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Sem lei que cite quantidades, polícia dá destinos diversos a flagrados com droga

Reportagem: Marco Antonio Carvalho / Dados: Cecília do Lago (com base em estudo da ABJ) / Design: Bruno Ponceano / Desenvolvimento: Ariel Tonglet

30 de março de 2019 | 18h30

São dezoito os verbos que definem o crime de tráfico de drogas no artigo 33 da Lei 11.343, sancionada em 2006. Não é só crime vender droga, mas também expor à venda, oferecer, ter em depósito ou trazer consigo, por exemplo. A pena é de 5 a 15 anos de prisão.

Já para o crime de porte de drogas para uso pessoal, são cinco os verbos que o definem, como previsto no artigo 28 da mesma lei. Há verbos em comum com o tráfico, como ter droga em depósito ou trazer consigo. A pena, no entanto, é bem diferente e prevê advertência sobre os efeitos das substâncias, prestação de serviço à comunidade e medida educativa de comparecimento a curso.

A distância entre ser processado e condenado por um crime equiparado a hediondo, como é o caso do tráfico – e que pode resultar em mais de uma década na cadeia –, para quem porta drogas para uso pessoal, cuja liberação pode ocorrer no mesmo dia na delegacia mediante assinatura de um termo de ocorrência, não está clara na lei.


Geralmente, os delegados, sobre quem recai a primeira responsabilidade de classificação em relação a qual crime foi cometido pelo suspeito detido – sistema que inclui em outros estágios o parecer de um promotor de Justiça e a sentença de ao menos um juiz –, fiam-se pela quantidade da droga encontrada.

Pouca droga, um cigarro de maconha por exemplo? Pode-se dizer, com base no registro de ocorrências policiais, que a maioria é classificada como usuária. Muita droga, 400 quilos de pasta-base de cocaína? Um caso aparentemente incontestável de tráfico.

Mas e os casos que são um meio-termo?

Trinta e dois gramas de maconha, o equivalente a uma embalagem pequena de doce de amendoim, encontrados com um jovem de classe alta com ensino superior completo, qual seria a classificação? E se uma mesma quantidade for encontrada com uma pessoa com diferentes características, seja de cor de pele, escolaridade, local de moradia, pode haver diferença na interpretação policial, e por consequência, no destino judicial?

O eixo horizontal do gráfico está em escala logarítmica para dar destaque às pequenas quantidades

Para determinar se uma droga se destina a consumo pessoal, a lei de 2006 prevê que o juiz pode observar a natureza e a quantidade dela, além do local e as condições em que se desenvolveu a prisão, assim como devem ser levadas em consideração as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do suspeito.

Notou a ausência de algum detalhe na lei?

Pois é, não há um limite para que a quantidade de droga seja considerada compatível com o uso pessoal, ou, passando desse limite, seja interpretada como tráfico.

A ausência desse patamar, associada a previsões subjetivas, como as “circunstâncias sociais”, faz, na prática, com que cada delegado estabeleça um critério próprio para o que é tráfico de drogas. Isso é notado em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), que está sendo divulgado nesta semana, com base de dados de ocorrências registradas pela Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo de 2012 a 2017.

“Fatos análogos podem ser classificados diferentemente a depender da autoridade policial”, aponta a análise. Assim, os registros mostram diversos casos em que uma mesma quantidade resultou em destinos diferentes na delegacia.

A base mostra cada detenção feita pela autoridade policial. Nesses registros, os policiais detalham, a partir de laudos do Núcleo de Exames de Entorpecentes do Instituto de Criminalística, a quantidade e o tipo de droga que foi apreendida, dizendo, ao final da ocorrência, que crime aquele suspeito pode ter cometido: artigo 33 (tráfico) ou artigo 28 (porte).

A ABJ se debruçou sobre os dados a pedido do Supremo Tribunal Federal (STF), que desde 2015 discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. A Defensoria Pública de São Paulo tenta derrubar a validade do artigo, sustentando que ele fere o direito à vida privada, resguardado pela Constituição Federal.

