São brasileiros, e não venezuelanos, os indígenas Yanomamis que vêm sofrendo com casos de desnutrição, malária, infecção respiratória aguda e outros problemas de saúde por conta de uma grave crise sanitária na terra indígena onde vivem. A situação vinha sendo denunciada por lideranças indígenas e associações nos últimos anos e foi escancarada no último sábado, 21, após uma visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e das ministras da Saúde, Nísia Trindade, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara. Eles estiveram na Casa de Apoio à Saúde Indígena, onde muitos deles estão sendo atendidos em Boa Vista, capital de Roraima.
Um dia após o governo federal decretar emergência em saúde pública de importância nacional no território Yanomami, sites bolsonaristas passaram a propagar a informação falsa de que a situação gravíssima não afeta brasileiros, e sim Yanomamis venezuelanos. A tese mentirosa é de que a fome e a miséria que vêm provocando a morte dos indígenas é culpa do governo comunista de Nicolás Maduro, e que os indígenas da Venezuela buscam atendimento de saúde no Brasil, país vizinho. Embora a população Yanomami seja formada por indígenas que vivem ao norte da Floresta Amazônica, no Brasil e na Venezuela, a maior parte vive do lado de cá da fronteira, em Roraima e no Amazonas.
Em 2011, se estimava que viviam 11.341 Yanomamis no lado venezuelano; o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontava que eram 21.982 os vivendo no Brasil. Em 2019, um levantamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena apontava que eram 26.780 os Yanomamis no território brasileiro. Segundo dados do Ministério da Saúde, a população Yanomami em Roraima e no Amazonas, hoje, está em torno de 30,4 mil pessoas. São esses, que vivem do lado de cá da fronteira, que vêm sofrendo com a crise humanitária e de saúde.
As ações para enfrentar a crise que afeta os Yanomamis ocorrem em território brasileiro: de acordo com o Ministério da Saúde, uma equipe de base ficará em Boa Vista, trabalhando com o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, a Casa de Saúde Indígena (Casai), a Secretaria Estadual de Saúde de Roraima e a Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista. Outra equipe, de campo, vai se deslocar entre dois pontos na Terra Indígena Yanomami (TIY): os polos base de Surucucu e Xitei, ambos dentro do território de Roraima. No domingo, 22, a Força Aérea Brasileira (FAB) levou alimentos para “brasileiros na Terra Indígena Yanomami”.
O Ministério da Saúde disse que é falsa a afirmação de que os afetados pela crise são venezuelanos e reforçou que a região onde foram confirmados casos de crianças e idosos com desnutrição grave, malária, infecção respiratória aguda, entre outros agravos fica na maior reserva indígena do Brasil. “Como resposta à emergência, foram instalados o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE - Yanomami) e a Sala de Situação. Também foram enviadas quatro mil cestas básicas em caráter de urgência, além de insumos, medicamentos e mais 13 profissionais da Força Nacional do SUS que irão operar o Hospital de Campanha”, diz nota.
A Fundação Nacional do Índios (Funai) também disse que é falsa a informação de que os Yanomamis em grave estado de saúde não são brasileiros. “Diante da crise de desassistência sanitária e nutricional na região, o Governo Federal anunciou uma série de medidas de socorro, como envio de cestas básicas e reforço na atenção à saúde”, diz a nota.
Lideranças dizem que governo Bolsonaro ignorou mais de 50 ofícios
O autor do conteúdo viral afirma categoricamente, mesmo contra numerosos relatos de indígenas e de diversas entidades, que o governo de Jair Bolsonaro (PL) não teve qualquer relação com o quadro de emergência. A situação na Terra Indígena Yanomami tem sido alvo de denúncias há anos; existem várias evidências que indicam que o cenário se agravou recentemente por avanço do garimpo ilegal e inação do governo federal. Há vasta documentação, além de reportagens publicadas na imprensa nos últimos anos, que mostram como o garimpo ilegal agravou a crise.
