Pesquisadores da Uerj fazem 1º registro de uma população de toninhas na Baía da Ilha Grande, no sul do Rio, onde fica a Estação Ecológica Tamoios, área protegida que Bolsonaro quer extinguir
“Achou alguma coisa aí, Neto?”
“Rapaz, é um golfinho. Eu vi uma dorsal ali perto da pedra e depois outras duas dorsais mais para frente, mas a espécie não deu para ver.”
“Ali, ali. Caraca, cara, é toninha! Na proa. Aponta a câmera, Neto.”
“Segura, véio, segura nessa direção. É toninha!”
“Ó lá, subiu. Mas a onda está cobrindo. Está difícil de ver.”
“Mas tem uns quatro bichos, né?”
“Ali, ali, no través! Saindo para fora.”
“Mudaram o rumo, hein?”
“E tem filhote!”
“É toninha mesmo. Marronzinha, dorsal pequena.”
Era pouco antes das 10h de uma manhã de terça-feira ensolarada e quente de fim de novembro. Fazia quase uma hora que tínhamos zarpado de uma marina em Paraty e navegávamos na Baía de Ilha Grande, litoral sul do Rio. O mar estava calmo, a água, cristalina, mas havia um clima de apreensão no barco. Os olhos do veterinário Elitiene Batista Santos Neto e do biólogo Rafael de Carvalho estavam grudados no mar, tentando identificar uma nadadeira, um bico comprido, uma cabeça. Era o retorno a campo depois de um longo período parados por causa da pandemia.
De repente, a excitação tomou conta de todos. Teriam, enfim, encontrado o que procuravam há tanto tempo? As primeiras impressões vieram junto com dúvida. Seria mesmo? Jornalistas a bordo nem sequer enxergavam o que aqueles olhos treinados tinham visto e identificado como cabeças, nadadeiras dorsais. As aparições eram tão rápidas e discretas que poderiam ser facilmente confundidas com a ondulação do mar. Mas logo veio a confirmação.
Naquele dia 24 de novembro, pela primeira vez para a ciência, um grupo de pesquisadores avistava de modo consistente – com registros fotográficos e observação por mais de uma hora – uma população de toninhas na região de Paraty.
Não à toa, há quem as chame de golfinho invisível e misterioso. A pequena espécie é considerada criticamente ameaçada de extinção pelo Ministério do Meio Ambiente e também bastante difícil de ser observada. Grupos desse cetáceo são conhecidos um pouco mais ao sul, em Ubatuba (SP), e também mais ao norte do Rio, mas não havia comprovação de que habitavam também as águas de Paraty. Estima-se 20 mil toninhas no País.
Tímidas e assustadas, fogem do barulho do motor e não são afeitas a estripulias ao lado de embarcações – como fazem seus primos golfinhos mais conhecidos. Um deles, o boto-cinza (Sotalia guianensis), vive na região e chama mais a atenção – alguns pescadores chegaram a imaginar que toninhas seriam apenas filhotes do boto.
Mesmo pesquisadores especializados na espécie (Pontoporia blainvillei) no Brasil relatam ter passado anos estudando o bicho só com corpos encontrados em praias antes de conseguirem ver um vivo nadando – na maior parte das vezes em sobrevoos. De perto, como aconteceu naquela terça, é realmente algo raro. A reportagem do Estadão presenciou o momento com exclusividade.
O encontro, resultado de longa investigação e uma pitada de sorte, ocorreu em uma área marcada por polêmicas. A baía onde as toninhas foram avistadas tem uma pequena parte da sua área protegida pela Estação Ecológica (Esec) de Tamoios, que o presidente Jair Bolsonaro tem planos de extinguir para criar o que ele chama de “Cancún brasileira”, referência à cidade mexicana que é um dos principais polos turísticos do Caribe.
Foi ali que Bolsonaro foi multado em R$ 10 mil pelo Ibama em 2012, por pescar ilegalmente. Do tipo mais restritivo que existe, a unidade de conservação federal não permite permanência nem pesca e autoriza a realização de pesquisas científicas importantes, como a das toninhas. Sua criação, porém, não foi motivada especificamente para conservação. Ela foi estabelecida em 1990, para atender dispositivo legal que determina que usinas nucleares estejam em áreas delimitadas como estações ecológicas.
Ali ao lado de onde avistávamos toninhas ficam as usinas de Angra 1 e 2. As ilhas, ilhotas, lajes, rochedo que ocorrem na Baía de Ilha Grande, assim como o entorno marinho, no raio de um quilômetro, são protegidos. Ao todo a Esec representa pouco mais de 5% da área da Baía, mas há planos para que toda a proteção seja suspensa.