O julgamento do recurso será retomado em junho deste ano e já conta com três votos favoráveis ao pedido da Defensoria. A discussão sobre o tema, no entanto, não deve parar por aí já que o governo Jair Bolsonaro (PSL) não pretende incluir em sua Política Nacional sobre Drogas a criação de um critério objetivo sobre a quantidade de entorpecente necessária para distinguir o usuário de um traficante.


Polícia forma padrão

Em geral, menos de 2 gramas de maconha é porte, mais de 32 gramas é tráfico

E o que acontece com quem está no meio disso?

Na prática, deixar para o delegado essa interpretação faz com que se forme um padrão do que geralmente acontece. O estudo da ABJ constatou que os policiais consideram porte para uso pessoal a quantidade de até 2 gramas de maconha. Ou seja, em metade das ocorrências de porte o suspeito carregava até 2 gramas. Para cocaína, esse número é de 1,7 grama e para crack, 1 grama.

Quando se fala em tráfico, para maconha, por exemplo, o valor típico do que é considerado crime é 32 gramas – o número para cocaína é 20 gramas e para crack, 9. Ou seja, em metade das ocorrências de tráfico, os suspeitos foram flagrados com até essas quantidades. O padrão de atuação policial mostra o Estado agindo sobretudo contra os pequenos varejistas da droga. São raras as apreensões que chegam a ser medidas em quilos, e não em gramas.

A base de dados mostra que é incomum encontrar casos classificados como tráfico abaixo do padrão de porte ao constatar, por exemplo, que só 7% dos traficantes estavam com quantidades abaixo do típico para porte. O inverso também é verdadeiro: é mais difícil encontrar registros de porte acima do que geralmente é considerado tráfico; isso só acontece em 3% dos casos de maconha.

No entanto, há um intervalo nessa conta que demonstra o risco envolvido na subjetividade da lei. Na prática, quando uma quantidade encontrada é maior do que geralmente é considerado porte, mas menor do que a linha típica do tráfico, o caso está em uma zona cinzenta em que pode haver o mesmo risco de a autoridade policial classificá-lo como um crime ou outro (como mostra o 1º gráfico desta reportagem), apesar de as punições para os dois serem completamente distintas.

Em análise realizada pelo Estadão Dados, dentro dessa zona cinzenta há um ponto de virada, em que a mesma quantidade resulta em igual número de prisões para ambos os crimes.

Em casos em que a única droga relacionada à prisão é a maconha, esse ponto de inflexão acontece em torno de 23g, ou seja, ao ser pego com essa quantidade, o suspeito tem chances iguais de ser considerado ou usuário ou traficante. Menos que isso, tende ao porte, mais do que isso tende ao tráfico.

Se a droga for cocaína, esse equilíbrio se dá em quatro gramas; e no caso do crack, a zona cinzenta é mais apertada: 1,4 gramas a depender das provas complementares encontradas, dos depoimentos dos policiais e principalmente, em uma primeira análise, da decisão do delegado.


Como geralmente a única testemunha é um policial militar e a única prova, quando muito, é pouco dinheiro trocado, a interpretação da autoridade policial faz uso de antecedentes do suspeito e até da região em que ele vive, e se ali o tráfico é recorrente. Raros são as autuações que decorrem de investigações aprofundadas e provas robustas. Esses casos geralmente são relacionados a grandes apreensões de drogas.

Além disso, os números não são uniformes para todas as regiões da cidade de São Paulo nem são aplicados da mesma forma para suspeitos com diferentes características de escolaridade, deixando ainda mais latente a forma subjetiva como o sistema aplica a lei – o estudo não constatou uma diferença substancial no tratamento dado a brancos ante a classificação comumente aplicada a negros. Entretanto, essa informação não é autodeclarada no registro da ocorrência, podendo levar a incorreções por problemas metodológicos.

