Brasil

Mortes por coronavírus no Brasil passam de 50 mil e superam tragédias, violência e doenças mais letais

Em três meses, covid-19 matou mais no País do que enfarte, HIV, armas de fogo, acidentes de trânsito e catástrofes como o rompimento da barragem de Brumadinho e o incêndio da boate Kiss somadas

Texto: Ricardo Brandt

20 de junho de 2020 | 20h00

Uma cena que ficou comum para brasileiros, homens e mulheres, que perderam para a doença seus familiares durante os últimos três meses
Uma cena que ficou comum para brasileiros, homens e mulheres, que perderam para a doença seus familiares durante os últimos três mesesWerther Santana/Estadão

A covid-19 matou no Brasil, em três meses, mais do que outras doenças, catástrofes naturais, tragédias e mazelas urbanas, como a violência – problema endêmico no País. Com 50.058 vítimas fatais até este sábado, 20, e com a transmissão do coronavírus em crescimento acelerado, a pandemia se consolida como uma das piores crises sanitárias da história.

O Estadão reuniu dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 1996 a 2020, e de catástrofes da humanidade, como guerras, atentados, tempestades, enchentes e outras pandemias e epidemias, para comparar o tamanho da atual tragédia sanitária. O rastro de letalidade da covid-19 supera o deixado por armas de fogo, por acidentes (de trânsito, aéreos e marítimos), por doenças que protagonizaram epidemias recentes na história, como aids e dengue, e até mesmo por enfartes do coração – que integram o grupo de doenças que mais causam mortes no Brasil, as relacionadas ao sistema circulatório, como derrames, AVCs, hipertensão arterial, entre outras.


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50 mil vidas perdidas e sofrimento longe do fim

“E ainda não chegamos nem na metade da covid-19”, afirma o virologista Maulori Curié Cabral. Professor do Departamento de Virologia, do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele afirma que é cedo para um prognóstico de comparações. “Ainda estamos no começo da doença, em uma fase de curva achatada, em que não se sabe quando e como vai acabar. Depois que terminar é que poderemos ver o total de mortes e comparar.”

Descoberta em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, a covid-19 chegou ao Brasil provavelmente no fim de janeiro. O primeiro caso de um brasileiro contaminado pelo coronavírus, do tipo Sars-CoV-2, foi confirmado oficialmente em 26 de fevereiro. Em menos de quatro meses meses, mais de 1 milhão de pessoas foram infectadas – equivalente a 0,5% da população brasileira. A primeira morte foi registrada em 17 de março: um morador de São Paulo, de 62 anos, com outros problemas de saúde.

Passados 95 dias desde então, a covid-19 vitimou 50.058 pessoas no Brasil. É mais do que o total de mortes por por algum tipo de isquemia no coração, que incluem enfartes, registradas entre janeiro e maio de 2019: 46,5 mil, segundo dados do Ministério da Saúde.


Covid-19 mata mais que violência, trânsito e tragédias

A violência é um dos problemas sociais que mais preocupam a população, não só pela agressão, mas pelos riscos e imprevisibilidade que envolve. A covid-19 matou nesses 90 dias mais do que as armas de fogo mataram em 2017 inteiro, ano em que houve maior número de ocorrências do tipo nas últimas três décadas: 48,4 mil óbitos (inclui assassinatos e suicídios).

Comparado às mortes decorrentes de acidentes de trânsito, aéreos e navais (30 mil, em 2019), a covid-19 matou quase o dobro. Tantos as mortes por armas quanto os acidentes são classificadas como óbitos motivados por “causas externas” no registro de letalidade no Brasil do Ministério da Saúde. Isto é, não provocadas por doenças.

As causas externas formam o quarto grupo com mais óbitos do País: 140 mil em 2019. Entram na classificação violência policial, agressões, conflitos, explosões, mortes em hospitais por complicações, entre outras. Entre março e junho do ano passado – período aproximado de tempo da epidemia no Brasil –, os óbitos desse grupo somaram 46 mil. Menos do que a covid-19 no mesmo período.