A atividade ilegal na região contaminou afluentes; garimpeiros impediram o acesso de serviços de saúde às comunidades isoladas; até mesmo um posto de saúde foi queimado na região do Homoxi, em Roraima, em dezembro de 2022. As denúncias são da Hutukara Associação Yanomami, que representa cerca de 30 mil indígenas.
Em 2021, sob o governo Bolsonaro, a Funai proibiu uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de levar assistência aos Yanomami e produzir um estudo sobre o impacto do garimpo de ouro no local. Em novembro do ano passado, uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal (MPF) mirou suspeitas de desvios de verba para remédios na área Yanomami – a suspeita é de só 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma empresa contratada pelo Distrito Sanitário Indígena local (DSEI-Y) tenham sido entregues.
Mais de uma liderança indígena Yanomami afirma que oficiou o governo Bolsonaro pedindo socorro em relação à crise no território, mas foi ignorada. Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, disse que vem denunciando a situação há cinco anos e que o governo Bolsonaro ignorou 50 ofícios enviados.
Dário Kopenawa, vice presidente da Hutukara Associação Yanomami, descreveu um cenário dramático na comunidade que ocupa o maior território indígena do Brasil. “Somos abandonados. Já alertamos há muitos anos sobre essa crise humanitária e de saúde”, disse, em entrevista coletiva. Dário é filho do xamã e intelectual Davi Kopenawa, um dos principais líderes responsáveis pela demarcação da Terra Indígena Yanomami em 1992.
O impacto do garimpo ilegal
O garimpo ilegal avançou tanto nos últimos anos que, de acordo com levantamento do MapBiomas, pelo menos metade das áreas de garimpo no Brasil estavam fora da lei em 2020. Naquele mesmo ano, 40% das áreas de garimpo no Brasil estavam em unidades de conservação, e 9,3% ficavam em terras indígenas. Em fevereiro do ano passado, o governo Bolsonaro criou um programa de “apoio ao desenvolvimento da mineração artesanal” e pressionou o Congresso reiteradas vezes pela liberação da atividades em terras indígenas – pressão associada às críticas constantes ao trabalho de fiscalização ambiental.
Não precisou que o Congresso autorizasse a atividade em terras indígenas. Ilegalmente, o garimpo degradou 500 hectares de terra Yanomami entre janeiro e dezembro de 2021, segundo relatório publicado pela Hutukara Associação Yanomami. Aumento de 30% sobre o acumulado de 2020, que era de 2,4 mil hectares de área degradada. O relatório apontava que a atividade garimpeira no local assumia “características semelhantes à mineração de médio porte, demandando uma organização empresarial, de alto investimento financeiro e complexa organização logística, e alcançando elevado potencial de impacto sobre o meio ambiente e vidas humanas”.
Ameaças à saúde dos indígenas
Entre as consequências do avanço do garimpo e do avizinhamento com as comunidades indígenas estava o “agravamento do quadro sanitário das famílias”, como aponta o relatório de 2020, publicado em 2021. Segundo o documento, os quadros de malária quadruplicaram desde 2014 e serviram de porta de entrada para a covid-19. “Ao lado do agravamento no quadro epidemiológico, o garimpo está relacionado a altas taxas de contaminação por mercúrio de determinados indivíduos, causando danos de longo prazo e irreversíveis sobre a saúde dos mesmos”, diz outro trecho do relatório.
Em 3 de julho de 2020, representantes da Hutukara estiveram em Brasília (DF) e entregaram um ofício ao então vice-presidente Hamilton Murão que, segundo a associação, “garantiu que ia resolver o problema”, embora não tenha explicado como iria fazê-lo. Os principais pedidos eram pela expulsão dos invasores e pela adoção de medidas de fiscalização e controle que impedisse a atividade de garimpo na terra indígena. Os Yanomamis afirmaram que os garimpeiros eram os principais disseminadores de covid-19 no território.
Em 2021, a situação se agravou ainda mais. O relatório Yanomami Sob Ataque, da Hutukara, publicado em abril do ano passado, mostrou que a destruição do garimpo no local aumentou 46% em relação a 2020, atingindo 1.038 hectares e somando 3.272 hectares de área degradada.
