Maior artilheira na história dos Jogos Olímpicos, com 14 gols entre Atenas-2004 e Rio-2016, Cristiane Rozeira é de uma geração que mudou o futebol feminino de patamar, colocando a seleção brasileira entre as principais do mundo. Passados 40 anos do fim da proibição da modalidade, a jogadora do São Paulo acredita que ainda há muito preconceito com o esporte. “Eu já estou acostumada. Passei uma vida inteira tomando xingamento e continuei jogando assim mesmo.”
A atacante aplaude as iniciativas dos clubes brasileiros em fomentar o futebol feminino, mas lamenta que só tenha ocorrido graças ao novo regulamento da Conmebol, aprovado em 2016, que atrelou a participação das equipes masculinas na Copa Libertadores à criação de times femininos. “Tenho cautela porque já ouvi ‘vamos apoiar o futebol feminino’ outras vezes.”
Aos 34 anos, Cristiane sabe que dificilmente terá chance de disputar a próxima Copa do Mundo, em 2023, e já projeta a futura carreira como técnica das categorias de base do futebol feminino. “A atleta aprende não só dentro de campo, mas também a parte comportamental fora dele”, comenta Cristiane.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Projeto do site Capitu em parceria com o Facebook e o International Center for Journalists, a websérie Deixa Ela discute diferentes aspectos do cotidiano das mulheres na sociedade brasileira. Em nove capítulos, trará entrevistas exclusivas com personalidades como as deputadas Joice Hasselmann e Tabata Amaral, a artista Daniela Mercury e a jogadora Cristiane, entre outras.
A Copa do Mundo na França teve muita atenção, com recordes de audiência para o futebol feminino aqui no Brasil. Como está a situação hoje? Foi uma onda passageira ou há progresso real?
As coisas estão acontecendo muito por conta da obrigatoriedade de os clubes terem equipes femininas e não por um processo natural. Mas alguns lugares estão realmente fazendo o processo andar. Muitas atletas querem vir para São Paulo porque temos um campeonato forte. A gente tem uma ex-atleta de seleção, a Aline Pellegrino, fazendo um papel importante na Federação Paulista de Futebol. Então, as coisas estão acontecendo. Em vários Estados, a dificuldade é grande. Tenho sempre cautela porque eu já ouvi outras vezes: ‘Vamos apoiar o futebol feminino, colocar na televisão, fazer divulgação’. E depois o movimento dá uma quebrada. Precisamos ver depois que acabarem os Jogos Olímpicos. Só aí a gente começa a perceber se realmente as pessoas vão continuar interessadas e se os clubes vão manter as estruturas.
No Campeonato Carioca, um jogo entre o Flamengo e o time amador Greminho terminou 56 a 0. Como avalia esse tipo de diferença?
Ela não é boa para o futebol feminino como um todo. Você não vai conseguir atrair um torcedor para ver uma partida que termina em 56 a 0. Também é ruim para a equipe que está começando. Entendo que elas tiveram essa oportunidade de jogar contra o Flamengo, mas nota-se a diferença estrutural entre os times.
A sua é uma geração intermediária entre as pioneiras, que vieram logo após a proibição, e a geração atual, que conta com mais estrutura. Como foi seu começo no futebol? Como foi a reação da sua família?
Naquela época eu não acompanhava muito o futebol feminino. Sei que havia grandes equipes. A Portuguesa e o Corinthians tinham muitas meninas de seleção como Sissi, Kátia, Pretinha e Roseli. Eram sensacionais. Eu só não assistia mesmo porque vivia na rua jogando bola. Minha mãe não aceitava no início porque era só eu de menina no meio dos moleques. Ela tentou me colocar no balé e eu saí correndo. Fiz teste para ginástica olímpica e passei, mas batia com o horário da escola e não deu certo. Minha mãe cedeu em relação ao futebol depois das várias vezes que eu cheguei chorando em casa por sofrer preconceito.
Quando você começou, sabia que o futebol feminino era proibido?
Não sabia de nada. Eu só queria jogar na rua. Conheci os clubes quando entrei para o Juventus, meu primeiro time. Ali entendi que havia um campeonato de futebol feminino. Até então, eu só jogava com os meninos. No Juventus eu comecei a saber um pouco mais da história das meninas e quais eram as atletas da seleção. Também descobri que o campeonato feminino era forte, equilibrado, mesmo naquela época sem visibilidade e sem a parte financeira.
Como é o ambiente na seleção brasileira? Essa mistura entre gerações, que passam desde uma pioneira como a Formiga, por você, que já é uma veterana, e as meninas mais novas que vêm de um cenário mais estruturado no futebol feminino?
O tempo inteiro a gente tenta passar para as meninas a importância de brigar por coisas não para você, mas para todas. Foi isso que eu aprendi com a geração anterior à minha, a da Fu (Formiga). A gente se preocupa com as mais novas porque elas têm mais facilidade do que a gente, em termos de material esportivo, de divulgação, de ter empresário querendo pedir grana alta quando a menina ainda nem se destacou. Também nos preocupamos com as redes sociais, para que elas não se percam e não se prejudiquem depois. Tentamos passar para elas o que é treinar em clube e em seleção, porque a diferença é muito grande. Falamos assim: ‘Tem oportunidade, nem que seja dez minutos, faça o máximo porque esses minutos podem mudar a sua vida’. Comigo foi assim. Aos 18 anos, não poderia imaginar que eu iria para uma Olimpíada (Atenas-2004). Muito menos jogar uma partida, virar titular e ser artilheira. As coisas mudam muito rápido.
