O Estadão acompanhou no 1º semestre os desafios, medos e alegrias da reabertura de uma escola estadual na zona leste de São Paulo. Uma minoria voltou ao presencial, alguns alunos sumiram e outros continuam só online. O governo fala em presença obrigatória em setembro
Mesmo em uma escola considerada exemplo na rede pública de São Paulo, com equipe dedicada e protocolos sanitários bem feitos, pouco mais de 10% dos estudantes voltaram ao presencial este semestre. Alguns sumiram. Outros acreditam que o ensino está contemplado ao fazer lições online. Ou se veem sem opção. A reabertura da escola, especialmente no Brasil, é um debate que começou quando se mandou as primeiras crianças para casa em março de 2020 e ainda não tem data para terminar. Para mostrar os desafios, temores e alegrias da tentativa de volta da educação no País, o Estadão acompanhou pelos primeiros seis meses do ano uma escola estadual no extremo leste da capital paulista.
Do diretor que luta de todas as formas para não perder nenhum aluno à estudante que voltou e depois se fechou em casa. A Escola Estadual Eliza Rachel Macedo de Souza, no Lajeado, perto de Guaianases, é uma amostra real da gangorra que se tornou o processo de reabertura. E também das consequências devastadoras que a escola fechada pode trazer na aprendizagem de crianças e adolescentes no País.
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O secretário do Estado da Educação, Rossieli Soares, sabe que as aulas presenciais na rede caminham a passos lentos. E vê como opção tornar obrigatória a volta a partir de setembro, quando a população adulta de São Paulo terá tomado a primeira dose da vacina contra o coronavírus. “Você tem um processo para essa geração que é extremamente complexo, os resultados das avaliações vão despencar, a desigualdade vai aumentar onde já era alta. Eu acho que só tem um jeito, o caminho é a volta às aulas”, diz.
No fim do semestre letivo, a equipe do diretor da Eliza Rachel, Aldo Florentino Alves, de 64 anos, se debruçava em listas e arquivos de computador para checar quais alunos estavam entregando as atividades online. Cobrava quem não havia feito nada, avisava os pais, procurava nas redes sociais os sumidos. Aldo se orgulha em dizer que 85% fizeram todas as lições, mas sabe que a porcentagem alta esconde problemas. “Estou muito assustado com a queda que a educação vai ter”, diz. E conta das provas online em que estudantes da escola tiraram nota 2. “Isso não acontecia antes.”
A Eliza Rachel tem 2,5 mil alunos do fundamental 2 (6º ao 9º ano), ensino médio, técnico e educação de jovens e adultos. Fincada na comunidade pobre de Vila Chabilândia, tem concorrência por vaga pela fama que alcançou com boas notas. O desempenho dos alunos de ensino médio da escola no último Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (o Ideb, avaliação do Ministério da Educação) foi 5,1, bem maior que a média do Estado. O alagoano Aldo, que vive em São Paulo há quatro décadas mas mantém o forte sotaque, está no cargo há 17 anos. Pesquisas mostram como uma boa gestão pode fazer a diferença até na aprendizagem das crianças.
Aldo Florentino Alves, diretor da escola Eliza Rachel
Em outubro de 2020, Aldo chegou a ir de porta em porta para avisar às famílias que a escola estava aberta novamente, depois da primeira onda de covid-19 no Estado. Falou com os pais, chamou os alunos de volta. Quando o ano letivo retornou presencialmente em 2021, organizou as turmas em grupos menores, escalonados em horários, para que todos pudessem frequentar as aulas mais dias. Reformou o espaço, construiu mais áreas abertas.
“Para o aluno da periferia que tem o problema da violência doméstica, das drogas nas esquinas, se a escola não for o espaço de sustentação, onde é orientado por um grupo que tem experiência maior, que conduz para um caminho melhor...daqui 10 anos estaremos vivendo um caos”, acredita. “Sou a favor da escola ficar aberta por causa disso, apesar de todos os medos e riscos que eu corro também. A gente não pode parar com educação.”
No dia em que a reportagem do Estadão visitou a escola, no fim de maio, ele encontrou pelo Facebook um aluno que não aparecia há tempos e nem mais fazia suas atividades online. O diretor conseguiu descobrir que o menino tinha mudado de celular, mas logo já estava com o número novo. “Vem para cá agora”, pediu por mensagem de áudio. João Paulo Nunes da Costa, de 19 anos, apareceu em menos de uma hora. Disse que Aldo era “um pai” pra ele, mas que não estava mais conseguindo estudar porque trabalhava o dia todo, como pintor.