“É uma porção de toninhas que precisa ser protegida. Elas precisam da Esec e a Esec precisa delas”
Unidades de conservação podem ser criadas com decretos presidenciais, mas, para serem modificadas ou extintas, é necessário passar pelo Congresso. No fim de 2019, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, apresentou projeto de lei para criar na região uma Área Especial de Interesse Turístico chamada Costa Verde, que revoga o decreto de criação da Esec.
O projeto entrou em tramitação este ano e estava sendo analisado na Comissão de Meio Ambiente, mas foi paralisado com a pandemia. Na última movimentação, havia sido requisitada audiência pública na comissão. Paralelamente, o prefeito de Angra dos Reis, Fernando Jordão (MDB), cidade margeada pela Esec, entregou em julho deste ano outra proposta para alterar parâmetros da unidade de conservação, a fim de permitir a construção de píeres em hotéis e assim, segundo ele, favorecer o turismo.
A descoberta de que uma população de espécie tão ameaçada vive na Baía da Ilha Grande lança novo alerta sobre esses projetos. “A Esec Tamoios teve um papel fundamental no achado e na manutenção dessa população. Percebemos que elas estão usando a área costeira, onde é protegido e não pode ter pesca. Ter uma unidade de conservação de cunho restritivo ali foi fundamental para proteger a espécie até agora e para que pudéssemos finalmente encontrá-las”, afirmou o oceanógrafo José Lailson Brito Junior.
Coordenador do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e responsável pelas pesquisas, que fazem parte do Projeto Conservação das Toninhas, Lailson não estava no barco no dia 24, mas dois dias depois ele foi a uma praia próxima, desta vez com drone, e fez uma nova observação das toninhas na mesma área onde tínhamos feito o avistamento (confira o vídeo abaixo).
A principal ameaça às toninhas é a pesca com rede - elas não são o alvo, mas são capturadas de forma acidental. De rostro (bico) comprido e com muitos dentinhos, esses cetáceos acabam se enroscando nas redes de emalhe e morrem afogadas, sem conseguir subir à superfície para respirar. Daí uma das importâncias de viverem em uma região em que se refugiam, longe da pesca.
Esses golfinhos começaram a chamar a atenção de pesquisadores no sul do Rio no início dos anos 2000. Na época, já se tinha ideia de que o animal se distribuía do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo, mas o conhecimento vinha de um modo dramático. Pesquisadores encontravam os bichos mortos na praia, mas só em ocasiões muito específicas conseguiam vê-lo na natureza.
Além de não fazer acrobacias ao lado de barcos e de ser pequena, a coloração da toninha não ajuda a visualização. Em tom bege acinzentado, meio marrom, elas facilmente desaparecem em águas turvas – como é característico em boa parte do trecho onde vivem. Ao levantarem a cabeça para respirar, também tiram o corpo só um pouco da água, sempre com muita rapidez.
Na região de Paraty, o primeiro sinal veio de um crânio. Depois surgiram uns animais encalhados mortos, e um filhote vivo, sozinho, que acabou não sobrevivendo. “Se tinha um filhote ali, tinha de ter uma mãe também, mas ninguém tinha visto. Conversávamos com pesquisadores, pessoas da região, e ninguém conhecia a toninha. Se fosse uma espécie comum na área, pescadores saberiam”, relata Lailson.
Naquela época, sabia-se que havia uma população bem estabelecida em Ubatuba (leia mais abaixo), na divisa de São Paulo e Rio, e se imaginou que os bichos que apareciam em Paray vinham de lá. Com o início de um projeto de monitoramento de praias entre SC e RJ, como compensação da Petrobrás pela exploração na Bacia de Santos, mais relatos de animais encalhados foram surgindo, especialmente no período de primavera e verão.
“Havia uma sazonalidade nos encalhes, mas achamos que isso tinha a ver mais com capturas acidentais do que com a presença delas ali somente nessa época. Na primavera e no verão começa a corrida para pescar robalo. As redes são colocadas muito próximas à costa, área onde as toninhas também gostam de ficar”, relata o pesquisador.
Lailson conta que chegou a ver por duas vezes, de relance, uma toninha na região a partir de 2018. Mas sem nenhuma chance de registro. Da primeira vez, ele e colegas do Maqua navegavam pela Baía da Ilha Grande atrás do boto-cinza quando ele viu um bicho diferente.