No Brasil, se somarmos os mortos de 17 tragédias recentes, não chegaríamos nem perto do que a covid-19 matou. Juntas, elas vitimaram 3.537 pessoas. A conta reúne os mortos soterrados com os rompimentos de barragens em Brumadinho (2019) e Mariana (2015); os de quatro acidentes aéreos – dois da TAM em Congonhas (1996 e 2007), da Gol (na Serra do Cachimbo, em 2006) e do time da Chapecoense (na Colômbia, em 2016); os de três deslizamentos e das enchentes, no Rio (2011), em Caraguatatuba (1967) e Santa Catarina (2008); os com os desabamentos, incêndios e explosões dos edifícios Joelma (1974) e Andraus (1972), da Boate Kiss (2014), do Gran Circus (1961), da Vila Socó, em Cubatão (1984) e do Plaza Shopping (1996); do naufrágio do Bateau Mouche (1989) e no massacre do Carandiru (1992).


Tragédias recentes do Brasil

Pandemia da covid-19 matou em três meses mais do que 17 catástrofes recentes do País


Coração em risco

Nos últimos quatro anos, 1,3 milhão de pessoas morreram a cada 12 meses no País. A principal causa de morte são as doenças do aparelho circulatório: 360 mil em 2019. Nesta categoria  entram enfartes, problemas decorrentes de hipertensão arterial, AVCs. O grupo dos tumores, em que está o câncer, é o segundo, seguido pelas doenças respiratórias – em que entram as pneumonias e as gripes, como a influenza tipo H1N1. Foi essa última que protagonizou a pior pandemia gripal da história, em 1918, que ficou conhecida como a “gripe espanhola”, apesar de não ter sido originada nem difundida pela Espanha.

No ano passado, os enfartes do coração provocaram a morte de 116 mil pessoas – um terço do total de óbitos do grupo de doenças do aparelho circulatório. Se isolarmos o total de casos entre janeiro e junho, são 56,8 mil óbitos em seis meses, quantia que a covid-19 deve ultrapassar antes do fim deste mês. Comparando períodos equivalentes (de três meses), a conta mostra que a covid-19 só não matou mais do que todas as doenças do sistema circulatório e do que câncer. Entre março a maio de 2019, por exemplo, morreram 89 mil por doenças do sistema circulatório. Os cânceres mataram 59 mil.


Epidemias de HIV, dengue, febre amarela e tuberculose

A tuberculose é, há anos, um problema de saúde pública no Brasil. Transmitida por uma bactéria, o bacilo de Koch, ela afeta os pulmões. Há vacina para evitar a doença, mas, em média, 4,5 mil fenecem por ano. Em três meses, o coronavírus matou o que a tuberculose vitimou em dez anos (de 2009 a 2019), segundo dados o Ministério da Saúde.

A tuberculose entra no grupo das doenças infecciosas e parasitárias. Estão nele novas e velhas “pragas biológicas” da humanidade: HIV, dengue, chikungunya, febre amarela, leptospirose, hanseníase, peste bubônica, cólera, malária... Em 90 dias, a covid-19 matou a mesma quantidade de pessoas que essas doenças vitimaram em um ano. Foram 52 mil mortes nos anos de 2013 e 2014, por exemplo.

Uma das piores crises recentes de saúde foi provocada pela epidemia da aids, na década de 1980. As doenças decorrentes do vírus da imunodeficiência humana (HIV) são incluídas no grupo da tuberculose. Nas últimas três décadas, 48 mil pessoas morriam, em média, em quatro anos. Foi assim entre 1996 e 1999, entre 2010 e 2013 e entre 2015 e 2018, de acordo com o Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde.

No mundo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) calcula que 35 milhões de pessoas morreram até 2017 vítimas da aids/HIV. Pouco se fala das mortes decorrentes da doença no Brasil, mas em 2018 foram registradas 11 mil óbitos.

O historiador Luiz Antonio da Silva Teixeira, especialista em saúde pública, disse ao Estadão que a aids, em nível global, provou décadas atrás “a impossibilidade de um mundo sem doenças infecciosas”, independentemente da forma de transmissão, mesmo com a evolução econômica, social e sanitária. Pesquisador da Casa Oswaldo Cruz, da Fiocruz, ele afirma que o controle das epidemias é uma utopia. “O otimismo das ciências médicas com a possibilidade de dar fim aos problemas de saúde é tão cíclico quanto as próprias epidemias.”