Com o celular novo, contou, perdeu a senha que usava no Centro de Mídias, a plataforma criada pelo governo estadual para ensino online durante a pandemia. Segundo o Estado, 85% dos alunos se cadastraram na ferramenta, que tem grandes aulas, divididas por disciplinas e séries. Alunos e professores se comunicam por chat.
Muitas escolas criaram ao longo da pandemia formas de os estudantes falarem com quem efetivamente dá aulas a eles, como grupos de WhatsApp. Mas aulas online ao vivo com o professor da turma, como é comum nas particulares, são mais raras.
Problemas tecnológicos resolvidos, Aldo pediu que João tentasse voltar ao presencial, quando saísse do trabalho, à noite. “Acho mais fácil fazer o online, posso fazer a qualquer hora, até de madrugada”, diz. Ele conta ainda que nem sempre assiste às aulas do Centro de Mídias e “pesquisa as respostas das lições na internet”.
“Há uma questão importante até de comunicação e de discussão com a sociedade, de como a gente entende o processo educacional”, diz o diretor de políticas públicas da Fundação Lemann, Daniel de Bonis. “A gente não pode passar a impressão de que o ensino remoto é um perfeito substituto e uma alternativa viável ao presencial. Ele pode ser um complemento, um paliativo no momento em que a escola não tem como estar aberta, mas o nível de aprendizado não é o mesmo.”
O vice-diretor da Eliza Rachel, Julio César Rodrigues, também procurava outra aluna sumida no mesmo dia. Ligou, mas os telefones - nem dela nem da mãe - atenderam. Mandou então uma mensagem de texto, perguntando por que ela não havia feito as atividades online. A menina, de 14 anos, disse que tinha que cuidar da casa e da irmã mais nova. E avisou: “não vou voltar este ano para a escola”. Ao ser questionada sobre o motivo, afirmou que tinha “medo de ficar sozinha na sala de aula”.
Rodrigues explicou que ninguém fica sozinho nas salas e que, se fosse necessário, juntariam turmas. A menina prometeu voltar em agosto. Mas, de fato, as salas da Eliza Rachel não encheram neste primeiro semestre. Carteiras empilhadas no fundo ajudavam a abrir espaço para o distanciamento. Entre três e dez alunos por sala apareciam com frequência, mesmo com toda equipe de professores à disposição no presencial e protocolos bem feitos. “Existem vários estudantes que estão acomodados nesse processo, dizem que está legal. ‘Sigo aqui, faço os meus deveres de casa, concluo esse processo e saio ao final com algum diploma’”, diz o superintendente do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques.
Estudos feitos pelo próprio Instituto Unibanco com o Insper já mostraram que, mesmo com ensino online em 2020, os estudantes aprenderam cerca de 25% do esperado. Organizações internacionais falam em “catástrofe geracional” quando se referem aos alunos sem escola pelo mundo, por causa do impacto na aprendizagem, no socioemocional e até na renda. O Brasil é um dos que mais tempo ficou com escolas fechadas. Segundo a Unesco, foram 267 dias até a primeira ser reaberta. “Os bons alunos estão entre o desencanto e o desespero. Eles olham para esse processo e dizem, o que que vai acontecer comigo?”, afirma Henriques.
Acsa Espinassi é uma adolescente de 17 anos que divide a parede do quarto entre um banner comemorativo de seus 15 anos e bilhetinhos para ela mesma sobre o que precisa estudar mais. O nome bíblico precisa ser soletrado com frequência. Adora História, tanto a disciplina quanto a dos romances e suspenses. Mas teve de deixar de emprestar livros na biblioteca pública do bairro por causa da pandemia. Depois de passar quase um ano em casa, Acsa finalmente resolveu voltar à Escola Eliza Rachel em fevereiro, para cursar o 3º ano do ensino médio.
“Eu achava que 2021 seria um ano muito bom, que ia ser o ano da vacina, que tudo ia acontecer normalmente, eu ia me preparar para o Enem”, conta. Acsa tinha saudades de poder perguntar uma dúvida direto para o professor, das amigas, da escola que a “animava até quando chegava meio triste”.