“Foi muito rápido. Eu estava pilotando e vi. Não tive dúvida que era toninha porque já tinha visto na Baía da Babitonga (em SC, onde há uma pequena população conhecida e abrigada). Estávamos em uma lancha barulhenta, paramos, mas entrou um vento e, como ela é pequena, perdemos a oportunidade de visualizá-la. E ninguém mais tinha visto. Depois vi de novo em outro trabalho de campo, mas também foi muito rápido e só eu. Fiquei me sentindo meio maluco. ‘Estou alucinando’, pensei”, relata o pesquisador.
Começaram a surgir relatos aqui e acolá de um “bicho estranho”, de um “golfinho de bico”. Os cientistas começaram a mapear e perceberam que se concentravam em área relativamente pequena, costeira e mais rasa do que em outras localidades onde ocorrem. O grupo, então, desenhou uma estratégia para efetivamente encontrar o animal, que contaria com microfones subaquáticos, drones (que poderiam fazer uma varredura menos perturbadora para as toninhas), além da navegação efetiva dos cientistas e a ajuda de pescadores.
No início do ano eles começaram a pesquisa. Em uma das expedições, uma pesquisadora da equipe também viu rapidamente um animal. Mas dessa vez a equipe já estava com o hidrofone - um microfone sensível que se coloca na água - a bordo e o colocou no mar, conseguindo captar a vocalização das toninhas. O som não é audível para humanos, mas posteriormente em análise no computador é possível visualizar a frequência. As toninhas certamente estavam ali. Aí veio a covid-19.
O trabalho retomou no fim de novembro, quando os pesquisadores foram acompanhados pela reportagem. Era o primeiro dia, e eles estavam preocupados de que só veríamos um trabalho bem chato, horas e horas parados, somente tentando captar algum som. Não demos só sorte. A aposta do grupo foi certeira. As toninhas foram finalmente fotografadas e acompanhadas por mais de uma hora, no que os pesquisadores chamam de avistagem comportamental, inédita até então.
Os registros não foram os mais perfeitos do mundo porque o bicho é realmente arredio e rapidamente desaparece de nossas vistas. Em um dado momento, uma movimentação perto do barco causou alvoroço. “Acho que ela ‘tá dando no peixe’”, brincou Neto, sobre o que deveria ser um peixe saltando na água. Não passou muito tempo e de fato uma delas ficou mais ousada e realmente saiu para respirar perto da gente. “Deu para ouvir a borrifada que ela fez”, comentou Rafael.
“Com essas avistagens, a gente passa a ver a toninha de outra forma. Elas estão lá o tempo todo. Realmente usam a região e isso é um achado sensacional. O que vimos antes não eram animais que só estavam de passagem, que se dispersaram do grupo de Ubatuba ou que entraram na baía em busca de comida. Isso abre um campo para a gente acreditar que elas podem estar em outros locais. Precisamos de um olhar refinado para entender a real distribuição”, complementa Lailson.
Pouco mais de 70 quilômetros ao sul de Paraty, um outro grupo de toninhas tem fornecido informações valiosas sobre como se comporta a espécie – que por muito tempo chegou a ser chamada de golfinho fantasma por pesquisadores, acostumados a trabalhar somente com o bicho morto.
Nas águas claras e calmas de Ubatuba, a equipe do biólogo Daniel Danilewicz, coordenador do Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos do Rio Grande do Sul (Gemars), tem conseguido observar as toninhas como nunca antes pela ciência com o uso de drones e com sobrevoo de helicópteros e aviões.
O próprio Daniel foi um dos que levou muitos anos até ver um exemplar vivo de toninha. Ele começou a estudar a espécie em 1992 no Rio Grande do Sul, com animais mortos. Observou uma viva a partir de um avião, pela primeira vez, e muito rapidamente, depois de 12 anos. Mas de perto mesmo, com a ajuda de drones, foi só em 2016, em Ubatuba.
“A toninha é uma das espécies mais estudadas do Brasil. Como sempre se viu muito cadáver nas praias, a gente sabia tudo: a biologia, o que comia, a reprodução. Entendia-se tudo do bicho morto, mas o bicho vivo a gente só imaginava. Era um bicho muito estudado, mas nunca visto.”
O pesquisador foi pioneiro no desenvolvimento de uma linha de pesquisa pelo ar para romper a barreira da dificuldade de avistar as toninhas a partir de embarcações. O método, que em geral é o mais usado para cetáceos, não serve, em geral, para toninhas. Além da timidez delas, as águas turvas comuns no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e Paraná impediam sua visualização.