Na área da delegacia seccional do centro da capital paulista, onde 40% das ocorrências de droga resultam em autuações de porte, a tolerância é considerada mais baixa: somente ocorrências com até 1 grama de droga costumam se encaixar como uso pessoal. Esse número sobre para perto de 3 gramas, quando a área analisada é a da seccional Sul.

As áreas apresentam discrepâncias também no que consideram tráfico. No centro, metade das ocorrência de tráfico tiveram suspeitos presos com até 10 gramas. Esse número sobe para mais de 40 gramas na área da seccional de São Mateus, na zona leste da capital.

A professora associada de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux pesquisa o tema. Ela vê uma ação “proposital” da lei ao ampliar o tipo penal para prender muita gente.

Nunca houve preocupação de delimitar melhor os crimes. Nunca houve preocupação com os mecanismos que permitissem enfrentar os grandes traficantes, o que gera o negócio extremamente lucrativo. Com isso, o pequeno continua sendo preso todos os dias, sem grandes impactos para o crime como um todo
Luciana Boiteux

No Rio, conta, a imputação do crime de tráfico se relaciona diretamente com o CEP do suspeito. “É comum ver juízes fundamentarem a decisão dizendo que ‘não é possível estar naquela região com drogas sem ser traficante’ e comumente usam isso para aumentar a pena, relacionando o suspeito ao crime organizado da área. A quantidade não importa. Importa, para eles, a classe social, o biotipo criminoso. Na zona sul, a análise é diferente.”

As diferenças se expressam também quanto às características dos suspeitos, segundo apontou o estudo da ABJ. Nesse âmbito, a escolaridade apresenta uma correlação distinta: “Identificamos que as quantidades medianas tipificadas como tráfico aumentam de acordo com a escolaridade dos suspeitos. Suspeitos analfabetos tipificados como traficantes usualmente portam 32 gramas, enquanto suspeitos com ensino superior tipicamente portam 50 gramas, ainda que mesmo dentro dessas categorias os índices variem bastante”, explica Fernando Corrêa, diretor técnico da ABJ.

Filtre por droga:

e por escolaridade:

No Brasil, pesquisadores destacam que a escolaridade é um parâmetro que se associa diretamente à renda. Assim, quanto maior for a escolaridade, maior é a renda da pessoa em questão, sendo razoável aplicar essa definição sobre análise do comportamento do tráfico: quanto mais rico for o suspeito, maior pode ser a tolerância da polícia com ele.

Um dos fatores que ajuda a explicar essa relação é o critério adotado pelo delegado no momento da definição do crime. Muitos policiais fazem a seguinte avaliação: será que o suspeito teria renda suficiente para estar andando com a quantidade de droga que diz ser para uso pessoal? Se a resposta for não, o enquadramento se encaminha para o tráfico. Mas se a renda média for alta, então é razoável assumir que a droga flagrada pode, sim, ter sido adquirida para consumo pessoal.

Isso é confirmado pelo próprio delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes. “Você pega um sujeito que tem um poder econômico grande. Se ele estiver com 200 gramas de cocaína ele tem capacidade de adquirir aquilo para o uso. Se você pegar um sujeito que não tem poder econômico de portar 300 gramas de cocaína, já fica complicado. Teria de considerar que ele está na realidade investindo naquilo para ganhar dinheiro. Não vai investir naquilo para o uso, não tem dinheiro para isso”, diz. Ao Estado, ele defendeu a prisão de pequenos traficantes como forma de puxar a ponta do crime organizado e diz já ter chegado a um figurão do Primeiro Comando da Capital (PCC) a partir da investigação de um ponto pequeno de venda.

Em 2010, a pesquisadora Maria Gorete Marques de Jesus, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), conduziu um estudo para analisar a prisão provisória e a lei de drogas. O relatório final destaca várias declarações de operadores do sistema e em uma delas um delegado diz: “A diferença é estabelecida de acordo com o poder aquisitivo do apreendido. Se ele tem poder aquisitivo alto e é pego com 10 papelotes, ele pode ser usuário. Já se uma pessoa de poder aquisitivo baixo é pego com a mesma quantidade é mais fácil acreditar que ele seja traficante,pois ele não tem capacidade financeira de comprar a droga.”