A esperança de Acsa era compartilhada por muitos na cidade e no Estado, em escolas públicas ou privadas. No começo do ano, a rede particular tinha até fila de espera para o presencial, já que era preciso fazer um revezamento de alunos para atender os 35% de ocupação permitidos pelo governo.
Durou pouco mais de um mês. Os reflexos dos encontros no ano novo e carnaval apareceram no começo de março. O Estado de São Paulo registrou o maior número de mortes por dia por covid - mais de mil - e as UTIs ficaram com mais de 90% das vagas ocupadas. O governo decretou então uma nova fase, a emergencial, e as escolas foram recomendadas a só abrir para quem precisasse de internet ou de merenda. A rede particular fechou totalmente. A estadual adiantou o recesso de julho. “Agora só volto com meus pais e meus avós vacinados”, afirmou Acsa.
Quando a menina decidiu isso, São Paulo ainda vacinava pessoas com mais de 60 anos. Os pais de Acsa têm 40 e 37 anos. A boa notícia, no entanto, foi que os professores com mais de 47 anos seriam imunizados em abril. Aldo e os docentes da Eliza Rachel foram vacinados na própria escola, com presença e aplausos do secretário Rossieli Soares. Honras de uma escola exemplo para a rede.
Acsa Espinassi, aluna do ensino médio
Mesmo assim, Aldo passou a se sentir inseguro. Com a escola fechada, oito professores se contaminaram, e um foi internado. “Não estou a favor da volta da escola, estou assustado.” Morador também da zona leste, região com alta concentração de casos de covid, o diretor viu muita gente doente. “Eu estou com muito medo de que a gente, mesmo com todos os protocolos de segurança, possa novamente abrir a escola e possamos estar todos em segurança”, disse à época.
Mas na semana seguinte, considerando o decreto que diz que a educação em São Paulo é essencial e poderia abrir em qualquer fase da pandemia, Rossieli autorizou a volta. Aldo e outros diretores, de escolas públicas e particulares, foram pegos de surpresa. Mas voltaram. Os alunos, não.
“No primeiro grupo da manhã entraram 12 alunos. No segundo, 8. O período da tarde, 19”, contabilizou Aldo. Um mês depois, os números aumentaram um pouco, mas não chegaram aos 35% de ocupação permitidos pelo governo. Em todo o semestre, Aldo diz que cerca de 300 dos 2,5 mil alunos (12%) apareceram presencialmente. No Estado todo, segundo números oficiais, 1,8 milhão dos 3,4 milhões de alunos da rede retornaram. Não é possível saber se eles permaneceram por todo o tempo estudando na escola ou voltaram para casa em algum momento da pandemia. Nas escolas particulares, o índice de presença chega em alguns casos a 100% dos alunos.
“Eu pergunto por que se desmotivaram e não estão frequentando as aulas no presencial. A maioria sempre me responde que já que tem a opção de fazer remotamente, prefere”, conta o professor Andersson dos Santos Bispo, de 34 anos, que tem múltiplas funções na Eliza Rachel. Ele batalhou para conseguir um lugar na escola concorrida, não quis saber de ficar em casa por causa da covid. Permaneceu na sala de informática até no recesso, adiantado para março, ajudando alunos que tinham dificuldade de se conectar.
Andersson dos Santos Bispo, professor da escola Eliza Rachel
Com a pandemia, o professor teve de recriar em versão online suas aulas de Educação Física e de Projeto de Vida, disciplina nova do currículo, que ajuda a planejar o futuro do estudante. Bispo dá opções para os jovens estudarem como ser, por exemplo, “um craque do amanhã”. A Eliza Rachel é conhecida também pelo grande incentivo aos esportes. A sala do diretor é forrada de troféus.
“O esporte transforma, educa, por isso que o melhor caminho hoje para o jovem é estar dentro da escola, desenvolver os seus estudos e principalmente buscar alguma atividade física para a vida dele. Ocupar a mente com coisas boas”, diz. O professor conta que ele mesmo, menino vindo do Sergipe, foi “salvo” pelo esporte.
“A escola aberta traz segurança para eles. É um momento difícil e eles podem estar com amizades erradas, tomar as decisões erradas, muitas vezes por falta de maturidade”. A quadra esportiva da escola está vazia, esperando uma reforma e os alunos voltarem.
Acsa queria ter se inscrito no campeonato de ping pong no ano passado. Além de perder o esporte, ela estima aprender no máximo 45% do que deveria no ensino online. Agora, não tem mais esperanças também de tirar uma boa nota no Enem e de conseguir uma vaga no curso de Direito.