Epidemias do passado

Em 1918, a “gripe espanhola”, maior crise sanitária da era industrializada, varreu do mapa pelo menos 50 milhões de pessoas no mundo. Estima-se que infectou cerca de 50% da população. No Brasil, ela chegou no fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os registros são de 35 mil mortos em três meses – segundo números oficiais, que desconsideram os mortos “invisíveis”, aqueles que faleceram sem entrar na contabilidade. O País tinha cerca de 30 milhões de habitantes. Atualmente, são 211 milhões.

O virologista Maulori Cabral, da UFRJ, afirma que não há como comparar as pandemias. “Estamos no começo, em fase de curva achatada, em que não se sabe quando e como vai acabar. Após terminar é que poderemos ver o total de mortes.”

Há 40 anos Cabral estuda vírus (da gripe, dengue, chikungunya, zika, febre amarela e de outras doenças). Um deles é o influenza H1N1, da “gripe espanhola”. Ele assina um livro sobre a pandemia no Rio, que era a capital do Brasil, com o virologista Hermann Schatzmayr (morto em 2010), que foi presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), atuou na erradicação da varíola e da poliomielite e foi o responsável pelas equipes que isolaram os tipos 1, 2 e 3 do vírus da dengue.

Segundo ele, as duas pandemias têm pontos de partida distintos. Identificada no fim de 1918 no Brasil, quando a guerra acabava, a “gripe espanhola” alastrou-se em em três meses. Necrotérios ficaram lotados e havia corpos por todos os cantos, impondo um funesto esvaziamento das ruas da capital. “Foi um ‘salve-se quem puder’”, diz.


Estadão Acervo


Grandes tragédias que marcaram a história do Brasil

Na covid-19, as regras de mitigação (isolamento e quarentena) impostas pelos governos evitaram uma explosão inicial de infectados e de doentes e reduziram um pouco os riscos de colapso da rede hospitalar. Com o afrouxamento dessas medidas, porém, os casos começaram a subir rapidamente a partir de maio. Mas mesmo se isso não tivesse ocorrido, explica o virologista, o isolamento não acabaria com a pandemia.

“Quem orientou os governos a dizer ‘faça o achatamento da curva’ não disse que isso ia tirar o risco de as pessoas se contaminarem. O objetivo é reduzir a frequência de contaminação, dentro da possibilidade disponível de hospitalização.” Segundo ele, só quando 60% das pessoas forem infectadas, ou houver uma vacina, começará o fim da crise.

“Saber quantos irão morrer, só depois de a pandemia terminar”, afirma. Mas quando isso ocorrer, pelos cálculos dele, a covid-19 poderá ter vitimado pelo menos 0,05% da população, algo em torno de 100 mil mortos no Brasil. É o dobro das baixas de brasileiros na Guerra do Paraguai (1864 e 1870) e do total de civis mortos na Guerra do Iraque (2003-2009).


As mortes em tragédias da humanidade

A morte por covid-19 entra em uma categoria específica na Classificação internacional de Doenças (CID) de causas de óbito. Doença infecciosa viral, ela acomete, nos quadros graves, o sistema respiratório - grupo que é o terceiro maior motivo de falecimentos no País: 161 mil vítimas, em 2019. As gripes e as pneumonias são um subgrupo: provocaram 84 mil mortes.

Dez anos atrás, em 2009, elas mataram 53 mil pessoas. Foi naquele ano em que foi registrada a pandemia do que foi apelidada inicialmente como “gripe suína”, a partir do México. Provocada por uma nova versão do vírus da gripe influenza H1N1 – o mesmo da gripe espanhola, de 1918 –, causou a morte de 16 mil pessoas no mundo (entre 2009 e 2010).

A pandemia de covid-19 deve marcar o início do século 21, assim como a “gripe espanhola” marcou o começo do século 20 e outras epidemias marcaram suas eras. “Epidemias sempre ocorreram na história da humanidade, com impacto na vida cotidiana das populações. Uma das lições é a colaboração e coordenação, liderança na condução dessa grande tarefa de controlar o surto da epidemia e, principalmente, solidariedade entre grupos, países e regiões”, explica a epidemiologista Maria Rita Donalisio Cordeiro, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Para ela, a desigualdade social impulsiona a propagação da covid-19. Com a expansão da doença dos centros para as periferias, em áreas pobres onde vivem populações vulneráveis, há uma aceleração na velocidade de disseminação.

