A conhecida fórmula pela qual o poeta satírico Juvenal definiu a política populista romana no começo do século 2º, panem et circenses, pode ser aplicada ao Brasil deste princípio de século 21. Não parece casual que a criação do Bolsa Família e a candidatura do País à Copa de 2014 e à Olimpíada de 2016 tenham sido processos paralelos. Não por coincidência, foi em setembro de 2006, dois meses depois de vir a público o mensalão, que o então presidente, Lula, prometia à Fifa construir 12 novos estádios para o país sediar a Copa. A complacência nacional diante de desmandos e corrupção não é nova, porém a política do "pão e circo" anestesia ainda mais a sociedade brasileira diante de tudo - inclusive da ética - que possa comprometer o progresso material presente e o divertimento futuro. Em vez da retórica presunçosa e fantasiosa - para a presidente, vamos realizar "a melhor Copa de todos os tempos"; para o ministro dos Esportes, "temos muita coisa para ensinar ao mundo" -, o governo deveria se preocupar em não gastar onde não lhe cabe e gastar onde é sua obrigação. Questionado sobre o alto custo da Copa para o País (mais de R$ 33 bilhões), o secretário-geral da Fifa argumentou que no Brasil futebol é religião e o evento deixará um legado de investimentos. Se há dinheiro público para aeroportos, rodovias, ferrovias, metrô e segurança, por que ele não foi aplicado antes? Se não existe, como aparecerá na atual crise mundial? O único legado garantido é o maior endividamento público. Que pode se justificar no caso de investimentos em infraestrutura que beneficie todo o povo de forma permanente. Contudo, muito dinheiro público está sendo colocado em obras que servem apenas a algumas dezenas de milhares de pessoas poucas horas por semana. Estima-se que cerca de R$ 6 bilhões serão investidos em nove estádios, quatro dos quais (Brasília, Cuiabá, Manaus, Natal), a um custo de quase R$ 2 bilhões, não serão autossustentáveis após a Copa. Enquanto, em valores convertidos e atualizados, a construção do Allianz Arena de Munique custou em 2006 cerca de R$ 630 milhões, a reforma do Maracanã já consumiu cerca de R$ 1 bilhão. Diferença que fica maior se levarmos em conta que os estádios têm capacidade assemelhada e a mão de obra alemã é mais cara que a brasileira. A desproporção cresce quando lembramos que o PIB per capita alemão era de R$ 65 mil em 2006, e o brasileiro de R$ 19 mil hoje. A explicação para tal descompasso está na origem do investimento, totalmente privado num caso, totalmente público no outro. Sendo estadual, o Maracanã, após a Copa, servirá a todos os clubes cariocas. Bem mais comprometedora é a arena paulista. Em nome da "exposição" internacional da cidade durante o evento, centenas de milhões de dinheiro público serão investidos no Itaquerão, dinheiro que deveria ser direcionado para o equipamento urbano. Senão, o que vai se expor ao mundo? Ruas esburacadas? Transporte coletivo deficiente? Trânsito caótico que os visitantes conhecerão ao desembarcar? Insegurança mesmo em áreas nobres? Dizem as notícias que a Prefeitura paulistana concederá R$ 420 milhões de isenção fiscal à obra. A quantas salas de aula ou leitos hospitalares isso corresponde? O governo do Estado entrará com R$ 70 milhões para ampliar o projeto inicial e permitir que a abertura da Copa ocorra naquele estádio. Por esse valor, cerca de 1.500 casas populares seriam construídas. O governo federal participará com R$ 65 milhões de isenção de taxas e impostos. Eles não ajudariam a modernizar o superado aeroporto paulista, ou a antiquada rodovia que liga São Paulo ao Rio? Mas a perspectiva da Copa leva todas as instâncias governamentais a privilegiar duas horas no interior de um estádio de futebol ao custo de R$ 555 milhões de dinheiro público, num total de R$ 820 milhões orçados para a construção. Quase 70% serão bancados pela sociedade, presente suficiente para que Andrés Sanchez afirme que em três anos seu clube será o mais rico do mundo. Graças ao dinheiro do contribuinteO mais espantoso é que aparentemente ninguém se espanta com essa situação. Essa quantia teria permitido ao Morumbi ou ao Parque Antártica, ambos com situação geográfica melhor, ser transformado no estádio da cidade para a Copa. O que, bem entendido, também não deveria acontecer por serem propriedades privadas. Mas o Corinthians, com seus 25 milhões de torcedores, representa uma massa eleitoral atraente. Não por acaso o lançamento oficial das obras do Itaquerão foi um comício. Se a Copa no Brasil for um sucesso, Ricardo Teixeira pode pretender a presidência da Fifa, e Andrés Sanchez, a presidência da CBF. Os atuais dirigentes da Fifa, por sua vez, sentem-se mais à vontade com o financiamento público dos estádios, muito elástico e pouco transparente em países como o nosso. Grandes empreiteiros, acostumados aos gabinetes governamentais, também preferem essa modalidade de financiamento. A Copa brasileira divertirá muita gente durante um mês, e alguns poucos durante muitos anos. Os vencedores da disputa de 2014 já são conhecidos, embora não calcem chuteiras nem joguem à vista de todos. HILÁRIO FRANCO JÚNIOR É PROFESSOR DO DEPTO. DE HISTÓRIA DA USP E AUTOR DE A DANÇA DOS DEUSES. FUTEBOL, SOCIEDADE, CULTURA (COMPANHIA DAS LETRAS)
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