Também para a pesquisa da sua tese, em que estudou a centralidade da narrativa policial para a classificação do delito de tráfico, ela, que acompanhou audiências dos processos, disse ter constatado como a condição social influencia no tratamento. “Aos jovens de classe média, o juiz fala como se fosse um pai. ‘Olha, você tá acabando com a sua vida’ e concede a liberdade. Para o pobre, a decisão é de responder preso”, disse. A reportagem do Estado acompanhou um dia de audiências de custódia e constatou que são pequenas as chances de o suspeito obter a liberdade provisória.

Quanto mais rico for o suspeito, maior pode ser a tolerância da polícia com ele. Gabriela Biló/Estadão

Marcelo da Silveira Campos, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (MS) e pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC), já havia encontrado esse padrão quando realizou a pesquisa para a sua tese de doutorado defendida na USP. Ele reuniu casos de duas delegacias da cidade de São Paulo: Itaquera, na zona leste, e Santa Cecília, no centro. Na pesquisa, buscava compreender as principais implicações da Lei de Drogas de 2006 no sistema de justiça criminal.

O texto da sua tese diz que “as chances de alguém ser incriminado por tráfico de drogas é 3,6 vezes maior quando o acusado é analfabeto ou possui ensino fundamental em relação às pessoas que possuem ensino superior”. Outras variáveis, como o ano, o gênero (maior risco para mulheres), e o local (maior risco para Itaquera na comparação com Santa Cecília) também foram apresentados como determinantes.

“A lei, que quis incorporar um discurso moderno com o paradigma da redução de danos e saúde para usuários em 2006, acabou sendo extremamente discricionária e manteve a prisão como chave central da política. O efeito acabou sendo reverso ao que se esperava de uma abordagem médico-preventiva. Ao prever o absurdo, como uso de escolaridade como critério, abarcado nas ‘circunstâncias sociais’, a lei mostrou seu viés autoritário”, diz.

Maconha é analisada no laboratório do Instituto de Criminalística. JF Diorio/Estadão

A lei sancionada em 2006 alterou o que previa a Lei 6.368, que estava em vigor desde 1976. A legislação anterior previa que mesmo que o suspeito fosse reconhecido como usuário ainda era passível de uma punição de detenção de seis meses a dois anos, além de pagamento de multa.

O texto de 2006 mudou essa previsão e passou a não mais permitir prisão, mas, sim, advertência e medidas educativas a usuários. Já para os traficantes, o objetivo da nova lei era tornar mais rigorosa a pena. Para isso, aumentou de três para cinco anos o período mínimo de reclusão, o que na prática tornou mais alta a probabilidade de o condenado começar a cumprir essa pena em regime fechado.


Fora da curva

As histórias de uma absolvição e de uma condenação

Tudo começou com um estacionamento em local proibido. A polícia diz que foi isso que a motivou a abordar, na madrugada do dia 28 de dezembro de 2017, um uber que estava parado nas imediações da Praça Júlio Prestes, no centro de São Paulo. O motorista disse aos agentes que aguardava o retorno do passageiro, que deixou o veículo afirmando que retornaria em instantes. Quando o homem regressou ao carro, deu de cara com os policiais. Resultado: em revista, foram encontrados 22 invólucros plásticos contendo crack, além de R$ 110.

Homem foi encontrado com crack, mas polícia não sabia se tinha comprado na região ou havia acabado de realizar venda. Felipe Rau/Estadão

O homem, segundo conta a polícia, havia saído do “fluxo” da Cracolândia, ali perto. Mas os agentes disseram não saber se o suspeito estava lá para comprar ou para vender. Na delegacia, foi classificado como traficante até análise do processo por um juiz. Tinha consigo cerca de 30 gramas, muito mais do que a polícia costuma considerar porte para usuários de crack, que é 1 grama. Quase todos os casos assim levam o mesmo carimbo: tráfico.