Qual sua opinião sobre homens treinando times femininos?
Falta espaço para as mulheres trabalharem no futebol feminino. E ainda existe preconceito. Isso é meio óbvio. A gente vê o quanto elas estão estudando, se dedicando, se desenvolvendo. Então, falta realmente dar mais oportunidade para as técnicas. Como jogadora, não sinto tanta diferença. Vejo a capacidade de a pessoa trabalhar com você, do que ela vai passar na parte técnica, tática. Às vezes, sinto falta de ter mais mulheres. Elas têm mais sensibilidade e entendem o que funciona mais com a gente. Mas não tenho muito de escolher. Quero mesmo é uma pessoa capacitada.
Como você vê a chegada da Pia Sundhage na seleção brasileira? Você acha que uma técnica estrangeira pode fazer a diferença para causar uma evolução no futebol feminino brasileiro?
Ela está trazendo muito do que ela viveu: é campeã olímpica, mundial, tem um currículo inquestionável. Já demonstrou que gosta de uma equipe forte e veloz. Pia não vai precisar trabalhar tanto a técnica com a gente. Temos isso naturalmente, diferente das europeias. Então, ela vai pegar em pontos que faltam para nós. O bacana é que ela troca muito a equipe e dá oportunidade para todo mundo jogar e se sentir importante. Isso faltou em outras vezes, dar responsabilidade para quem está no banco e talvez tirar um pouco o peso das titulares. A seleção não tem só Cris, Marta e Formiga. Daqui a pouco a gente está saindo. Acho que a partir de agora ela não vai mais fazer tantas mudanças porque estamos muito perto da Olimpíada. Quando os Jogos passarem, Pia vai conseguir montar a seleção do jeito que ela realmente quer.
Como estará o futebol feminino daqui a 10, 15 anos?
Procuro sempre tentar ser otimista. Temos de pegar bons exemplos, como a Espanha, que de quatro anos para cá virou uma liga muito forte, onde muitas atletas querem jogar. Por que a Espanha, sem nenhuma medalha olímpica (o Brasil tem duas pratas, em Atenas-2004 e Pequim-2008) e sem contar com a melhor jogadora do mundo, está conseguindo estruturar sua liga, ter um campeonato forte e o Brasil não? Como levam 70 mil pessoas aos estádios para ver um jogo de futebol feminino e a gente não? Se não entendermos essas questões para conseguir evoluir, vamos parar no tempo.
Você ainda vê muito preconceito com o futebol feminino?
Melhorou, mas a gente entende que ainda há preconceito, principalmente nas redes sociais. As pessoas acham que é terra sem lei e falam besteira. Mas existem consequências e nem todos ficam impunes. Existe a falta de educação. Quando eu ainda estava lesionada, fui assistir na arquibancada ao jogo do São Paulo contra o Taubaté. Um torcedor meio bêbado me xingou. O que isso muda na vida dele? Porque não vai me atingir. Eu já estou acostumada. Passei uma vida inteira tomando xingamento e continuei jogando assim mesmo. Infelizmente, você passa exemplo de: 'Legal, meu pai falou isso para ela, então tá bom também posso'.
É nos estádios que essa cultura se perpetua?
Nos jogos de futebol feminino, há muitas crianças no estádio. Então, o que temos de dizer nesses espaços é: ‘Olha, meninas podem jogar e não é para você xingar. Isso é uma coisa muito do Brasil. Não passei por isso lá fora, não vivi situações como as que vi dentro do meu próprio País. Tive muito mais carinho e reconhecimento no exterior.
O que significa o futebol para você?
É o meu trabalho. É a minha vida, na verdade. Fiz isso a vida inteira e acredito que vou continuar ligada ao futebol quando parar de jogar. A vontade que eu tenho é de ver nosso futebol feminino com o status que ele merece, como acontece no exterior. Quero ver a modalidade realmente estruturada, não só em ano de Copa, Olimpíada e Pan-Americano. Falar sobre o futebol feminino mesmo após as competições.
Em que área do futebol pretende atuar quando parar de jogar?
Tenho vontade de trabalhar com as categorias de base. É o momento em que se desenvolve a jogadora, em que a atleta aprende tanto dentro de campo quanto fora dele, na parte comportamental.
Qual seu conselho para as meninas que querem começar no futebol?
Acima de tudo, que elas tenham muita força de vontade. Algumas não terão o apoio dos pais. Outras terão de começar jogando com meninos, pela falta de um time feminino na região onde moram. Mesmo com as dificuldades do começo - e acho que todas as meninas passam por isso -, elas não podem desistir. Devem lutar o máximo que puderem. / COLABORARAM BIANCA GOMES e JOÃO ABEL.