Quando percebeu o quão machista o ambiente do rap poderia ser, Karoline dos Santos Oliveira logo escolheu as suas armas. “Vou chegar de saia, de rímel e de batom, e quero ver até onde isso vai”, lembra Karol Conka, hoje com 32 anos. “É aqui mesmo que eu vou causar.”
Uma década e vários sucessos depois, ela se tornou a principal referência feminina no rap brasileiro, dominado por homens desde os tempos de Sabotage e dos Racionais MC’s, no fim dos anos 1980. A rima afiada e a versatilidade de seu flow – fluidez com que os rappers colocam seus versos sobre uma batida – lhe renderam não só o reconhecimento na música, mas trabalhos como apresentadora na televisão, contratos comerciais e shows nos maiores festivais do País.
Em cima e fora dos palcos, Karol prega o protagonismo e a força das mulheres, exaltando a liberdade sexual feminina, como na canção Lalá, na qual inverte os papéis tradicionais de gênero e critica homens que se vangloriam de suas conquistas amorosas. Tem sido assim desde Tombei (2015), seu primeiro sucesso a atingir um público mais amplo. Nessa música, uma parceria com a dupla Tropkillaz, ela deixa clara sua mensagem: ‘Quando mamacita fala, o público senta, e escuta’.
Vinda da periferia de Curitiba e mãe solteira aos 19 anos, a rapper explica que nunca se deixou levar pela negatividade. Os segredos do sucesso? Ter fé e um bom argumento, segundo ela. “Há sempre perguntas do tipo: “Quem está por trás dela? É um empresário? É um homem?”, conta Karol. “Por isso, hoje eu cuido da minha carreira.”
Projeto do site Capitu em parceria com o Facebook e o International Center for Journalists, a websérie Deixa Ela discute diferentes aspectos do cotidiano das mulheres na sociedade brasileira. Em nove capítulos, trará entrevistas exclusivas com personalidades como as deputadas Joice Hasselmann e Tabata Amaral, a artista Daniela Mercury e a jogadora Cristiane, entre outras.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista concedida pela rapper ao Estado.
O rap é um gênero predominantemente masculino. Quando decidiu ser rapper, achou que teria mais dificuldades por ser mulher?
Sim. O que me fez entrar para o universo do hip hop foi o álbum The Fugees, que tinha a Lauryn Hill na capa. Comecei a frequentar eventos do gênero e percebi que era um meio muito machista. As meninas se fantasiavam de homens para conquistar respeito. Foi quando me deu um estalo: ‘É aqui mesmo que eu vou causar. Vou chegar de saia, de rímel, batom e quero ver até onde isso vai’.
Chegou a enfrentar resistência nesse processo?
As próprias meninas achavam que eu mantinha relacionamentos com promotores das festas ou com os DJs. E eu só entrava com o meu rap, sem nunca me envolver com ninguém. Nunca quis passar pela situação de ser vista como ‘a mina do cara’ ou ‘a mina do MC’.
Qual o momento que considera crucial para sua carreira?
Acho que consegui reconhecimento das pessoas em Tombei. Houve gente que já acompanhava o meu trabalho e não curtiu muito essa imagem. Mas depois entendeu que tinha uma mensagem por trás, o feminismo. Eu falava de uma maneira mais flexível, mais fácil de entrar na cabeça das pessoas. Meu objetivo era fazer os machistas cantarem esse refrão em coro, sem perceber o conteúdo do que estavam cantando (risos).
Como foi avançar como artista sendo mulher, negra, vinda da periferia? Qual a sua motivação?
As pessoas que vêm da periferia não têm incentivo para sonhar. É como se aquilo que a gente sonha só ficasse no sonho e não fosse além. Mas eu sou uma pessoa que segue a lei da atração. Se eu quero, posso. Então, mesmo com tanta negatividade, segui exatamente assim: dormindo todas as noites e me imaginando fazendo exatamente o que eu faço hoje. Acho que o segredo é ter fé.
Seu filho, Jorge, está com 13 anos. Como amadureceu a ideia de ser uma mãe que trabalha?
Quando comecei a cantar, me sentia uma mãe pela metade. Só que em certo momento parei para entender o meu jeito de ser mãe. As mulheres costumam seguir um determinado padrão de maternidade. Eu busquei exemplo em mulheres como Elis Regina. Foi ela que me fez ficar tranquila. Pensei: “Ela teve filhos, por que eu não posso também?”. Mas fazer isso requer bastante disciplina.
As artistas agora têm mais espaço, graças às mudanças no cenário fonográfico, com o Youtube, plataformas de streaming e redes sociais?
Os espaços estão mais amplos, mas ainda há várias questões complicadas para resolver. A gente sempre ouve reclamações de mulheres que não são ouvidas ou que não são levadas a sério pelos empresários de uma gravadora. Sempre perguntam coisas do tipo: ‘Quem está por trás dela? É um empresário? É um homem? Como ele respeita o universo feminino dela?’. É por isso que hoje em dia eu cuido da minha carreira.
Como se impor diante dessa desconfiança no trabalho?
Há situações nas quais é preciso falar mais alto mesmo e bater a teta na mesa. A gente acaba ficando com aquela fama chata de ser ‘brava’. Sou muito conhecida, sim, por ser uma pessoa legal e, ao mesmo tempo, brava. Quando a gente tem um bom argumento, sempre acaba saindo por cima.
Qual dica você tem para as meninas que querem entrar no rap?
Elas têm de seguir a intuição. O primeiro passo é a garota escrever o próprio verso. É legal termos intérpretes, mas é importante a menina saber ‘canetar’, saber passar a informação dela. Também é necessário que ela se sinta à vontade na pele que habita. Quando se está à vontade com o que você é, tudo fica mais leve.