A ideia de fazer pesquisas em Ubatuba ocorreu porque na região a água é bem clara e calma. Qualquer ondulação no mar também dificulta o avistamento, mas quando o mar está lisinho, elas são vistas facilmente.
“Só então realmente comecei a entender as toninhas, e isso foi emocionante. Começamos a derrubar várias ideias que existiam, de que é um bicho solitário, lento, chatinho. Vimos que é um animal carismático, que anda em grupo, se move rápido atrás de peixe, forma família. É maravilhoso, mas ninguém conhecia”, comenta o pesquisador.
A reportagem acompanhou Daniel em um sobrevoo por Ubatuba, onde foi possível observar claramente que elas andam em grupos. Um dos que observamos tinha uma mãe com um pequeno filhote nadando embaixo dela, um animal um pouco maior, que poderia ser um filhote mais velho, e um outro adulto.
“Em geral, identificamos três, quatro animais juntos. São grupos pequenos, provavelmente familiares”, explica Daniel. O helicóptero ajuda a identificar mais facilmente as populações e com o drone é possível definir melhor o que eles estão fazendo. “No fim de outubro vimos bem de perto um grupo de três adultos comendo. E eles não estavam nem aí para o drone”, brinca.
O pesquisador se manteve firme no estudo das toninhas mesmo depois de ter sofrido um acidente com avião bem no início da sua carreira acadêmica. Ele estava fazendo um sobrevoo com um monomotor no Rio Grande do Sul quando o piloto fez um pouso forçado. Era a sua primeira campanha com avião atrás da espécie, em março de 1996.
Por oito horas, ele e mais dois pesquisadores, além do piloto, ficaram boiando no mar gelado do Sul à espera de resgate. Um grupo do Esquadrão Pelicano, da Força Aérea Brasileira, de Mato Grosso, fazia treinamento na região e resgatou a equipe. No ano que vem o acidente completa 25 anos. Todos os anos, na data, os cientistas do Gemars fazem uma festa em comemoração ao salvamento. Daniel nunca deixou de voar desde então.
Mas o acidente mudou vários procedimentos da equipe. “Hoje em dia só voamos com aviões com dois motores, porque se por um acaso um não funcionar, o avião ainda consegue voar normalmente. Também levamos balsa salva-vidas, sinalizador por GPS, telefone por satélite. E temos sempre uma equipe de terra que fica acompanhando por computador o trajeto do avião”, relata.
Seu maior desafio hoje é ajudar a encontrar formas de proteger as toninhas. A maior ameaça à espécie é a pesca com rede.
“O pescador não quer matar o animal, ele não usa a toninha para nada, não come, não faz isca. E em teoria ele também está usando redes legais para pegar o peixe que toda a sociedade come. Está trabalhando, fazendo uma atividade legal na maioria das vezes, e cai um animal que ele não quer pegar. Mas é um mamífero que vai se extinguir, que não tem rapidez de reprodução. Como trabalhar isso é um desafio gigante”, explica.
A saída mais simples, mas também com mais custos sociais, é proibir a pesca com rede em algumas regiões onde as populações são muito pequenas. Outra é tentar desenvolver alguma tecnologia com as redes para afugentar as toninhas, mas não os peixes.
“Mas onde for mais urgente, onde tem muito pouca toninha, talvez seja necessário não ter pesca. Porque o problema não é só a toninha. Ela é a bandeira, mas é também problema da tartaruga, do boto-cinza, da arraia, é do tubarão, e de muitas espécies de peixes. Se a toninha estiver saudável, todo esse ambiente também vai estar. Até para a pesca vai ser melhor”, diz.
“Do jeito que está sendo feita hoje no Sul e no Sudeste do Brasil, a pesca não é sustentável. A quantidade de peixes está diminuindo e os pescadores estão usando redes cada vez maiores para pegar a mesma quantidade ou menos do que pegava há cinco, dez anos. O ideal seria diminuir tudo aos poucos, para ter um ganho a médio e longo prazo”, sugere o pesquisador. Enquanto isso, ele continua monitorando o animal para mostrar suas características a fim de conscientizar sobre sua importância.
Editor executivo multimídia: Fabio Sales / Editora de infografia multimídia: Regina Elisabeth Silva / Editores assistentes multimídia: Adriano Araujo, Carlos Marin, Glauco Lara e William Mariotto / Designer multimídia: Dennis Fidalgo / Edição: Bia Reis e Victor Vieira / Reportagem: Giovana Girardi / Foto de capa: Helena Wolfenson