O ponto fora da curva foi a interpretação da Justiça. A sentença saiu mais de um ano depois, em fevereiro deste ano. A juíza, apesar de ponderar que a quantidade de droga encontrada era expressiva e “pouco provável” que se destinasse ao consumo do réu, o absolveu, seguindo parecer do Ministério Público.

A justificativa foi de que a polícia não conseguiu identificar a intenção do suspeito ao se dirigir para a Cracolândia. Pesou ainda a alegação da defesa, formada por dois advogados, de que o homem, com formação superior, já se submete a tratamento para drogadição desde 2012, com sucessivas recaídas.

A mesma sorte não tiveram dois estrangeiros presos por guardas municipais na Rua Guaianases, também no centro de São Paulo, no dia 31 de agosto de 2016. Os agentes disseram que receberam denúncias de que havia tráfico na área e, quando se dirigiram ao local, flagraram os dois com 12,2 gramas de maconha em sete porções. Um deles disse que vendia e outro, que era usuário.

Quantidades similares encontram inúmeros casos em que o desfecho não foi o mesmo dos dois suspeitos estrangeiros. Mas pesou contra eles o testemunho dos guardas e os R$ 400 encontrados em notas pequenas. “Foi ainda apreendida considerável quantidade de dinheiro em poder dos acusados, que estava em notas de pequeno valor, tudo a indicar que as drogas não se destinavam ao próprio uso dos réus, mas sim ao tráfico ilícito de entorpecentes, não havendo que se falar, dessa forma, quer em absolvição dos réus, quer em desclassificação da conduta a eles imputada para o crime de porte de entorpecente para uso próprio”, escreveu a juíza na sentença. Em vez de prisão, a magistrada aplicou uma pena alternativa de prestação de serviços à comunidade. No entanto, os traficantes nunca mais foram encontrados pela Justiça.


Detenções superlotam presídios

Apenas 1% das ocorrências soma 76% da massa apreendida

Fato é que a maior parte das ações policiais contra os ditos traficantes resultam na apreensão de pequenas quantidades de drogas. Pesquisa do Instituto Sou da Paz mostrou que, entre 2015 e setembro de 2017 no Estado de São Paulo, 1% das ocorrências concentrar 76% da massa de maconha apreendida, enquanto nos outros 99% dos casos foram encontrados os 24% da droga restante.

A aplicação da Lei de Drogas nesses moldes é apontada como um dos fatores do crescimento expressivo da população carcerária na última década. O número de pessoas presas no Brasil saltou de 361 mil em 2005 para 726 mil em 2016, dobrando a quantidade de pessoas em penitenciárias pelo País.

O aumento substancial tem como uma das explicações a explosão de suspeitos de tráfico de drogas: de 32 mil em 2005 para 151,7 mil em 2016, representando o crime que mais encarcera. No período, presos por tráfico deixaram de representar 9% de toda a população carcerária para chegar a 20%, tendo tido um pico de 25% em 2012 e 2013.

A situação afeta ainda mais a população carcerária feminina. Dados do Infopen, relatório do Ministério da Justiça sobre as unidades prisionais, apontam que 62% das mulheres estão presas pelo crime de tráfico.

O juiz Marcelo Semer, que por mais de 20 anos atuou em processos criminais no Tribunal de Justiça de São Paulo, enxerga uma relação desse crescimento com a força das facções. “Antes de as facções surgirem, dizíamos que a cadeia era a faculdade do crime. Hoje, com essas organizações, já não são mais faculdades, mas estágios do crime. O criminoso já entra lá como trainee.”