O chip de celular para que a menina não precise pagar por dados para estudar pela internet foi dado pelo governo apenas este ano. Cada Estado e prefeitura do País teve de arcar com os custos da pandemia na educação brasileira. Não houve programas do Ministério da Educação (MEC) para qualquer tipo de ajuda. Nem dinheiro, nem formação para professores, nem apoio para as milhões de famílias vulneráveis. Um projeto de lei que dava internet gratuita a estudantes pobres foi vetado pelo presidente Jair Bolsonaro. O veto foi depois derrubado na Câmara. Relatórios e mais relatórios de parlamentares, especialistas e organizações concluíram que o MEC foi e continua omisso durante a pandemia - na esteira da condução da crise pelo governo Bolsonaro. Procurado, o ministério não se manifestou.
Daniel de Bonis, da Fundação Lemann, diz que só se saberá o verdadeiro impacto na aprendizagem das crianças quando elas voltarem em massa ao presencial. Ele e Henriques consideram o segundo semestre de 2021 crucial para isso. “Não há razão para não se ter criado as condições para isso, para que a gente já tenha as escolas em condição de funcionar presencialmente”, diz de Bonis.
Para o diretor da Lemann, é “cruel e injusto” carimbar os alunos que estão na escola hoje de geração perdida. “A gente tem de cuidar, apostar e investir. Mas vai ser um processo, sim, de reconstrução, que vai depender de um esforço grande da sociedade, para controlar a pandemia, recuperar a aprendizagem, o crescimento econômico e o emprego para que as famílias também tenham condição de se sustentar.”
Durante o período mais crítico da pandemia, o pai e o avô de Acsa foram contaminados com a covid, o pai acabou sendo internado. A família já havia perdido o principal sustento, que vinha da organização de festas, interrompidas pela covid. Mesmo com a recuperação dos dois contaminados e a vacina dos avós, a menina continua com medo de sair de casa para ir à escola. Não sabe dizer se voltará em agosto.
“A crise é tamanha, os alicerces estão tão abalados que a gente tem uma oportunidade de revisar os nossos valores sobre educação”, diz Henriques. Ele lembra que as famílias perceberam o quanto é difícil educar uma criança. Mas é preciso fazer muitas mudanças: de conectividade, de formação de professores, da forma de ensinar - e ainda olhar para a desigualdade. “A ausência do Ministério da Educação aumentou o custo dessas perdas. Mas se não fizermos nada, vamos voltar lá para trás”, completa. “Não é admissível que a gente coloque nas costas de cada menina e cada menino o custo desse período tão anômalo.”
Entrevista
Rossieli Soares
‘O caminho é a volta às aulas’
O secretário do Estado da Educação, Rossieli Soares, comprou a briga da escola aberta. Durante toda a pandemia, tem sido a voz que mais defende o retorno presencial até nas fases críticas. No entanto, mesmo com a rede estadual funcionando, os estudantes não voltaram em massa. Em entrevista ao Estadão, Rossieli fala das perdas em aprendizagem, principalmente para os alunos do ensino médio, do temor de um grande abandono neste semestre e de uma recuperação que vai ter que deixar de lado o currículo. “Ao invés de dar conteúdo novo, a gente vai dar revisão, conteúdos anteriores, de nivelamento. Esquece esse negócio todo aqui do currículo. É lindo, bonito, mas precisamos dar uns passos para trás para voltar a caminhar.” O secretário ainda deixa claro que pretende tornar obrigatória a presença dos alunos na escola em setembro, quando todos os adultos do Estado já terão tomado a primeira dose da vacina contra a covid-19.
● Por que poucos alunos têm voltado ao presencial na rede estadual?
● Muitos alunos até deixaram de abandonar a escola por causa disso.
● Qual o momento então de exigir a volta presencial obrigatória?
● O aluno que está no ensino online está aprendendo?
“Nós precisamos ensinar dois, três anos dentro de um ano pra poder começar a recuperar”
● Nas escolas particulares, a volta presencial chega às vezes a 100% dos alunos.
● E como recuperar essa aprendizagem perdida quando eles voltarem?
● Como fazer isso?
● Quando o senhor era ministro da Educação em 2018 chegou a dizer que o Brasil estava no fundo do poço em matéria de ensino. E agora, onde estamos?
Expediente
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