A Peste Negra (peste bubônica) é considerada a maior tragédia sanitária da humanidade. No longínquo século 14, uma bactéria do rato transmitida para o homem por pulgas dizimou pouco mais de 20% da população – mais de 70 milhões de mortos somente entre 1347 e 1351. Mas houve surtos intermitentes até 1671 elevaram o número de mortos para 150 milhões. É mais do que muitas guerras e tragédias. No Brasil, mortes provocadas pela doença, entre 1899 e 1907, foram decisivas para a criação da Fiocruz, no Rio, e do Instituto Butantã, em São Paulo.

A taxa de letalidade de cerca de 5% da covid-19 no Brasil possivelmente revela uma falha no enfrentamento à epidemia: a falta de identificação dos casos, avaliam cientistas e médicos infectologistas. Nesse patamar, se metade da população brasileira (105 milhões de pessoas) fosse infectada pelo coronavírus de uma vez, 5,4 milhões de pessoas teriam morrido. É quase o total registrado no Holocausto, quando 6 milhões de judeus exterminados pelo regime nazista.

Como o índice de testagem da população é baixo e há casos assintomáticos ou muito leves, provavelmente estão deixando de ser contabilizadas milhares de infecções. Com isso, é de se imaginar que a taxa de letalidade é menor. “Não temos como saber se a letalidade é alta agora ou se o número de infectados contados é muito pequeno”, diz o especialista em história da saúde.


Guerras biológicas

As epidemias provocadas por vírus ou outros agentes infecciosos emergentes são consideradas “guerras biológicas”. O que mudou com o passar do tempo, nessas batalhas da humanidade, é o poder e o modo de enfrentamento dos homens, afirmam os especialistas. Em 2009, na crise sanitária mundial do H1N1, que tinha menor poder de letalidade que a “gripe espanhola”, morreram 16 mil pessoas.

Além do avanço científico, das vacinas e dos remédios, um fator importante é a capacidade de contenção do vírus. Bloquear a migração dos microrganismos emergentes é essencial para evitar a transformação de um surto local em pandemia.

A forma de transmissão dos agentes infecciosos pesa, como facilitador ou dificultador, no combate nessas guerras sem pólvora. O ebola é uma doença com poder de letalidade maior do que as gripes e a covid-19, mas o contágio se dá pelo contato com fluído de um infectado (sangue, fezes, urina etc). Não pelo ar ou por gotículas de saliva, por vias respiratórias.

Em 2013, quando um surto de ebola atingiu a África, não houve disseminação com a mesma potência e rapidez com que o coronavírus e os vírus da gripe se espalharam pelo mundo. Foram 11,3 mil mortes concentradas nos países africanos.

O historiador Luiz Teixeira, da Casa Oswaldo Cruz, diz que “ainda não se sabe a extensão da atual pandemia”. “Mas seus desdobramentos sociais serão gigantescos.” Para ele, as cíclicas catástrofes provocadas por doenças infecciosas mostram que a erradicação das enfermidades é uma utopia. A solução, segundo ele, seria a melhora dos serviços de saúde, das condições de vida da população e mais investimentos em prevenção e em educação.


No mundo, covid-19 matou o equivalente à população de Santos

A covid-19 matou mais de 462 mil pessoas no planeta. São 8,7 milhões de contaminados pelo coronavírus. O Brasil é o segundo País com mais vítimas fatais, perde apenas para os EUA, segundo mostra o monitor global da doença feito pela Universidade Johns Hopkins.

Com a primeira morte registrada na China, em janeiro, o total de pessoas que morreram até agora é equivalente à população de grandes cidades brasileiras. Seria o mesmo que dizer que uma Santos, no litoral sul de São Paulo, sumiu do mapa, ou uma Campina Grande (PB), uma Betim (MG), uma Maringa (PR), todas cidades na faixa dos 400 mil moradores. Segundo o IBGE, 42 cidades do Brasil têm mais de 500 mil habitantes.


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