Isso porque as precariedades do sistema penitenciário abre espaço para que integrantes das facções ofereçam ajuda, como o pagamento de um advogado, e outras assistências, como melhores condições na cela ou de contato com a família. “Quando sai de lá, o preso assumiu compromissos. Não é à toa que o PCC (Primeiro Comando da Capital) cresceu enormemente. Não cresceu porque fomos leves com a aplicação da lei. Quanto mais gente for encarcerada, mais mão-de-obra eles vão ter”, diz.

O lucro decorrente da operação do narcotráfico no País garante a essas facções capacidade estrutural, como compra de armas, e possibilidade de expansão para a rotina econômica legal por meio de lavagem de dinheiro. “O capital arrecadado por essas organizações é enorme e entrega para elas uma capacidade não só operacional, mas estrutural. A força se torna muito consistente e encontra um estado brasileiro cada vez mais empobrecido, o que limita sua reação”, diz o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino, que atuou na persecução penal a essas facções por mais de 20 anos.

Mas Christino acredita que o processo judicial tem um bom sistema de pesos e contrapesos, já que a definição policial pode ou não ser seguida pelo promotor que oferecerá a denúncia do caso ao juiz. E o juiz pode ou não decidir pela condenação do suspeito. A margem para revisão e aplicação adequada da pena ainda é aumentada, pois os processos são submetidos a ao menos mais uma instância, em que o ciclo se repete. “Você há de convir que há filtros que vão apontar devidamente o que aconteceu”, diz.


Decisão do delegado

Justiça reforça tese da polícia, ainda que carente de provas

Mas diante de aparentes disparidades nos processos de tráfico de drogas, não caberia aos magistrados rever com isenção a prova policial, avaliando com profundidade as denúncias do Ministério Público? O que estudos mostram é que corriqueiramente a narrativa policial prevalece quase intocada no Judiciário, onde acaba sendo ratificada, fechando o ciclo que permitiria ser a última salvação para suspeitos que se dizem injustiçados.

Juízes contam com poucas provas além do testemunho policial para realizar julgamento. Gabriela Biló/Estadão

A presidente da Associação Juízes para a Democracia, a juíza Laura Benda, diz sem meias palavras que o judiciário ajuda a manter a concepção classista e racista que é iniciada pela polícia nas ruas. “A lei permite um enfraquecimento de direitos e garantias e o que se vê na maioria dos processos é o testemunho único dos policiais. Os juízes têm a boa intenção de auxiliar no combate ao crime mas reforçam recortes classistas e racistas numa compreensão equivocada do seu papel. O branco do (bairro) Jardins conta com a boa vontade do magistrado. Enquanto o negro da periferia tem seu domicílio invadido em uma ação considerada legítima.”

Neste mês, o juiz Marcelo Semer defendeu sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa, intitulada “Sentenciando tráfico: pânico moral e estado de negação formatando o papel dos juízes no grande encarceramento”, analisou 800 sentenças de tráfico de drogas em oito Estados.

“Há mais convergência do que divergência nas sentenças: um abuso do senso comum, um desprestígio da presunção de inocência e um tratamento tão diverso entre a verdade que se atribui a depoimentos e papéis policiais e a total ausência de credibilidade de réus e suas testemunhas”, escreve o magistrado. Sem investigação policial devida, aponta, o volume da droga acaba sendo o elemento central do crime.

A possibilidade garantida pela lei e por jurisprudências do STF, que previu que réus primários no tráfico de drogas sem associação com facções se classificam como “traficantes privilegiados” e portanto são passíveis de menores penas e regimes mais brandos, raramente são seguidas. “Para muitos juízes, a orientação do STF não surtiu qualquer efeito. Isso se mostra, sobretudo, mais impactante nos processos do Estado de São Paulo”, acrescenta Semer.

Isso significa que os juízes, especialmente os da Corte paulista, raramente concedem liberdade provisória aos suspeitos ao longo dos processos e também dificilmente vão determinar um regime diferente do fechado para a pena inicial dos que forem eventualmente condenados. “A prisão em flagrante é comumente convertida em preventiva (acima de 90%); a prisão provisória durante o processo é uma regra – a liberdade provisória, exceção”, diz.