Além do prejuízo socioambiental, o relatório fala sobre ameaças à vida dos indígenas. “É recorrente a queixa de lideranças sobre a intensa circulação de garimpeiros fortemente armados e as consequentes intimidações para que os indígenas coadunem com as condições impostas pelos invasores”, afirma o documento. “Em muitos relatos, os membros das comunidades disseram sofrer com a restrição a seu livre trânsito na Terra Indígena, deixando de usufruir de áreas utilizadas para a caça, pesca, roça, e da comunicação terrestre e aquática com as comunidades do mesmo conjunto multicomunitário”.
A questão de saúde voltou a ser destacada no documento. “A atividade garimpeira ilegal está associada à maior incidência de doenças infectocontagiosas entre as comunidades indígenas, em especial a malária”, explica o relatório. “A atividade garimpeira está diretamente associada à contaminação de mercúrio, com danos irreversíveis à saúde das pessoas das comunidades afetadas”. Há ainda relatos de aumento de doenças neurológicas entre os recém-nascidos e problemas no atendimento à saúde dos Yanomamis – seja pelo abandono dos postos de saúde, seja pelo desvio de medicamentos que deveriam ser destinados aos indígenas, mas teriam ido para garimpeiros.
Decreto de Lula deixou indígenas desassistidos?
Um dos argumentos usados no texto é o de que Lula, no final de seu segundo mandato, extinguiu as Administrações Executivas Regionais e os Postos Indígenas da Funai. Isso teria deixado as comunidades sem ter a quem recorrer. Isso não é verdade. De fato, o Decreto 7.056/2009 extinguiu as Administrações e os postos, mas o mesmo documento recriou as estruturas em outro formato, o de unidade regionais.
O decreto de 28 de dezembro de 2009 foi publicado um ano antes do fim do segundo mandato do Lula, e não no “apagar das luzes”, como diz o texto. O texto criou as unidades regionais de Manaus; Rio Negro; Alto Solimões; Purus; Madeira, Guajará-Mirim; Ji Paraná; Cacoal; Rio Branco; Vale do Juruá; Boa Vista; Macapá; Belém; Marabá; Tucumã; Tapajós; Imperatriz; Palmas; Colíder; Juína; Barra do Garças; Ribeirão Cascalheira; Cuiabá; Xingu; Governador Valadares; Sul da Bahia; Paulo Afonso; Fortaleza; Maceió; Dourados; Ponta-Porã; Campo Grande, Litoral Sul; Chapecó, Litoral Sudeste; e Passo Fundo.
Entenda a crise dos Yanomami
O decreto aprovava o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas da Funai. O texto foi revogado em 2012 e substituído por outro decreto com um novo Estatuto. Este, por sua vez, foi revogado em 2017, e o de 2017, revogado em 2022. O Estatuto em vigor é o Decreto 11.226, de 7 de outubro de 2022, que basicamente remanejou 1.084 cargos da Funai para o Ministério da Economia e, deste, enviou 1.070 para a Funai. Cargos da Funai, contudo, deixaram de existir e os servidores foram automaticamente exonerados ou dispensados de suas funções.
Em nota, a Funai disse que permanece funcionando com 39 coordenações regionais, 240 coordenações técnicas e 11 frentes de proteção etnoambiental em todo o território nacional.
A ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo Bolsonaro, senadora Damares Alves (Republicanos-DF), usou o Twitter para se defender, negou omissão e disse que a “luta pelos direitos e dignidade dos povos indígenas é o trabalho de uma vida”. O ex-presidente Jair Bolsonaro disse que de 2020 a 2022 foram feitas 20 ações de saúde para os Yanomamis e minimizou a crise, chamando-a de “farsa da esquerda”.
O autor do texto que viralizou em postagens nas redes sociais, Oswaldo Eustáquio, foi procurado pelo Estadão Verifica, mas não respondeu até a publicação desta checagem.
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