União Europeia. Ao menos 31 países já vacinam crianças com o imunizante da Pfizer.
No Brasil, a análise da Anvisa também contou com a avaliação de entidades representativas da comunidade médica. Seus membros gravaram vídeos para explicar os principais pontos da decisão da agência.
O presidente do departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, Marco Aurélio Sáfadi, gravou um vídeo para dizer que a covid-19 já matou um número "não negligenciável" de crianças no País e considerou "inquestionável" que os benefícios conhecidos superam os riscos conhecidos. "Há outros países que já começaram a vacinação e não há relato de qualquer tipo de evento adverso grave que pudesse limitar o uso da vacina", disse.
Já Rosana Richtmann, médica infectologista da Sociedade Brasileira de Infectologia, lembrou que cerca de 5 milhões de doses já foram administradas nos EUA e o padrão de segurança está dentro do esperado. "Pelos dados apresentados em relação ao número de menores de 18 anos que perdemos para a covid-19 em nosso País - foram mais de 2.500 - eu vejo como excelente a vinda de uma vacina em termos de proteção para essas crianças", afirmou.
A Anvisa analisou os registros de eventos adversos suspeitos nos Estados Unidos. Eles representavam, até 8 de dezembro, 0,05% do total de doses administradas. Dentre eles, aproximadamente 52% eram eventos preveníveis, como produto administrado a paciente de idade inadequada, dose incorreta administrada e problema de preparação do produto. Para evitar erros assim, a Anvisa recomendou o uso de uma embalagem diferente, em cor laranja, para as doses pediátricas.
Infertilidade é boato
O que Malone disse: que vacinas com a tecnologia RNA mensageiro "podem causar dano reprodutivo".
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. Como mostrou o Projeto Comprova, essa alegação circulou anteriormente e foi desmentida pelas principais agências regulatórias do mundo. A FDA, dos Estados Unidos, negou que infertilidade seja um evento adverso causado por qualquer das vacinas aprovadas no país. Também lembra que, até onde se sabe, a infertilidade não é um resultado da infecção à covid-19. Logo, "a resposta imune ao vírus, seja causado por uma infecção natural ou pela vacina, não é uma causa de infertilidade".
No Brasil, um blog afirmava que o risco à fertilidade se baseava em estudos que teriam encontrado partes da vacina nos órgãos reprodutores dos voluntários. Essa alegação é enganosa porque, na verdade, o estudo havia sido feito em camundongos, não em humanos. Em segundo lugar, o blog não trazia a informação de que as partes do imunizante identificadas no estudo ficam no corpo por aproximadamente 48 horas antes de serem degradadas naturalmente pelo organismo.
Crianças transmitem covid-19
O que Malone disse: que crianças não vacinadas "não representam perigo" de contaminação para pais e avós.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O número de infecções em crianças é subestimado porque a maioria delas se infecta de forma assintomática, explica Cristina Bonorino, representante da Sociedade Brasileira de Imunologia que contribuiu para a análise da Anvisa. "A gente sabe que as crianças se infectam, têm altos títulos virais e provavelmente contribuem muito com a transmissão comunitária do vírus", disse.
Em um comunicado público sobre a aprovação do imunizante da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos, a Anvisa alertou que a vacinação desta faixa etária vai além da saúde de quem recebeu a vacina: "A vacinação coletiva diminui a transmissão do Sars-CoV-2 nesta faixa etária e, consequentemente, reduzirá a transmissão de crianças e adolescentes para adultos e idosos."
Testes adequados
O que Malone disse: que as vacinas não foram testadas de forma adequada e que seria preciso "pelo menos cinco anos de testes".
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O Projeto Comprova já mostrou que o tempo de estudo não é um fator considerado nos protocolos de avaliação de vacinas em órgãos como a Anvisa e o FDA.
Bonorino afirma que os dados de segurança são limitados porque os estudos são muito recentes e que não é possível dizer quais são "todos os eventos adversos que podem ocorrer". Mesmo assim, avalia que o padrão de segurança está dentro do esperado para se autorizar sua aplicação. "Os eventos adversos mostrados até agora não são diferentes dos observados nos adultos. No caso de pericardites, já há estudos dizendo que ocorreram em 0,001%, com maioria dos casos sendo não graves, mesmo que requeiram cuidados médicos."
Há muitos fatores que possibilitaram o desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 em tempo recorde. Os órgãos regulatórios mudaram o fluxo de trabalho burocrático de modo que a análise de diferentes documentos ocorresse de forma simultânea à condução dos testes clínicos - a chamada "análise contínua".
As pesquisas ganharam destaque e não tiveram dificuldade em encontrar voluntários. Vale destacar que a alta disseminação do novo coronavírus permitiu que se fosse atingido rapidamente o número necessário de voluntários infectados para obter os dados de eficácia, uma etapa que pode demorar mais em outras situações.
Com relação à vacina da Pfizer-BioNTech, é importante dizer que sua tecnologia já estava em desenvolvimento havia mais de dez anos. Ela já recebia investimentos do governo norte-americano e era a grande aposta para combater uma eventual pandemia.
O autor do vídeo
Robert Malone é um cientista que já soma mais de 500 mil seguidores no Twitter. Ele faz postagens críticas às vacinas contra a covid-19 por causa da agilidade com que elas foram aprovadas. Ele é uma celebridade entre mídias alternativas e extremistas que espalham teorias da conspiração e desinformação sobre os imunizantes. Malone foi procurado por e-mail, mas não respondeu até a publicação.
Ele realmente se apresenta como "inventor das vacinas de RNA mensageiro". Essa tecnologia insere o RNA viral nas células humanas para produzir uma parte específica do coronavírus, a proteína S. Ela é característica do causador da covid-19 e ensina as células de defesa do corpo a reconhecê-la. O RNA presente na vacina é cortado de modo que apenas a proteína S seja produzida e não o vírus inteiro. Isso impede uma infecção.
Como mostrou o site da revista The Atlantic, Malone foi um dos primeiros pesquisadores, em 1989, a sugerir o uso desse mecanismo para produzir vacinas. Ele também mostrou como seria possível levar o RNA mensageiro para dentro das células humanas colocando em uma pequena cápsula de gordura.
Apesar disso, esses seriam estudos primitivos sobre esta tecnologia. Na ciência, é comum que descobertas científicas representem apenas etapas que são continuadas por outros cientistas. As vacinas de RNA atuais só se tornaram possíveis com descobertas científicas feitas anos depois dos trabalhos de Malone, mostrou a revista científica Nature. Como disse à The Atlantic o pós-doutor Rein Verbeke, da universidade Ghent University, na Bélgica, "as vacinas de RNA mensageiro atuais são o resultado de muitos esforços colaborativos".
Este conteúdo também foi checado por Aos Fatos, Lupa e Fato ou Fake.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.