“O tráfico de drogas é visto pelos juízes como algo tão perigoso socialmente, tão fundante da criminalidade organizada, tão nocivo às famílias, ao trabalho, à sociedade, ao mundo, e o traficante um ser tão pessoalmente desprezível, de personalidade desvirtuada e praticante e estimulador dos atos que mais constrangem à sociedade – que o aprisionamento cautelar e definitivo se apresentam absolutamente indispensáveis. Como se fosse essa uma providência urgente, necessária e de salvaguarda do tecido social”, escreve ele na tese.

O caso de São Paulo salta aos olhos na pesquisa de Semer. Nos casos em que analisou, ele diz que o Estado tem o menor índice de armas apreendidas com os suspeitos (4,9%), o maior patamar de pequenas apreensões de crack (81,5% de apreensões inferiores a 50 gramas) e é o segundo Estado em que nos processos mais se apreende quantias pequenas de maconha (66,67% de apreensões inferiores a 100 gramas). “Por outro lado, é o líder em condenações (85,52% para uma média de 78,40%) e também o Estado que menos absolve (8,85% para uma média de 15,33%). É o Estado com penas em regime fechado em maior proporção, de longe (89,66%, de uma média de 67,93%) e o que menos aplica as penas restritivas (5,64%, de uma média de 15,98%)”, completa.


Mesmo com vantagens

Critério objetivo pode ser leniente com traficantes e duro com usuários

Bem, então diante de tudo isso, o caminho a ser adotado é, sem dúvida, o critério objetivo para diferenciar traficantes de usuários de drogas, certo? Não é bem assim. A pesquisa da Associação Brasileira de Jurimetria aponta dificuldades e vantagens do modelo e pesquisadores tendem a concordar que o critério poderia ser, claro, de grande ajuda. Mas ele está longe de representar sozinho a solução do problema.

Aqui, as questões centrais são: 1) Como seria definido esse critério? 2) Ele valeria para todas as drogas ou só para algumas, ou ainda só para maconha? 3) Estar abaixo do limite automaticamente classificaria o suspeito como usuário e acima, como traficante?

As respostas: 1) Uma boa ideia é usar a chamada média diária de consumo, mas mesmo assim países interpretam isso diferente, sendo tão restritivos quanto 5 gramas (no México) ou tão liberais quanto 200 gramas de maconha (na Espanha), por exemplo; 2) O STF já deu indicativos de que pode definir só para maconha, mas o maior problema de saúde pública nesse contexto diz respeito a usuários de crack. Uma eventual mudança deixaria de lado essa droga, negligenciando esse aspecto? 3) Isso poderia servir como um indicativo, mas segui-lo a risca pode ter dois desfechos opostos e ruins: colocar na cadeia usuários compulsivos, os que mais necessitam de ajuda e o que podem estar carregando a maior quantidade de droga, e chancelar uma estratégia do narcotráfico conhecido como “exército de formiguinhas”, onde varejistas da droga andariam com pequenas quantidades para não serem pegos.

Como se vê, as respostas, inconclusivas, trazem ainda mais perguntas. O estudo da ABJ destaca, em um primeiro ponto, que um critério de corte, se aplicado literalmente, feriria a presunção de inocência. “A depender da forma de aplicação, a prova da posse para venda pode ser tacitamente desincentivada, na medida em que o critério objetivo for um argumento forte o suficiente para caracterizar o tráfico. Por isso, a distinção entre usuários e traficantes deve se preocupar em não presumir que usuários são traficantes apenas com base na quantidades de corte.”

Por outro lado, destaca a análise, o critério poderia servir como base para o judiciário aplicar eventuais redutores de pena. “A lei prevê a aplicação de redutores ‘desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa’. Além de diferenciar usuários e traficantes, um critério objetivo municia o judiciário com argumentos para sua aplicação. Com critérios objetivos, seria possível até mesmo qualificar esses redutores com base nas quantidades de drogas apreendidas.”


Simulação

Veja como se distribuiriam as prisões por porte e por tráfico de maconha, em apreensões de até 50g, caso o único elemento levado em consideração pelo juiz fosse a quantidade da droga

Considero tráfico o porte de pelo menos g de maconha

Arraste o círculo abaixo


O procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino usa uma analogia para criticar o uso do critério objetivo como ferramenta de distinção entre usuários e traficantes. Imagine, diz ele, que o negócio da venda de drogas se organize em uma empresa chamada Drogas S. A.. Essa empresa tem lojas e é composta não somente pelos donos, mas também por gerentes e vendedores, que atuam na ponta da linha de trabalho, na venda direta a consumidores.

“O tráfico é uma empresa que não admite concorrência. Não há traficante freelancer. Ou ele paga o que for cobrado para conseguir atuar em determinada área ou será morto. E essa empresa tem funcionários de diferentes níveis. Isso significa que aquele que vende pouca quantidade, que é flagrado na rua, não é traficante ou não merece pena? Penso que não. Ele vende droga e vive do tráfico, sendo parte dessa organização”, descreve.

Como então, conjectura o procurador, dizer que quem tem menos de 10 gramas de maconha, por exemplo, não é traficante, se a característica do negócio tem sido cada vez mais diminuir a quantidade que fica a vista de todos para evitar prejuízos desnecessários. “Usar somente a quantidade como critério tem falhas porque ela não permite a distinção”, diz. Para ele, um caminho seria usar a quantidade para diminuir a discricionariedade da lei e criar critérios de pena. “Criminosos com pouca quantidade deveriam ter pena menor”, sustenta.

Para o pesquisador Maurício Fiore, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o critério objetivo poderia fazer com que polícia e Ministério Público se sintam eximidos de provar que a droga encontrada se destinava à venda. “Poderia ser dito que, se tem grande quantidade, então se trata de tráfico, e isso pode não ser verdade no caso de um usuário que estocou grande quantidade para consumir diante de um cenário de uso problemático”, diz.

Mesmo assim, o estabelecimento do critério, acrescenta, pode ter “consequências positivas” se não for aplicado isoladamente. A principal preocupação, diz, é se a mudança na política, com uma eventual descriminalização, ocorrer somente para usuários de maconha, desprezando usuários de crack. O psiquiatra Luís Fernando Tófoli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) se junta a Fiore nesse aspecto. “Será um problema grave fragilizar ainda mais o usuário que está em pior condição e que por isso compra maiores quantidades. Esse cara pode ir preso se for seguido um critério objetivo.”

Ele critica a defesa moral, e não baseada em evidências, feita ao atual modelo de combate às drogas e a crença de que isso ajuda a resolver o problema ou a diminuir o consumo. “Só vejo duas explicações para alguém entender que a proibição das drogas é algo que salvaguarda o bem da saúde pública: ou é desinformado ou o julgamento não é pautado nos dados, é moral. Fala-se: ‘proíbam as drogas porque são uma coisa do mal’”, diz. “Há uma falha em perceber o quadro todo, a violência gerada e as mortes relacionadas a disputa desse mercado, onde o número de vítimas é muito alto. Pressupõem-se, então, que essas vidas são mais matáveis que outras.”

O psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que já coordenou programas anticrack no Estado de São Paulo e é professor na Escola Paulista de Medicina, pensa diferente. Ele acredita que uma eventual interpretação do Supremo pela descriminalização poderia elevar o consumo de drogas, com consequências graves de saúde, principalmente entre os adolescentes. “Estudos recentes mostram a associação entre o consumo na adolescência e o desenvolvimento de depressão e ideias suicidas”, diz ele, falando que o consumo já está crescendo, e com um “endosso” da lei poderia aumentar ainda mais. Fiore e Laranjeira escreveram artigos a pedido do Estado em que detalham suas opiniões.


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